Por LUIZ ROBERTO ALVES*
Nenhum dos pretendentes a terceira via significam algo novo, inesperado ou brilhante
O dom humano da linguagem merece respeito, quer por induzir a inteligência na explicação da realidade, quer pela sua capacidade única de se dirigir a outra pessoa, criar correspondência, reciprocidade e encontro. Tais significados promovem e impulsionam a vida social. Não é sem razão que a linguagem linguística se organiza na vida para forjar a essência do existir, que é a ação educativa, isto é, organiza normas, metodologias, estratégias e sentimentos a favor das pessoas que nascem pequeninas, incompletas e que se humanizam por etapas também linguisticamente acompanhadas. Do mesmo modo, essa linguagem cria conexões poderosas de caráter ético e estético em direção à constituição da política.
Eis que ao arrepio desse lugar ético-estético, a atual campanha às eleições de outubro desencadeia um processo de traições, embustes, malversações e desrespeito para com o dom humano descoberto e revelado. Ele se degenera, se desmarca do ético e do estético e engendra o fim da política. Uma negação das negações, com a cumplicidade de setores da população que ainda não se conscientizaram de sua humanidade e menos ainda de sua humanização, por sinal o mais doloroso tema das obras de Paulo Freire.
Diante do término da campanha eleitoral dentro de poucas semanas, as terceiras vias afloraram quando quase ninguém acreditava nelas. Já são uma realidade plural, independentemente dos seus resultados quantitativos nas enquetes e pesquisas. Estão a criar um discurso degenerado, a rigor antipolítico. E têm nome: Ciro Gomes, Soraya Thronicke e Simone Tebet no espaço federal, Rodrigo Garcia em São Paulo. Não se discute aqui a esfera do inominável agarrado ao Planalto e seus penduricalhos eleitorais nos diversos estados.
Eles são o que são: não exercitam o dom da linguagem e não se organizam pelo movimento do pensamento, mas pelo vômito da bílis. Somente os chamados “evangélicos” ainda não se converteram à verdade e ainda apoiam tais derramamentos de fel. No entanto, os falsos profetas-pastores têm limites, quer na vociferação, quer na compra dos votos dos crentes. Serão desmoralizados tanto quanto os pastores-ladrões do MEC, que roubaram valores e direitos de milhões de crianças e adolescentes, incluídos filhos e filhas dos crentes evangélicos.
Nenhum desses pretendentes a terceira via significam algo novo, inesperado ou brilhante. Essas pessoas representam os antigos esquemas de poder republicano nos territórios de poder familiar e partidário, bem como nos jogos do mando e nas exposições de cargos e transações eleitoreiras. No entanto, o mal que estão a praticar em inserções televisivas e debates de ampla expressão pública (sem nenhuma cobrança dos operadores de comunicação ou jornalismo) é a negação dos constituintes da política, do ético e do estético. Assassinam, deliberadamente, o sentido da política.
Não são linguisticamente desarticulados como a tropa eleitoral do presidente. Ao contrário, organizam bem seus argumentos, mas estes são introduzidos por falas que degeneram seus argumentos. Aos fatos.
Nas inserções e debates midiatizados, os aspirantes a terceira via no plano nacional negam sumariamente a justiça que livrou o ex-presidente Lula dos “espetáculos” da Lava Jato e, mais que isso, demonstrou toda a parcialidade daquela justiça fundada no engrandecimento de Sergio Moro & Cia. Ao negarem o que a justiça brasileira fez (enquanto a usam noutros discursos) eles e elas pintam o ex-presidente como chefe da corrupção em anos anteriores. Falam em uníssono, são a mesma voz e para isso não precisaram combinar. Bastou intuir. Ciro Gomes é o mais cínico, o qual visualiza a fantasmagórica derrocada do ex-presidente para disputar com Jair Bolsonaro, que de certa forma eles querem preservar para a batalha no segundo turno.
O que é fático é que o ex-presidente não foi chefe de corrupção, pois o sistema de justiça, que merece muitas críticas, merece também o respeito e a visibilidade de seus atos. Ao impingirem essa chefia da corrupção, ele e elas degeneram seus próprios discursos, que passam a ser dirigidos pela totalidade do pensamento cínico e desvirtuado. Nenhuma proposta ou plano de governo propalado por ele e elas escapa à direção daquele pensamento. Segundo ele, nada do que foi feito nos governos entre 2003 e 2016 tem valor, pois a imagem da corrupção total está posta. A partir daí desandam a mentira, o esquecimento planejado e o não-reconhecimento dos fatos que a história política já acumulou para aquele período, especialmente em políticas de cultura, educação, habitação, saúde, cuidado familiar e direitos humanos. Nada existiu. Tudo foi “corrupção”.
Tal discurso – que denomino como a perda do dom criativo da linguagem por essas pessoas – enquanto altera parcialmente o jogo eleitoral, pois é apelativo na sociedade mediocremente politizada, incrimina o interior do pensamento de tais falantes, provoca a confusão neurônica e a rigor transforma Ciro Gomes, Simone Tebet e Soraya Thronicke em robôs da congestão eleitoral, cujo mantra sem base na justiça e no direito desqualifica todas as suas ideias e propostas. Essas três pessoas não são mais candidatas à responsabilidade da república federativa, mas membros do coral bolsonarista que, na ausência da linguagem articulada, compreensiva e analista da experiência social, nada mais fazem do que apontar para si numa multidão de gestos que já assassinou a linguagem.
