As manifestações do Primeiro de Maio

Imagem: Marcelo Jaboo
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Por TARSO GENRO*

A sociedade capitalista nova é de dispersão, tanto da sua estrutura de classes como dos seus conflitos

“O que se vê habitualmente é a luta das pequenas ambições (…) contra a grande ambição (que é inseparável do bem coletivo). (…) Demagogia quer dizer muitas coisas: no sentido pejorativo, significa servir-se das massas populares, das suas paixões sabiamente excitadas e nutridas, para os próprios fins particulares…” (Gramsci, Cadernos do Cárcere).

As manifestações do Dia do Trabalho no domingo foram fracas e redundantes, mas não significativas para alterar o panorama eleitoral das eleições presidenciais. Estas se dão num contexto internacional e sul-americano de grande imprevisibilidade dentro de uma “nova ordem global” já em chamas, em função da Guerra da Ucrânia. Ou seria melhor dizer “guerra” entre dois países reformados pela queda do socialismo real. Esta guerra tem, de um lado, a OTAN impulsionando os batalhões nazistas da Ucrânia (“Azov”) contra a Rússia, e de outro lado a Rússia como potência político-militar de governo autoritário, atacando para manter seus espaços geopolíticos de dominação, respeitados até mesmo durante a “Guerra Fria”.

Esta é uma guerra sem fim. Ela só não ameaça a paz mundial através de uma guerra atômica, porque nunca houve paz mundial firmada seriamente e porque ela, provavelmente, jamais será atômica, pois sabem os seus contendores que uma guerra nuclear poderia proporcionar a destruição recíproca dos países em luta. Os efeitos econômicos e financeiros desta guerra, todavia, serão enormes, já que ela incidirá diretamente sobre os custos do financiamento dos Estados endividados, não só pelas surpresas que teremos no intercâmbio de mercadorias no sistema global, como também pelas tradicionais manipulações das taxas de juros sobre as dívidas dos estados devedores.

Mais além, ainda, da “crise” do Dia do Trabalho do último domingo – para pensarmos nas eleições de novembro – a nossa atenção deve se voltar para a própria “crise do trabalho”, que vem petrificando as homenagens às heroínas e aos heróis que foram mártires das lutas operárias do mundo inteiro. É esta crise que vem causando uma profunda retração nas lutas destes setores tradicionais do mundo do trabalho e fragilizando suas estruturas de representação sindical, como a sua predisposição para luta política democrática, seja no âmbito das lutas socialistas, seja no âmbito das lutas socialdemocratas dentro da ordem.

A luta dos diversos focos políticos de grupos fascistas contra a ordem, dentro e fora do Estado, são sempre muito potentes, pois o fascismo é sobretudo uma expressão intensa da luta de classes que o capital sempre usou, despudoradamente, contra os trabalhadores e os democratas em geral, em todas as crises graves do seu sistema de poder. E eles operam tanto quando a hegemonia se dá pelas disputas democráticas, como nos momentos de exceção, ora se voltando contra instituições que lhes resistem, como o STF atualmente, como contra líderes democráticos, operários ou não, que se tornam relevantes para resistir na democracia.

Estes problemas concretos dos movimentos socialistas e socialdemocratas de esquerda, que tem a mesmíssima origem no início do século passado, geram dificuldades que também ainda não foram consideradas pelos partidos originários do mundo do trabalho tradicional. Estes partidos ainda não conseguiram fazer a sua transição – material e formal – da sua condição de organismo fincados na cultura políticas das lutas dos trabalhadores formais, de “carteira” (vinculados à estrutura empresarial do capitalismo industrial clássico) para uma condição nova de partidos da emancipação de todos os oprimidos, explorados e “negados” em suas personalidades individuais e de grupo pela sociedade de classes atualizada pelas revoluções tecnológicas em andamento.

A sociedade capitalista nova é de dispersão, tanto da sua estrutura de classes como dos seus conflitos, no entardecer da modernidade iluminista, cujos impasses chamam – não somente para novas formas de luta e organização contra a exploração objetiva e econômica – mas para os novos efeitos da barbárie.

A sociedade formada nesta crise repudia qualquer tipo de subjetividade que negue o individualismo consumista, que se volte contra quem homenageia a vitória do mais forte sobre o mais fraco, que não aceite as humilhações do branco contra o preto, a supremacia dos supostos normais contra os “estranhos” de todas as cepas e contra os diferentes que se orgulham da sua humanidade na diferença. É para esta nova sociedade, mais cruel, mais desigual e mais violenta, que nós – da esquerda e da democracia – temos que revolucionar os nossos partidos e nossas formas de luta: para enfrentar uma barbárie que teima em golpear o Estado e sufocar as esperanças que restam num povo já cansado de esperar.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

 

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