Me engana que eu gosto

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FLÁVIO R. KOTHE*

O cultivo do ódio aos comunistas trouxe consigo algo mais permanente: a russofobia

Tentar decifrar narrativas fictícias propagadas como notícias não salva ninguém quando ninguém quer ser salvo, já que a maioria crê estar do lado dos salvos ao acreditar no que finge ter pé e cabeça, mas não tem tronco nenhum. A razão crítica não muda a prática dominante: demanda séculos de ação incessante, sem garantia de se chegar a um patamar mais esclarecido. Penosos são os percursos da dissidência ideativa. Seus mártires não serão santificados nem terão altares de celebração.

O que prepondera na população é a postura do “me engana que eu gosto”. É mais fácil aderir ao que tem a força das instituições e o poderio passivo das multidões. A razão, acuada num canto, não ousa erguer críticas, mais ainda se sabe que a razão dita crítica tem servido tantas vezes para camuflar dogmatices que não eram racionais nem críticas. Finge-se ainda criticar a torto e direito para não tocar no que realmente deveria ser criticado.

A manipulação das massas é tão antiga quanto a existência de massas e de poderosos que as dominavam. A vestimenta de um rei, a crença num deus, o cerimonial da corte, o desfile de um exército, incenso e cânticos em rituais são apenas amostras de uma tradição longa e descontínua. A estetização do poder – e com ela a arte – sempre serviu para auratizar e legitimar quem dominava: para dar mais poder a quem já tinha poder.

Está em curso nos quintais locais uma lavagem cerebral com a heroicização de ucranianos e a demonização dos russos. Vladimir Putin é posto como capeta no poder. Se ele é ou não é, não importa: diz-se que é. Poetas declamam poemas pela paz, criancinhas entoam cânticos e fazem danças, o ator que faz o papel de ministro da Ucrânia é divinizado e aparece cada dia na mídia.

O decisivo livro de John Reed chamado Dez dias que abalaram o mundo contava a revolução comunista contra o czarismo em 1917. Não por acaso os americanos fizeram um filme chamado Treze dias que abalaram o mundo, sobre a chamada crise dos mísseis em Cuba, da perspectiva da Casa Branca. Conseguiram exorcizar a lembrança do livro e mostrar os comunistas como ameaça permanente ao solo americano. O que parecia ser apenas cultivo do ódio aos comunistas trouxe consigo algo mais permanente: a russofobia. As pessoas são manipuladas e nem sabem que são. Também não querem saber.

Silvester Stalone protagonizou filmes em travava lutas com um pugilista russo, acabando por destroçá-lo. Em seriados americanos aparece com frequência o que se diz ser a “máfia russa”, formada por brutamontes frios, assassinos. Essa “máfia” substitui o que antes era o comunista, a KGB. O herói americano pode ser loiro de olhos azuis como o Gibbs do NCIS ou um negro de olhos escuros como o herói de O protetor, pouco importa a estrutura de superfície: relevante é a função que desempenha. O governo americano pode colocar mulheres negras em funções relevantes, o importante é que elas vão fazer o que a plutocracia americana quer. No último filme do 007, tentaram colocar como substituto do agente britânico uma mulher negra, para no fim fazerem ela dizer que seria melhor ele mesmo manter o papel.

Cor da pele, altura, sexo, preferência sexual, idade e assim por diante são apenas máscaras que escondem uma identidade secreta, que se mantém igual. Quanto mais for a mesma a estrutura profunda, tanto mais convém que sejam diferentes as estruturas de superfície. Mostrei como isso funciona em diferentes gêneros no livro A narrativa trivial.[i] De nada adiantou.

A “máfia russa” deve corporifica o mal, enquanto o mocinho que corporifica o bem é o representante do governo americano que acaba com o bandido, depois de deixar que ele demonstre a maldade nele pressuposta. Os faroestes antigos ensinavam os jovens sul-americanos a vibrar com os mocinhos brancos e a odiar comanches e mexicanos, vibrando quando a cavalaria vinha salvar os colonos cercados: aí se exaltava a conquista do centro de do oeste do continente.

Bonzinhos eram os invasores das terras indígenas ou mexicanas: exaltava-se aí o genocídio dos povos indígenas e o expansionismo bélico, como se fossem caminhos da salvação e civilização. Se os jovens ianques podiam se identificar com os seus antepassados e heróis, os jovens sul-americanos não percebiam que, no esquema americano, a posição deles seria de índios e mexicanos. Eles se identificavam com quem não queria a sua identificação, pois não admitia a sua identidade.

