Por MARCOS AURÉLIO DA SILVA
O Ocidente opera uma verdadeira “guerra por procuração” na Ucrânia
O estudioso italiano de geopolítica Lucio Caracciolo fez esta semana um comentário que deu nos calos do Ocidente liberal.[1] Critica-se a Rússia − acertadamente, a meu juízo − por evitar a palavra “guerra”, mas é o próprio Ocidente que repete a mesma ambiguidade ao evitar falar de guerra enquanto opera uma verdadeira “guerra por procuração” com o envio de armamentos aos ucranianos.
E eis porque Caracciolo prefere falar da guerra que se faz na Ucrânia como uma verdadeira guerra mundial. Muito mais do que repetir as “sentenças de Moscou”, como gosta de imputar a já rebaixada cantilena liberal aos críticos da escalada militar, Caracciolo sabe perfeitamente dos riscos que a expansão da OTAN há muito portava, reconhecidos até mesmo pelos mais experientes estrategistas da Casa Branca, como George Kennan.
Com efeito, foi ninguém menos que George Kennan, patriarca da contenção da URSS, que advertiu Bill Clinton quanto à sua escolha de agregar Polônia, Hungria e República Tcheca à aliança militar do Atlântico. “Esperaria uma forte militarização da sua (russa) vida política”, escreveu Kennen em seu diário no dia 31 de julho de 1997.[2]
No Brasil, a defesa da “guerra por procuração” é também o caminho dos especialistas em geopolítica que pontificam na mídia, como no exemplo do jornalista e geógrafo Demétrio Magnoli, que agora sustenta o fornecimento de armas à Ucrânia apoiando-se na Carta da ONU. Fazendo uso do pathos da imputação de que antes falamos, e lançando-se contra o que seria um falso pacifismo de Leonardo Boff, Magnoli fala de “autodefesa coletiva” para “o direito de nações não beligerantes de contribuir para o esforço de guerra de um país invadido”.[3]
O articulista do jornal Folha de S. Paulo, todavia, parece ignorar que este é um argumento também utilizado por quem fala a favor da intervenção de Vladimir Putin. Foi o que fez Daniele Perra na Eurasia – Rivista di Studi Geopolitici, referindo-se ao fato de que no caso da Rússia, agindo como autodefesa diante das ameaças da OTAN, se estaria respondendo a dois critérios, o da “necessidade” e o da “proporcionalidade”.[4]
Uma posição minoritária no direito internacional? Talvez. Mas já o fato de que existem duas posições convida a pensar que seria melhor apostar na contenda diplomática em direção a um acordo de paz − ou no mínimo de um cessar fogo, como mais modestamente agora prefere falar Caracciolo − do que no envio de armamentos à Ucrânia.
Aliás, não passa de puro diversionismo dizer que “Volodymyr Zelensky aceitou trocar a paz por um estatuto de neutralidade geopolítica da Ucrânia” na segunda semana de guerra, “mas a Rússia rejeitou a oferta exigindo a transferência da Criméia, do Donbas e do sul ucranianos à sua soberania”. Se acompanhamos bem o andamento do conflito, sabemos que o chanceler alemão Olaf Scholz foi a Zelensky cinco dias antes da invasão com a mesma proposta de neutralidade geopolítica, todavia rejeitada pelo presidente ucraniano. Compreende-se que a esta altura é impensável uma negociação em torno do problema da segurança da Rússia que não ponha a rediscussão dos limites territoriais da Ucrânia.
Na verdade, os argumentos do jornalista-geógrafo dificilmente escondem a ira belicista que o anima. Para ele, o crime de Vladimir Putin, inscrito no direito internacional pela condenação à violação da integridade territorial de um país soberano, não diria respeito apenas à invasão da Ucrânia, mas ao fato de que o “triunfo em terras ucranianas impulsionaria Putin a prosseguir sua escalada de guerras imperiais na Moldávia e nos países Bálticos, sob o álibi de proteger os ‘russos do exterior'”.[5]
E eis quando vem a tempo lembrar o que escreveu Michele Prospero, professor de filosofia do direito na Sapienza di Roma. Prospero não contesta o crime da Rússia, mas põe em questão as teses que buscam puni-la por uma espécie de critério ético, como a intenção da exportação de um regime iliberal para os países que com ela fazem limite.[6] Ora, a tese da escalada de “guerras imperiais” em favor dos “russos no exterior” de que fala Magnoli é muito vizinha desse argumento. Uma espécie de “jihad pan-russa” a ser combatida por uma “jihad democrática ocidental”.
Como argumenta o professor Prospero, “não é necessário inflar” o crime da Rússia “de um suplemento ético ulterior”. Ele deve ser discutido a partir daquilo que efetivamente significa − a violação da integridade territorial da Ucrânia. A rigor, o “princípio pan-russo” em que se “funda o consenso bélico da empresa de Vladimir Putin” se apoia em um “sentimento de marginalização de uma antiga potência que parece ter esquecido o evento humilhante da perda da guerra fria”.
A lógica do realismo político já assinalada por Kennan, nada mais que isso. O mesmo realismo que Prospero, como vimos sem negligenciar o ordenamento internacional – motivo das injúrias de Magnoli a Boff − compartilha com o estudioso francês de relações internacionais Bertrand Badie, para quem “a posição da Rússia no sistema internacional foi notavelmente enfraquecida pelo efeito combinado do desaparecimento do bipolarismo, do qual havia se beneficiado muito, e da globalização, que a marginalizou”.
Abstraindo essa discussão para se entregar à simples imputação dos seus interlocutores e da Rússia – Antonio Gramsci já havia assinalado o quanto é empobrecedora este tipo de visão judiciária da história −, Magnoli não faz outra coisa senão aderir ao senso comum que no Ocidente agora se lança com paixão à guerra e assim evita qualquer opção pela negociação. É o argumento do mais simples comentarista das redes sociais, mas às vezes até mesmo do mais “autorizado” professor universitário, que já não teme se perguntar se não é de fato necessário armar a Ucrânia.
Como ainda uma vez lembrou Lucio Caracciolo,[7] quando se começa a falar de guerra nuclear até mesmo nos bares (é a situação na Europa, mas diria que não menos no Brasil, a despeito de nossa distância do centro geográfico do conflito), pode-se avaliar a que ponto chegamos.
Dulce Bellum Inexpertis − gosta da guerra quem não a conhece −, disse Luciano Canfora citando Erasmo de Roterdã.[8] Não precisamos lembrar a crítica de Gramsci a Erasmo, incapaz de pensar que as guerras de Lutero e da Reforma poderiam forjar uma nova cultura. Discípulo atento de Lênin, Gramsci está falando da guerra civil revolucionária.
A Bellum que agora nos rodeia, tão apreciada por Magnoli e pela opinião pública ocidental, é coisa muito diferente. Diante dela a frase de Erasmo pronunciada por Canfora soa como um chamamento à razão. A miséria cultural de nossa época estará à altura de compreendê-la?
*Marcos Aurélio da Silva é professor do Departamento de Geociências da UFSC.
Notas
[1] https://www.youtube.com/watch?v=qt3VAhPl3Ek
[2] Il silenzio di Puskin, in Limes – Rivista Italiana di Geopolitica, n. 2/2022, p. 13.
[3] Pacifismos, in Folha de São Paulo, 30/abril/2022. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2022/04/pacifismos.shtml
[4] Analisi del conflitto in Ucraina, in Eurasia – Rivista di Studi Geopolitici, 7/mar/2022. Disponível em https://www.eurasia-rivista.com/analisi-del-conflitto-in-ucraina/
[5] Passim.
[6] Perchè l’invasione russa viola le regole della legalità internazionale, in Il Riformista. Disponível in https://www.ilriformista.it/perche-linvasione-russa-viola-le-regole-della-legalita-internazionale-285363/?refresh_ce