Daí que se entende que Simone Tebet se passe por uma feminista que jamais foi, que Ciro Gomes pise sobre sua formação em direito e peça votos como quem pede pirulito ao irmão mais velho, genuflexo. Quanto à senhora Soraya Thronicke, basta dizer que está, circunstancialmente, fora das hostes bolsonaristas, mas é pessoa de confiança da bancada da bala. Mais dramático para tais candidaturas é que essa robotização em que foram encalacrados termina por despersonalizá-las plenamente, pois foram desterradas da ciência do pensamento, que exige um trabalho equilibrado, capaz de tratar com adequação os fatos e dados da história; em consequência, acabam de entrar no vale-tudo. De fato, passam a ser como a personagem Zellig, de Woody Allen. Ela deixa de ser a si mesmo para mimetizar a relação com os outros. É doente entre doentes, sadio entre sadios, apoia tudo o que se pede dela, fica preto, branco e amarelo a depender daqueles com quem se encontra e assim por diante. Um camaleão digno da compaixão humana, mas não de votos para dirigir 220 milhões de pessoas.
Mais tarde, Ciro Gomes, Soraya Thronicke e Simone Tebet terão de se encontrar no travesseiro e talvez se envergonhem de tamanha despersonalização. Ou (coisa comum no Brasil colonizado e neoliberal) se prepararão para novos cargos, visto que talvez não venham a fazer a análise de seu drama. Não uso a palavra tragédia, pois ela é fenômeno da natureza de semideuses, do mundo dos panteões. Aqui estamos no mundo humano, diante da oportunidade de recriar e reinventar o Brasil.
Quanto ao Rodrigo Garcia, dá dó. O mundo dele não é o de São Paulo. Essa figura ainda jovem perde todas as oportunidades de pensar o estado que contém em si o Brasil histórico e profundo, pois cria o “Rodrigoestado”, lugar simplista e, portanto, falto de diversidade, mesmo porque a diversidade e a complexidade estão resolvidas no rodrigoestado. Também lugar sem ideologia, sem opressão, sem desafios. Ora, ele já resolveu, mesmo antes de começar a campanha, todos os problemas do rodrigoestado, imaginado por ele como São Paulo. Como? Ora, seus relatos o mostram como construtor do metrô, das rodovias, das ferrovias, dos hospitais, das escolas e tudo o mais. Do mesmo modo, é o líder de todos os prefeitos e prefeitas do estado. Rodrigo não precisaria de programa, exceto uma expressão: Rodrigogovernador: tudo está solucionado.
Em Rodrigo Garcia o estado paulista, real, em que se confrontam bandeirantes e modernistas, constituição e caudilhismo, complexidade e simplismo político, esse estado já bem estudado na história da república não existe. Essa mancha no mapa do sudeste é obra do Rodrigo. E não adianta ele voltar atrás agora para mostrar etapas e percalços administrativos, pois seu ímpeto, desde o início, foi do total solucionado, tudo dominado em si mesmo.
Rodrigo Garcia é fruto legítimo da ditadura dissimulada. Fruto da alienação do pensamento em face da complexidade do real. Ainda que tenha tido notícias dos impasses que fizeram sofrer Glauber Rocha, Milton Santos, Nise da Silveira, Florestan, Carolina, Paulo Freire e a moçada perseguida e morta, no rodrigoestado nada disso move os pêndulos da história contemporânea. Se ele citar os fenômenos, será para engoli-los em suas soluções simplistas. Rodrigo Garcia quer votos de fascistas, direitistas, esquerdistas, mezzocentristas, leleistas, simplistas, maluquistas, qualquer coisa e qualquer um. Não porque se esforce sequer para conquistar votos, mas porque ele é o sorvedouro de tudo e de todos. O rodrigoestado. L’état c’est moi. No entanto, Rodrigo é um rei um pouco avacalhado a disputar o voto na sociedade que pelo menos afirma direitos democráticos.
Mas ele não é inofensivo. Faz o que fazem Ciro, Tebet e Thronicke: os outros não existem, a história não existe e o vale-tudo é o rei da brincadeira egocêntrica. Para essas pessoas existe a contabilidade dos números. Em Rodrigo Garcia existe o estado centralizado nele, construído por ele e para ele, como se fosse herança de ancestrais.
Rodrigo Garcia não é quixotesco; muito ao contrário, ele não partilha da beleza enlouquecida do homem de la Mancha. Rodrigo Garcia toma conta do que é, de fato, dos outros, no mínimo compartilhável, pois açambarca criações alheias, capitaliza supostas obras, dirige uma totalidade que não lhe foi dada. Rodrigo Garcia seria boa personagem para Machado de Assis, Lima Barreto e Graciliano Ramos: um trapalhão poderoso e ofensivo, ou um simplificador que termina por anular a si mesmo. Melhor seria que não disputasse votos e sim fizesse um testamento público de todas as suas obras, principalmente as imaginárias.
Que os demais candidatos e candidatas se acautelem.
*Luiz Roberto Alves é professor-pesquisador sênior da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Autor, entre outros livros, de Administrar via cultura: revolução educativo-cultural na ex-pauliceia desvairada, 1935-1938 (Alameda).
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