As novas gerações são doutrinadas por filmes e seriados que procuram mostrar como (n)os Estados Unidos (se) combatem os criminosos. As pessoas ficam na frente do televisor e acham que estão se divertindo, enquanto o seu cérebro está sendo conformado a ver o mundo como a plutocracia americana quer. São aulas de catecismo sob a aparência de pura ficção, ficção pura. Essa lavagem cerebral ocorre também no noticiário da grande mídia: é uma forma de totalitarismo, tanto mais eficaz quanto menos percebida como tal.

Essa lavagem cerebral já ocorre há um século e só tem aumentado. Não há reação da razão crítica, a mídia brasileira apenas propaga o que o establishment quer que seja propagado. O Brasil não faz parte da OTAN, mas a OTAN já faz parte do Brasil há dezenas de anos. Nas décadas de 1960-70 foram instaladas ditaduras na América Latina a pretexto de defender a democracia. Quando o Brasil descobriu o pré-sal, viu-se que havia muito petróleo e planejou-se um golpe contra a presidente eleita, o que teve dentro do país a cooperação de muitos parlamentares, jornalistas, promotores, juízes. A quem faz dentro do país a política de uma potência estrangeira chamava-se, no Estado Novo, de quinta-coluna. Hoje, tais pessoas esbravejam moralismo, são respeitadas e badaladas.

A OTAN representa os interesses da indústria bélica e de grandes empresas americanas. Ela diz o que a Comunidade Europeia deve fazer, e esta diz o que os presidentes e ministros dos países europeus ocidentais e centrais devem fazer. A Europa foi ocupada por tropas americanas no final da Segunda Guerra. Elas se estabeleceram e não saíram mais: antigas metrópoles imperiais foram ocupadas por uma ex-colônia inglesa e perderam a soberania. A OTAN foi a legitimação de uma ocupação, apresentada como aliança defensiva. Ela representa interesses econômicos e geopolíticos, que precisam ser legitimados pela supraestrutura ideativa, de esportes a bolsas de estudo, de turismo a filmes divertidos.

A eleição francesa recente teve por tema a aceitação ou não dessa dominação. Tanto a esquerda quanto a direita se propuseram lá ampliar a soberania nacional, o que envolveria uma ruptura com o status quo de bases aéreas, quartéis, bases navais, estacionamento de foguetes. Há inteligência suficiente na OTAN para saber que não conseguiriam. Foi previsto que a centro-direita iria conseguir manter o status quo francês, só que a contradição entre soberania nacional e presença estrangeira ainda não está resolvida e vai se desdobrar, com o avanço da extrema-direita xenófoba num país que desde 1789 tenta se apresentar como campeão da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

A mídia globalizada brasileira, tanto no bombardeio sígnico durante a Lava Jato quanto na Guerra da Ucrânia, tem sido de direita, fazendo o que a OTAN quer. No Brasil não se tem um canal russo de televisão a cabo, como se tem da Alemanha, França, Portugal, Japão, Inglaterra, Espanha. O canal chinês só fala inglês, não aparece ainda em espanhol ou português, as redes russas não estão presentes, um aplicativo como RT é pouco lido. Jornalistas mais críticos não só não têm espaço na mídia global como já foram vetados até em canais alternativos.

Finge-se que se está numa democracia, mas se vive num totalitarismo espiritual. Não há efetiva liberdade de expressão e manifestação, as pessoas não aprenderam a desenvolver uma liberdade interior de pensar por si. Quando parece haver tolerância é apenas porque o senhor dos anéis tem consciência da pouca importância do que aparece como alternativa.

Por que os jovens não aprendem a decifrar a manipulação de que são vítimas? Eles não se enxergam como vítimas: acham que estão apenas se divertindo. Ficam do lado dos “mocinhos”, como as crianças antigamente brincavam de “camonha”, que deve ser uma corruptela de “come on”, e que obrigava a levantar as mãos, como se os latinos e sul-americanos não estivessem mais para índios do que para wasps dominantes.

Há uma regressão mental em curso, que aumenta com uma profunda degradação moral, em que delitos e crimes são cometidos sem que ocorram punições aos culpados. Inventam-se culpas para os adversários, enquanto as sujeiras dos aliados são varridas para debaixo do tapete. Quando alguma coisa é contada, não tem consequências, é tornada irrelevante por outra notícia qualquer.

A razão crítica tende a resignar, porque percebe a própria impotência. Alguns procuram sendeiros alternativos, mas acabam participando do sistema ao atender a uma fração do mercado. A negação da negação não é confortável e precisa ser superada. Por que? Porque somos manipulados por uma metafísica salvacionista, que nos foi inculcada desde pequenos. A maioria vê a salvação no céu, depois da morte; a minoria, na terra, enquanto houver vida. Atitudes que parecem opostas, mas são complementares.

*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Benjamin e Adorno: confrontos (Ática).

 

Nota


[i] KOTHE, Flávio R. A narrativa trivial, Brasília, Editora da UnB.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Alysson Leandro Mascaro Luiz Bernardo Pericás Heraldo Campos Chico Whitaker Gilberto Lopes Andrew Korybko Otaviano Helene Andrés del Río Marcelo Guimarães Lima Jorge Luiz Souto Maior Paulo Nogueira Batista Jr Salem Nasser João Adolfo Hansen Dênis de Moraes Thomas Piketty Marcos Silva Paulo Capel Narvai Eleutério F. S. Prado Bento Prado Jr. Fernão Pessoa Ramos Igor Felippe Santos Luiz Roberto Alves Eugênio Bucci Marcus Ianoni Lorenzo Vitral Marilena Chauí Alexandre Aragão de Albuquerque Jean Pierre Chauvin Francisco de Oliveira Barros Júnior Jean Marc Von Der Weid José Geraldo Couto Gerson Almeida Ladislau Dowbor Luiz Eduardo Soares Yuri Martins-Fontes Luiz Werneck Vianna José Micaelson Lacerda Morais Rafael R. Ioris Lucas Fiaschetti Estevez Matheus Silveira de Souza Anderson Alves Esteves Jorge Branco Slavoj Žižek Ricardo Abramovay Fábio Konder Comparato Marcelo Módolo Antonio Martins Paulo Sérgio Pinheiro Annateresa Fabris Alexandre de Lima Castro Tranjan Eleonora Albano Antonino Infranca Chico Alencar Vinício Carrilho Martinez Renato Dagnino Berenice Bento Michel Goulart da Silva José Machado Moita Neto Plínio de Arruda Sampaio Jr. Eugênio Trivinho Dennis Oliveira Leonardo Boff Manchetômetro Gilberto Maringoni Juarez Guimarães Carla Teixeira Claudio Katz Elias Jabbour Bruno Machado André Singer Manuel Domingos Neto Lincoln Secco Tarso Genro Gabriel Cohn José Raimundo Trindade Denilson Cordeiro José Luís Fiori Leonardo Sacramento Mário Maestri Eliziário Andrade Ronald Rocha João Carlos Loebens Walnice Nogueira Galvão Anselm Jappe Marcos Aurélio da Silva Flávio R. Kothe Daniel Costa Luiz Marques Carlos Tautz Vanderlei Tenório Daniel Brazil Everaldo de Oliveira Andrade Samuel Kilsztajn Fernando Nogueira da Costa José Dirceu Boaventura de Sousa Santos Ronaldo Tadeu de Souza Henry Burnett Atilio A. Boron Afrânio Catani Bruno Fabricio Alcebino da Silva Maria Rita Kehl Francisco Fernandes Ladeira João Sette Whitaker Ferreira Priscila Figueiredo Daniel Afonso da Silva Rubens Pinto Lyra Luís Fernando Vitagliano Celso Frederico Ricardo Antunes Henri Acselrad Michael Roberts Bernardo Ricupero Luiz Renato Martins Francisco Pereira de Farias Luis Felipe Miguel Ronald León Núñez Mariarosaria Fabris Tadeu Valadares Leonardo Avritzer João Lanari Bo Remy José Fontana Celso Favaretto Érico Andrade Tales Ab'Sáber Luciano Nascimento Marilia Pacheco Fiorillo João Carlos Salles Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Milton Pinheiro Ari Marcelo Solon Valerio Arcary Kátia Gerab Baggio João Paulo Ayub Fonseca Airton Paschoa Marjorie C. Marona Ricardo Fabbrini Benicio Viero Schmidt Rodrigo de Faria José Costa Júnior Julian Rodrigues Eduardo Borges João Feres Júnior Ricardo Musse Liszt Vieira Sandra Bitencourt André Márcio Neves Soares Flávio Aguiar Michael Löwy Leda Maria Paulani Antônio Sales Rios Neto Osvaldo Coggiola Paulo Martins Paulo Fernandes Silveira Luiz Carlos Bresser-Pereira Alexandre de Freitas Barbosa Vladimir Safatle Caio Bugiato Armando Boito Sergio Amadeu da Silveira

NOVAS PUBLICAÇÕES