Amazônia – sob o domínio do crime

Imagem: Erland Melanton
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GERSON ALMEIDA*

O desmonte do Estado brasileiro serviu como salvo conduto e encorajou todo tipo de crime

O assassinato de Dom Phillips e de Bruno Pereira é resultado do desmonte deliberado e metódico das instituições do Estado brasileiro, responsáveis pelas políticas de fiscalização ambiental, pela proteção das terras indígenas e de seus povos. É, assim, uma tragédia anunciada e estimulada em incontáveis declarações de bolsonaro, que comemora que “o Ibama não atrapalha mais, pessoal”, em ato no qual exaltou a gestão de Ricardo Sales, o ex-ministro do meio ambiente que agia para aproveitar a tragédia da Pandemia e as incertezas do povo com a própria sobrevivência para “passar a boiada”.

Não há como escamotear que esse trabalho de desmonte serviu como salvo conduto e encorajou todo o tipo de crime, como mostram os sucessivos recordes de desmatamento, o crescimento da violência contra os povos indígenas, do tráfico de drogas, do garimpo ilegal e dos assassinatos de lideranças que lutam e resistem contra estas ilegalidades. É o que aponta a Comissão Pastoral da Terra, ao demonstrar que “houve uma intensificação dos conflitos durante o governo Temer e um salto assustador no governo bolsonaro, que se mantém numa média anual de cerca de 1.900 conflitos por terra a cada ano”.

Entre tantas questões, este crime brutal revela o quanto é funcional para o governo, cuja orientação fascista é cada vez mais evidente, agir para que o Estado nacional perca a soberania territorial de imensas áreas e abra espaço para que diferentes facções do crime organizado dominem esses territórios. E não apenas na Amazônia.

Não é novidade para ninguém a relação estreita do clã bolsonaro com as milícias que controlam numerosas territórios nos centros urbanos, uma relação cultivada por anos e acentuada a partir da chegada de bolsonaro à presidência. Por exemplo, em apenas quatro anos o deputado estadual (RJ), Flávio Bolsonaro, aprovou 495 moções e concedeu 32 medalhas a policiais militares, policiais civis, bombeiros, guardas municipais e membros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica (A República das Milícias, de Bruno Paes Manso). Entre os homenageados aparecem os mais conhecidos milicianos, como o ex-policial do Batalhão de Operações Especiais (Bope), Adriano Magalhães Nóbrega, o Capitão Nóbrega, acusado de liderar o Escritório do Crime, de ser chefe da milícia do Rio das Pedras e suspeito de assassinar a vereadora Marielle Franco e o Anderson. Adriano recebeu uma moção de louvor em 2003 e a medalha Tiradentes em 2005, sempre por iniciativa de Flávio, que, também, contratou a esposa de Adriano para o seu gabinete.

Como afirmou Bruno Paes Manso, “a vida pública do clã bolsonaro é um rastro das suas afinidades com os milicianos mais perigosos do Rio”. Eleito presidente da república, o clã parece estar trabalhando com afinco para que essas relações sejam ampliadas, não apenas com o estímulo ao armamento e desestímulo ao controle dessas armas e munições, como agindo para os infratores. Exemplo é a ação de Salles no ministério do meio-ambiente ao fazer de tudo para que as 15 maiores autuações em área desmatada (cerca de 400 mil hectares) não resultassem em pagamento de qualquer valor, segundo denúncia da WWF-Brasil.

Como é amplamente conhecido e fartamente documentado, há vastos territórios nas grandes cidades do país nos quais a soberania territorial do Estado foi substituída pelo domínio de diferentes grupos e facções ligadas principalmente ao tráfico de drogas e às milícias. Essas organizações criminosas submetem os moradores das áreas sob seu controle à um código de conduta próprio, no qual seus chefes concentram o papel de acusadores, juízes e promotores. Elas exercem um típico poder tirano, apoiado nas armas e na imposição do medo e, não por acaso, são as principais beneficiárias da facilitação da circulação de armas, munições e com o afrouxamento das regras que permitem o seu rastreamento. É possível compreender isto, senão como um convite ao crime e à impunidade?

Esses grupos atuam a partir de um comando altamente centralizado, muito organizado e fortemente armado, com ramificações cada vez extensas em diferentes setores da sociedade, o que lhes permite acumular poder econômico suficiente para avançar sobre o poder político e buscar consolidar um projeto próprio de poder.

Esta realidade é bem diferente da idealizada pelo pensamento liberal e consagrada no ordenamento democrático, que compreende o Estado como a única fonte “do direito de recorrer à força”. Max Weber, por exemplo, identifica o monopólio da violência como o elemento principal da legitimidade do poder estatal. Para ele, o Estado é “uma comunidade humana que se atribui (com êxito) o monopólio legítimo da violência física, nos limites de um território definido”, mas o que confere legitimidade para esse exercício do monopólio da força é o respeito às normas constitucionais, que devem orientar todas as ações dos agentes públicos, da burocracia estatal.

