Uma breve história da igualdade

Lubaina Himid, Freedom and Change, 1984
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JORGE FÉLIX*

Comentário sobre o livro recém-editado de Thomas Piketty

O surgimento do economista francês Thomas Piketty no debate público mundial, em 2014, ainda precisa ser revisto pelos pesquisadores da comunicação como um dos maiores vexames do jornalismo econômico mainstream. O fato de o hoje best-seller planetário Capital no século XXI, traduzido em mais de 40 idiomas e com vendas acima de 2,5 milhões de exemplares, revelar uma tendência consistente de concentração de riqueza no funcionamento do capitalismo contemporâneo e defender como remédio um imposto global sobre grandes fortunas e herança da ordem de 80%, fez os mais renomados veículos da imprensa internacional perderem a compostura, a ética e a exatidão e partirem para uma cobertura de desinformação muito antes de arvorarem-se contra opositores de fake news.

É conveniente lembrar esse triste episódio para o jornalismo sempre quando um novo livro do autor chega às livrarias, como agora com Uma breve história da igualdade, que acaba de ser traduzido no Brasil. Essa lembrança é como um antídoto para interpretações equivocadas dos jornalistas de economia e dos leitores. The Economist (que o chamou de “Novo Marx”), Financial Times, Bloomberg passaram maus momentos de credibilidade por estarem mais preocupados em desqualificar a pesquisa de Thomas Piketty do que de analisá-la com a civilidade que deve ser dispensada a todo trabalho acadêmico.

Em 2019, quando lançou Capital e ideologia na França, Thomas Piketty já estava devidamente vacinado contra o vírus do mau jornalismo. A recepção ao seu novo calhamaço [quase 1.200 páginas, parelho ao primeiro livro] foi mais fria, porém, ganhou muito em qualidade. É curioso verificar que os mesmos jornalistas que atacaram Capital no século XXI haviam perdido o fôlego para encarar as novas descobertas e reflexões de Thomas Piketty, justamente no momento em que o mundo se rendia à sua sugestão de adotar programas de transferência direta de renda – embora o autor, em entrevista que fiz com ele, em 2013, portanto, antes de seu sucesso mundial, tenha afirmado que sempre dará preferência à adoção de um sistema tributário progressivo (apesar de uma medida não anular ou dispensar a outra no árduo combate à desigualdade). Ou os jornalistas e veículos de Economia perderam o medo do “Novo Marx” e do “comunismo” ou ficaram, de fato, envergonhados (sem nunca reconhecerem o erro) quando viram governos liberais se “pikettyzarem”, sobretudo depois da pandemia de Covid-19.

O trabalho de Thomas Piketty, porém, é muito mais complexo do que a busca por cliques ou a necessidade de fazer eco à voz do “mercado”. No entanto, embora best-seller, o autor permanece confinado aos muros da universidade. Com exceção do slogan do Occupy Wall StreetI’m 99% – que apareceu em várias placas dos manifestantes, pouco da teoria de Thomas Piketty chegou às ruas. Salvo impulsionar o debate sobre a desigualdade. Mas mesmo o slogan citado ninguém sabia que teve origem em seus trabalhos, apesar de Joseph Stiglitz, a quem o slogan foi atribuído, tenha revelado a legítima autoria (ok, em uma nota de roda-pé!).

É preciso um profundo – profundíssimo – conhecimento econômico, histórico, sociológico, antropológico para dar conta da totalidade de seus argumentos e, talvez, oferecer alguma crítica ou reflexão. Isso, até hoje, como visto com os próprios colegas jornalistas, é um limitador para se entrar no debate. Quebrar essa barreira é a intenção de Thomas Piketty, agora, com seu Uma breve história da igualdade. O autor se propõe a escrever justamente para aqueles que jamais tiveram a coragem de enfrentar suas verdadeiras “bíblias” anteriores. Ou talvez que, antes de fazê-lo, precisam frequentar aulas de alinhamento. Pode ser válido. Inclusive para jornalistas econômicos. Nem sempre Thomas Piketty, nesse livro, é tão simples quanto imaginou ser, no entanto, incomparavelmente, o livro é bem mais acessível e conta a mesma história dos livros anteriores.

O leitor mais familiarizado com a obra de Thomas Piketty perceberá um amadurecimento de determinados pontos teóricos que vão se tornando identificadores de seu pensamento sobre a desigualdade social e a condição sine qua non para o mundo avançar no que ele chama de “marcha rumo à igualdade” – a qual, aliás, para ele, o mundo está condenado. Ainda bem. Embora as desigualdades continuem a se estabelecer em níveis consideráveis e injustificáveis, como sabemos, o leitor encontra um autor muito mais otimista. E quem não está precisando?

Thomas Piketty, como sublinha desde os seus primeiros trabalhos acadêmicos e foi quase uma pedra fundadora de sua linha de pesquisa, destaca a importância da “forte pressão demográfica” em toda a história da igualdade (ou da desigualdade) e como o envelhecimento populacional jogará um papel de destaque no decorrer dessa marcha da humanidade. E seus dispositivos de apoio para torná-la efetiva são: a democracia (sufrágio universal, liberdade de imprensa, direito internacional), o imposto progressivo sobre herança, renda e propriedade, a educação gratuita e obrigatória (e ele defende agora que deve ser “complexa e interdisciplinar”), a saúde universal (alçada nesse livro a um posto bem maior) e a cogestão empresarial junto ao direito sindical.

Esse último ponto merece uma atenção especial. Desde Capital e ideologia, Thomas Piketty explora esse ponto como indispensável dentro de qualquer perspectiva de distribuição de riqueza. De acordo com ele, no atual “hipercapitalismo”, o modelo de administração por gestores ou CEOs remunerados por bonificação e, portanto, centrados apenas no retorno sobre o investimento aos acionistas é um dos maiores estorvos à igualdade.

Sua proposta é a transição para um “socialismo participativo” (como ele usou em Capital e ideologia) ou “socialismo democrático, ecológico e diversificado” (que ele acrescenta agora), baseado em uma “propriedade mista” onde haverá propriedade pública, social e temporária. Dessa forma será possível superar a dicotomia entre o modelo estatal (soviético) versus modelo capitalista (norte-americano). A forma de se instaurar a propriedade temporária é o sistema tributário progressivo, pois, com mais recursos o Estado distribuiria a riqueza por meio de programas de transferência de renda, a começar pelos jovens.

O público leigo desconfiado, com razão, de projeções ou promessas econômicas pode até receber as “utopias” de Thomas Piketty com ceticismo. Mas a leitura de Uma breve história da igualdade é menos teoria e mais uma aula da evolução do pacto social, com suas crueldades, como a herança da escravidão, seus privilégios legitimados pela ideologia e suas revoluções e reações. Antes da “marcha da igualdade”, atestada por Thomas Piketty, precisamos entender o que permitiu a humanidade dar os primeiros passos. Nada foi conquistado sem luta social e o leitor tem no livro um bom resumo dessa lenta desconcentração do poder e da propriedade.

O prognóstico do autor é de que, sendo a desigualdade uma construção política a partir de escolhas históricas, como os sistemas tributário, educacional e eleitoral, outras mobilizações transformadoras serão suscitadas pela injustiça social. Mesmo que isso ainda dependa muito do papel da imprensa, Thomas Piketty insiste que outro mundo é possível, embora ainda incerto.

*Jorge Félix é jornalista e professor de economia no bacharelado em Gerontologia na EACH- USP. Autor, entre outros livros, de Economia da longevidade: o envelhecimento populacional muito além da previdência (Ed. 106 Ideias).

106).

Publicado originalmente no site NeoFeed.

Referência


Thomas Piketty. Uma breve história da igualdade. Tradução: Maria de Fátima Oliva Do Coutto. São Paulo, Editora Intrínseca, 2022, 304 págs.

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Thomas Piketty Eduardo Borges Paulo Fernandes Silveira Francisco Pereira de Farias Mariarosaria Fabris Francisco de Oliveira Barros Júnior Tarso Genro Vladimir Safatle Michael Roberts Flávio Aguiar Manuel Domingos Neto Berenice Bento Airton Paschoa Caio Bugiato Sergio Amadeu da Silveira Jorge Luiz Souto Maior Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Bento Prado Jr. Osvaldo Coggiola Yuri Martins-Fontes Ari Marcelo Solon João Lanari Bo Rodrigo de Faria Renato Dagnino Igor Felippe Santos Lorenzo Vitral Priscila Figueiredo Andrew Korybko Rubens Pinto Lyra Boaventura de Sousa Santos Walnice Nogueira Galvão Valerio Arcary José Costa Júnior José Luís Fiori Luiz Bernardo Pericás Denilson Cordeiro Armando Boito Eliziário Andrade Michel Goulart da Silva Antonio Martins Salem Nasser Ladislau Dowbor Ronald León Núñez João Feres Júnior Luiz Roberto Alves Jorge Branco João Paulo Ayub Fonseca Paulo Martins Francisco Fernandes Ladeira Eugênio Trivinho Henri Acselrad Maria Rita Kehl Rafael R. Ioris Alexandre Aragão de Albuquerque Everaldo de Oliveira Andrade Bruno Machado Julian Rodrigues Luis Felipe Miguel Alexandre de Freitas Barbosa Luiz Marques Liszt Vieira Vanderlei Tenório Luiz Carlos Bresser-Pereira Marcelo Módolo Leonardo Sacramento Marilena Chauí Luiz Werneck Vianna Vinício Carrilho Martinez Juarez Guimarães Henry Burnett Luiz Renato Martins Gilberto Maringoni Remy José Fontana João Adolfo Hansen Mário Maestri Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marjorie C. Marona Celso Favaretto Afrânio Catani Anselm Jappe Lucas Fiaschetti Estevez Milton Pinheiro Eleutério F. S. Prado Luís Fernando Vitagliano Celso Frederico Marcus Ianoni Leonardo Boff Bernardo Ricupero Carla Teixeira Kátia Gerab Baggio Antônio Sales Rios Neto Jean Marc Von Der Weid Ronald Rocha Chico Alencar João Carlos Loebens Daniel Brazil Heraldo Campos Matheus Silveira de Souza Eleonora Albano Paulo Capel Narvai Annateresa Fabris Elias Jabbour Ricardo Antunes Alysson Leandro Mascaro José Raimundo Trindade Lincoln Secco Atilio A. Boron Claudio Katz José Micaelson Lacerda Morais Andrés del Río Dênis de Moraes Leda Maria Paulani Ronaldo Tadeu de Souza Antonino Infranca André Márcio Neves Soares João Carlos Salles Leonardo Avritzer Ricardo Musse Paulo Sérgio Pinheiro Sandra Bitencourt Marcos Silva Carlos Tautz Tadeu Valadares Gerson Almeida Benicio Viero Schmidt Marcos Aurélio da Silva Eugênio Bucci Fernão Pessoa Ramos Luciano Nascimento Ricardo Fabbrini Chico Whitaker Flávio R. Kothe Marcelo Guimarães Lima João Sette Whitaker Ferreira Fernando Nogueira da Costa Daniel Costa Manchetômetro José Geraldo Couto José Dirceu Michael Löwy Ricardo Abramovay Jean Pierre Chauvin Anderson Alves Esteves Gabriel Cohn Paulo Nogueira Batista Jr Slavoj Žižek Marilia Pacheco Fiorillo Daniel Afonso da Silva Alexandre de Lima Castro Tranjan Samuel Kilsztajn Fábio Konder Comparato Tales Ab'Sáber Bruno Fabricio Alcebino da Silva Érico Andrade José Machado Moita Neto Luiz Eduardo Soares Dennis Oliveira André Singer Otaviano Helene Gilberto Lopes

NOVAS PUBLICAÇÕES