A eleição em São Paulo

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Por LINCOLN SECCO*

São Paulo mistura o ultramoderno e sobrevivências coloniais

Os resultados do primeiro turno de 2022 expuseram uma vez mais a fratura social e regional do Brasil. Desde 2010 os candidatos que se apresentaram no campo do antipetismo obtiveram no estado de São Paulo percentuais entre 40,7% e 53% dos votos válidos em primeiro turno.

Em 2011, identifiquei uma questão meridional no Brasil no livro História do PT. A inspiração era evidentemente Antônio Gramsci e nem era original. Nos anos 1960 Otto Maria Carpeaux sugeriu que temos no país uma questão meridional pelo avesso. Mas a preocupação dele era com o nordeste do país. A rigor, se tratava de um problema setentrional.

O que parece existir no Sudeste é um novo padrão de ajustamento da superestrutura política às necessidades de uma economia desindustrializada, agroexportadora e dominada por serviços dinâmicos, porém dependentes de importações tecnológicas.

 

Riqueza e “atraso”

Essa mistura de ultramoderno e sobrevivências coloniais confere a São Paulo o ar de um estado rico, apesar da população pobre; com Universidades públicas de ponta e escolas básicas precárias; em que tudo parece funcionar (saúde, estradas, transportes), porém mais ou menos. É também um estado da classe média do mundo corporativo e de funcionários de carreiras estatais de altos salários. Em contraste com a maior parte do país, a maioria de sua população é branca e sua elite tem um poder de comunicação e difusão cultural capaz de desestabilizar governos que não lhe interessam. É o seu simulacro de poder moderador.

A questão meridional identificada na parte final de História do PT dizia respeito a uma hegemonia insatisfeita das classes dominantes “paulistas” (na verdade, espalhadas pelo centro oeste e sul). Seus valores predominam, mas não têm aderência à vida cotidiana. Incapazes de vencer eleições de 2002 a 2014 buscaram apoio em setores militares, do Judiciário e da mídia para destruir a reputação dos adversários. Essa combinação de força e consenso foi insuficiente para virar o jogo eleitoral.

A hegemonia “paulista” persistiu porque em nenhum momento os governos petistas modificaram radicalmente os fundamentos da economia: políticas sociais relevantes e projetos desenvolvimentistas existiram, mas o governo foi derrubado antes de suas políticas chegarem a um patamar superior.

Ao contrário da social-democracia europeia (que ampliou seu eleitorado na classe média), o PT cresceu agregando os setores marginalizados da classe trabalhadora aos operários e funcionários públicos que forneciam sua base inicial. A razão disso é que a Europa industrializada não tinha as imensas reservas de mão de obra empobrecida que o Brasil tem. Mas depois de 13 anos de predomínio as alianças sociais do PT encontraram o seu limite.

 

Sociedade civil

Antonio Gramsci pensou a questão meridional do ângulo de uma sociedade de capitalismo retardatário e de um território que se unificou politicamente, mas não socialmente. Dessa maneira, ele é muito mais o pensador de um ocidente incompleto assemelhado às sociedades latino-americanas, como propôs Juan Carlos Portantiero em seu célebre livro Los usos de Gramsci. Temos uma sociedade civil complexa, típica do ocidente gramsciano, porém desarticulada. O Estado integral é uma justaposição de tensões acirradas e não há uma hegemonia estável. Nos Cadernos do cárcere encontramos formas indecisas, campos de força, arranjos e rearranjos constantes que deixam de lado a ideia de um sistema hegemônico em favor de uma noção processual de hegemonia.

No Brasil a questão meridional manifesta exatamente a complexidade da sociedade civil, mas também sua desarticulação. É o nó górdio da democracia brasileira. O fascismo busca compor uma falsa unidade nacional dando às classes médias e a setores empobrecidos uma nova direção ideológica, mas que objetiva eliminar as expressões culturais e políticas da maior parte da população (a que vota contra ou se abstêm de votar na extrema direita).

Em fases de crescimento econômico as tensões são acomodadas, quando a crise se instala, o sistema político se torna instável e pró cíclico, diminuindo a capacidade de um governo progressista adotar medidas de estímulo da demanda. Para mudar isso, seria preciso incorporar parte das exigências das camadas médias no programa progressista, retirá-las das garras do capital financeiro, substituir a forma financeirizada dos seus interesses por uma nova expressão política fundada na produção. Um novo modelo de desenvolvimento precisa se articular a uma inversão do modelo de tributação.

Uma classe social que não ganhou nada dos governos progressistas e cujos preconceitos foram exacerbados pela perda de status diante da ascensão dos mais pobres não apoiará pautas de esquerda. Ao menos não as centrais e que dizem respeito à classe trabalhadora. Ela se divide entre o neoliberalismo progressista e o neoliberalismo regressivo. O fascismo conquistou a maior parte para essa segunda tendência. Mas render-se à outra tendência e rebaixar o programa só importa à oligarquia eleitoral dos partidos de esquerda.[i] No curto prazo pode salvar a todos nós, mas no médio prazo cultiva novos monstros.

 

Nova forma

Isso não surpreende a muitos de nós que dizíamos isso na primeira década desse século.[ii] Aliás, surpresos ficaríamos se aquela classe média se inclinasse a favor da esquerda.[iii] Assim como os pobres votam acertadamente no PT pelos seus interesses materiais, grande parte das camadas médias fazem o mesmo contra a esquerda. Essa luta entre setores médios e pobres precisa ser substituída pela luta de ambos contra os muito ricos.

Na História do PT busquei tratar tanto das formas que o partido assumiu ao longo do tempo quanto dos seus conteúdos programáticos. Isso porque a forma não é exterior ao conteúdo e nem provêm de fora. Ela é inseparável do desenvolvimento contraditório do próprio conteúdo. É provável que ainda não tenhamos encontrado uma nova forma para dar conta da segmentação dos valores e de novas alianças sociais. Mas essa é uma tarefa para o futuro, agora o PT deve vencer com as armas que tem.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê).

 

Notas


[i]A expressão é usada por Eduardo Bellandi, antigo militante do PT.

[ii]Cito novamente Eduardo Bellandi com quem sempre discuti essa questão quando escrevia a História do PT. Recentemente Breno Altman fez excelente análise em seu programa “20 minutos” mostrando de forma didática e acurada como lidar com a nossa questão meridional. Lembremos também que as camadas médias não são homogêneas e que o PT obtém milhões de votos cruciais em São Paulo.

[iii] Há que se considerar o crescimento do PIB nordestino acima da média do país durante os governos Lula, como pontuou Patrícia Valim. Isso explica a adesão majoritária do Nordeste ao PT.

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