No Estado democrático de direito, portanto, não há legitimidade em qualquer ação não abrigada, rigorosamente, pelos preceitos constitucionais. O domínio é o da lei e não o da vontade ou arbítrio de nenhum indivíduo, seja qual for a posição que ocupe. Fora da legalidade democrática toda violência é abusiva, pois é o seu respeito que diferencia a civilização da barbárie. Sem compromisso com a democracia, as ações do atual governante estimulam a ampliação da violência política no país.

Não nos enganemos, o objetivo de bolsonaro e dos vários interesses criminosos que sabem ser protegidos pelas suas ações, é o de avançar na produção do caos e tentar amedrontar a nação e, ato contínuo, apresentar-se como o líder capaz de trazer o país à ordem. Uma ordem autoritária, amplamente excludente e claramente identificada com a experiência dos regimes fascistas.

 

Um setor dos ruralistas já age como se milícia fosse

Há quatro anos atrás, a Caravana de Lula na região Sul teve que alterar seu roteiro por falta de garantias de segurança. Havia uma ação organizada por ruralistas de extrema-direita que agiam, orgulhosamente, como jagunços e milicianos, usando caminhões, tratores, pedras e relhos para bloquear a livre circulação de Lula e agredir seus apoiadores.

Um caso emblemático ocorreu em Bagé, quando o presidente da Associação Rural Bagé, Rodrigo Moglia, liderou um protesto para impedir a visita de Lula à uma universidade criada no seu próprio governo. O então prefeito de Bagé, Divaldo Lara (PTB) e a senadora Ana Amélia Lemos (PSD) fizeram discursos acalorados e saudaram a violência política contra os adversários, exaltando o uso de pedras, ovos e relhos como instrumentos legítimos da política. Adriano da Nóbrega não faria discurso melhor.

Episódios como estes não param de acontecer – como o assassinato de Dom Phillips e de Bruno Pereira confirmam – mostrando que o bolsonarismo e suas milícias podem tentar estender para todo o país a mesma tirania e medo que já impõem sobre as populações nas áreas em que a soberania territorial do Estado foi substituída pelo poder territorial das organizações criminosas. Essa tentativa de “miliciarização” da campanha eleitoral não significa necessariamente a expansão territorial das milícias, mas a adesão de setores sociais da direita a algumas das suas práticas, como aconteceu contra a Caravana de Lula do sul, em 2018. O exemplo mais recente é o de Uberlândia, em 15 de junho, quando um drone jogou veneno sobre as pessoas presentes em ato público de Lula e as constantes tentativas de intimidação das atividades públicas de Lula nesta pré-campanha.

A expressiva liderança de Lula em todas as pesquisar de opinião e o grande arco de forças democráticas que está sendo construído em seu apoio para derrotar bolsonaro e o bolsonarismo, mostra que a larga maioria da sociedade não quer que o Brasil seja transformado numa grande Rio das Pedras, ou Vale do Javari. Ao contrário.

O dilema incontornável que as forças políticas e sociais do país terão que enfrentar é a de respeitar a soberania popular e atuar para que as eleições sejam feitas em condições democráticas, ou se vão render-se ao desejo dos bolsões golpistas de tutelar o processo, como o ofício do ministro da defesa ao presidente do TSE revela. No processo eleitoral deste ano, a luta será por recuperar o estado democrático de direito, a justiça social e a soberania nacional, o que só poderá acontecer com a derrota de Jair Bolsonaro e do bolsonarismo.

*Gerson Almeida é mestre em sociologia pela UFRGS.

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Bolsonarismo – entre o empreendedorismo e o autoritarismo
Por CARLOS OCKÉ: A ligação entre bolsonarismo e neoliberalismo tem laços profundos amarrados nessa figura mitológica do "poupador"
Fim do Qualis?
Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA: A não exigência de critérios de qualidade na editoria dos periódicos vai remeter pesquisadores, sem dó ou piedade, para um submundo perverso que já existe no meio acadêmico: o mundo da competição, agora subsidiado pela subjetividade mercantil
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
Distorções do grunge
Por HELCIO HERBERT NETO: O desamparo da vida em Seattle ia na direção oposta aos yuppies de Wall Street. E a desilusão não era uma performance vazia
Carlos Diegues (1940-2025)
Por VICTOR SANTOS VIGNERON: Considerações sobre a trajetória e vida de Cacá Diegues
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui
Por FLÁVIO AGUIAR: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles
A força econômica da doença
Por RICARDO ABRAMOVAY: Parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício
Maria José Lourenço (1945/2025)
Por VALERIO ARCARY: Na hora mais triste da vida, que é a hora do adeus, Zezé está sendo lembrada por muitos
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES