Por ANNATERESA FABRIS*
Considerações sobre as obras e a trajetória da artista plástica.
Ao comentar uma de suas obras – a Bailarina realizada em 2007, que integra a coleção do Instituto Figueiredo Ferraz –, Monica Piloni coloca-a sob o signo da exceção. Define-a, de fato, “uma espécie de ‘monstra’ de Frankenstein”, por ser resultado da combinação do próprio corpo e daqueles de dois modelos vivos.
A evocação do monstro imaginário concebido por Mary Shelley no começo do século XIX como “uma colcha de retalhos de pedaços de outros corpos, sem memória e sem nome”, destituída de “qualquer princípio de reconhecimento” e, logo, de qualquer identidade (Tucherman), demonstra que a artista está colocando no centro de seu processo criador a problemática de um ser artificial, fruto de uma intervenção técnica, que lhe permite questionar a distinção entre sujeito e objeto.[1]
Tendo em vista o ideal de beleza grego, poder-se-ia objetar que Monica Piloni está configurando o corpo da bailarina a partir da seleção dos aspectos mais belos de cada modelo, mas uma análise da obra põe em xeque essa dúvida. A álgida bailarina loira, que representa a primeira experiência de life-casting, não só não é perfeita, como é resultado de uma montagem de elementos heterogêneos, que nada mais faz do que apontar para um diálogo tenso com a ideia de desumanização da arte, tão discutida pelas vanguardas históricas.
Como lembra Eliane Robert Moraes, os artistas modernos colocam no centro de suas atenções uma problematização do corpo congenial à percepção de um mundo voltado para a “destruição das integridades”. O corpo concebido como “um todo através do qual o sujeito se compõe e se reconhece como individualidade” torna-se um alvo preferencial da arte moderna, que se dedica à tarefa de destruí-lo, de desarticular sua matéria, de apresentá-lo fragmentado, decomposto, disperso.
A problemática da desarticulação torna-se ainda mais acentuada nas sete fotografias coloridas da série “No meu quarto” (2014), nas quais Monica Piloni apresenta de maneira hiper-realista o próprio corpo fragmentado e reconfigurado em composições absolutamente antinaturais. Sem levar em conta a realidade anatômica, a artista dispõe moldes de partes do próprio corpo – pernas, braços e a cabeça marcada por um semblante melancólico – na cama, no sofá, no chão e com eles configura singulares naturezas-mortas, nas quais a desordem e o desregramento parecem ser as diretrizes dominantes. Pablo Di Giulio, diretor da galeria Fass (atual Utópica), que apresentou a série em 2014,[2] destaca aquelas que, a seu ver, são as questões centrais do conjunto: busca da integridade, sexualidade, representação e aparência vistas pelo prisma da desconstrução do corpo no espaço.
Duas composições – E por que haverias de querer minha alma na tua cama? e Haverias de querer minha alma? – destacam-se pela impossibilidade de corresponder a uma forma humana estável e consistente. Em outras, intituladas Na tua cama ou na minha alma, E se não houver mais alma? e Porque na minha cama não há alma alguma, predominam uma tensão erótica bastante explícita e um clima de expectativa. A estranha posição da cabeça, visivelmente dissociada dos demais membros, leva a pensar na perda de si mesmo vivenciada pelo corpo erotizado. Este, no entanto, recupera o domínio de si na sexta imagem da sequência, quando a modelo passa a questionar sem rodeios a emoção física por meio de um distanciamento crítico, emblemado no título E eu pergunto: por quê?
Como a própria artista esclarece, o título de uma das composições mais perturbadoras, E por que haverias de querer minha alma na tua cama?, provém de um dos poemas do livro Do desejo (1992), de Hilda Hilst. Os demais foram uma consequência do primeiro, obtidos a partir da desconstrução e reconstrução da mesma frase e de uma ligeira alteração de seu sentido “como num surto de perguntas e respostas que fazemos para nós mesmos em silêncio”.[3]
A leitura do nono poema de Hilst ajuda a esclarecer os objetivos perseguidos por Monica Piloni na série de 2014. A mulher insta o amante a aceitar o que ela pode oferecer-lhe: um gozo sensorial, carnal, feito de fragmentos, “palavras líquidas, deleitosas, ásperas//Obscenas”. A relação corpórea com o amante não a liberta, porém, da consciência de que a alma está comprometida com “a revelia do seu encontro inevitável com o Nada”, exigindo uma espécie de crueldade, nos dizeres de Márcia dos Santos Fontes. Ele deve contentar-se com a “memória de coitos e acertos”, pois ela não omitiu que “a alma está além, buscando//Aquele Outro”.
O corpo fragmentado e reconfigurado em combinações que desafiam a norma corporal pode ser igualmente inscrito sob o signo do monstruoso, pois apresenta um traço característico associado desde sempre à anomalia: a ausência de um membro ou de um órgão, que o transforma numa figura da alteridade. A artista curitibana não se limita a criar um corpo singular, caracterizado pela “monstruosidade por defeito” (Courtine). Ela vai além, imaginando figuras marcadas por um excesso – a multiplicação de membros –, que questiona de outro modo o corpo natural, colocando a anatomia humana no domínio de um imaginário surreal.
Esses diversos aspectos do disforme, que constituem uma diretriz evidente da poética de Monica Piloni, foram apresentados, de maneira bastante exaustiva, em duas exposições recentes: Simetrias dissidentes (Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba) e Humanas, demasiado humanas (Zipper Galeria, São Paulo).
Apresentada entre 20 de agosto e 9 de outubro, a mostra de Sorocaba articula-se a partir de um conjunto de obras que exploram o estranhamento provocado no observador pelas deformações percebidas em corpos caracterizados por movimentos de espelhamento, repetição e subtração, que produzem uma “simetria dissidente”. Para captar as “simetrias dissidentes” de que fala o curador Allan Yzumizawa, o espectador deve assumir uma atitude participativa. Abandonando a visão frontal, deve girar em volta das peças, que vão revelando uma composição complexa, feita de diferentes pontos de vista.
Mario Ramiro mobiliza a ideia do caleidoscópio quando escreve que o trabalho da artista “desfoca a linha entre o imaginado e o observado”. Seus corpos “levam de uma visão para outra, da aparência de realidade para a de certa anomalia”. Embora não use o termo “monstruosidade”, o autor alude a ele nas entrelinhas, pois fala de “um tempo em que homens e mulheres conviviam com deidades e outras formas de vida que não apenas a humana”, insinuando a ideia de hibridação.
Parte das obras apresentadas em Sorocaba inscreve-se na ideia do “giro de caleidoscópio”: Siamesa b (2016), Ímpar metade (2017), A leitora (2019), Lee (2019), Oops (2019). Uma obra como Mergulhadora (2019), por sua vez, instaura uma relação ainda mais complexa com o espectador, pois este tem a impressão de ser observado pela figura para a qual está olhando.
O princípio do espelhamento é radicalizado em Desbundo-me (2019), no qual o reflexo de um torso deformado no espelho produz não apenas um estranhamento perceptivo, mas leva o observador a participar diretamente da imagem e a assumir o papel de voyeur de uma intimidade que se compraz com o grotesco e o inusitado. As diversas possibilidades de leitura embutidas na obra permitem evocar tanto a poética do inacabado da Pietà Rondanini (1552-1564), de Michelangelo (minha irmã teve essa impressão ao defrontar-se com sua parte posterior), quanto um diálogo com a fotografia Nu inclinado para a frente (Nude bent forward, 1930), na qual Lee Miller cria uma imagem profundamente ambígua do corpo feminino, dissolvendo a parte inferior na sombra e transformando a região do pescoço em nádegas.
Mario Ramiro, por sua vez, no texto de apresentação da exposição Ciclo (2019), refere-se à presença de um movimento de atração e repulsa, provocado pela transformação da beleza em monstruosidade. O contorno suave e delicado de um torso duplica-se e avoluma-se no espaço situado diante de um espelho, “replicando uma realidade já desdobrada e rebatida sobre si mesma”. Nesse movimento, o torso clássico converte-se “numa massa de carne que parece apenas focada no desejo pelas partes mais erotizadas daquele mesmo corpo”.
Em duas esculturas de 2013, Boneca sombra b e Boneca fantasma e, Monica Piloni lança mão do tripé, cuja primeira utilização remonta à Boneca de 2004. Em suas próprias palavras, o tripé é “a forma mais eficaz de apoio”, pois se adequa a “qualquer superfície irregular”, além de permitir a busca da “originalidade”. Esta é apresentada como um “efeito de surpresa, alcançado por meio de uma ilusão”, já que a figura parece estar “sempre de costas para quem a observa”. A “busca pela face inexistente” é a reação mais comum do público, que observa a obra de todos os lados, sem conseguir desvendar seu mistério.
A “face inexistente” é também uma característica de Ímpar metade, na qual a multiplicação da cabeleira, do umbigo e dos seios cria uma forte sensação de estranhamento,[4] que não deixa de evocar a ideia do “inconsciente físico”, defendida por Hans Bellmer na década de 1930. Interessado numa “dinâmica de reversibilidade”, o artista concebe bonecas dotadas de partes móveis ou desmontáveis, que lhe permitem apresentar criaturas com dois ventres ou dois pares de pernas, pondo em xeque o “corpo geometrizado, circunscrito a limites e medidas”.
A autora dessa análise, Eliane Robert Moraes, sublinha que “os devaneios anatômicos de Bellmer buscavam fazer coincidir a imagem real e a imagem virtual de um corpo, reunindo numa só figura o resultado da percepção imediata do olhar e as reinvenções da imaginação. Com isso, ele libertava a anatomia humana das proporções estabelecidas e dos cânones normalizados para inventar os ‘anagramas do corpo’. Porém, bem mais que simples jogos combinatórios, os anagramas que estão na base da morfologia de Bellmer representavam um método de exploração das possibilidades físicas do ser humano, atenta às sensações simultâneas do corpo, para dele oferecer ‘uma imagem mais verossímil’”.
Um paralelo entre Monica Piloni e o artista alemão já tinha sido proposto por Jurandy Valença, para quem a escultora curitibana apresenta ao observador “‘um objeto provocativo’, algo imóvel, inanimado, em uma situação às vezes ‘passiva’, mas que, mesmo informe, carrega consigo uma materialidade que desordena e perturba na sua aparência e profundidade”.
Uma declaração da artista reportada no artigo de Valença reforça essa percepção, pois ela propõe associar o objetivo estético e conceitual de seu trabalho ao conceito de “unheimlich”, desenvolvido por Sigmund Freud no ensaio “O estranho” (1919). O objetivo de suas estranhas criaturas é provocar “o inquietante, a estranheza, o assustador que repele e atrai ao mesmo tempo”. Embora suas esculturas pareçam hiper-realistas, o que ela busca é a artificialidade: “A pele tem textura de plástico com acabamento de pintura industrial com brilho acetinado e cabelo sintético”.
A sensação de artificialidade a que alude Monica Piloni pode ser condensada na animação em looping Succubus (2021), na qual um manequim tríplice agachado recebe um banho de tinta preta que lhe confere uma maior densidade escultórica. Os curadores da mostra da Zipper Galeria (27 de setembro-29 de outubro), Mario Ramiro e Érica Burini, selecionaram duas peças associadas à animação: Succubus, o começo e Succubus, o fim, ambas datadas de 2022.
De tez rosada, cabeça coberta por uma espécie de capuz preto e pose erótica realçada por sapatos stiletto, a primeira escultura mobiliza a ideia de imagem pornográfica, pois oferece o máximo de informação visual de uma só vez, além de valorizar a carne em sua crueza graças ao uso de uma cor denotativa. Totalmente revestida de pintura automotiva preta, a segunda escultura usa do artifício de uma camuflagem ilusória para sugerir mais do que mostrar, provocando o observador com um ocultamento incompleto e participando, assim, da dimensão do erótico.
O título escolhido para a animação e as duas esculturas não deixa dúvidas quanto à intenção de Monica Piloni de discutir a problemática da sexualidade a partir de um ponto de vista feminino. Evocações da figura da dominatrix, seus súcubos colocam em primeiro plano a questão da sedução. É sabido que, em tempos remotos, o súcubo era considerado uma entidade supranatural que copulava com os homens durante o sono, pois necessitava de sêmen para sobreviver. Mesmo tendo a aparência de uma bela jovem, o súcubo podia apresentar deformações que o aproximavam da esfera do monstruoso ou tomar a forma de uma sereia.
A monstruosidade dos súcubos tripartites ecoa naquela da Sereia (2022), também presente na mostra da galeria paulistana. Em sua concepção, a artista deixa de lado as representações ancestrais desse monstro marinho, que se assemelhava a um pássaro ou a um peixe na parte inferior do corpo. Sua sereia bifronte nada tem da beleza que seduzia os navegantes, arrastados para o mar para serem devorados. É, ao contrário, uma figura estranha que, vista de um determinado ponto de vista, dá a impressão de estar copulando consigo mesma.
Uma sensação semelhante é despertada por Hexa (2022), que integra a seleção de Ramiro e Burini. Nela, o entrelaçamento de corpos idênticos pode sugerir um ato de autogratificação ou a busca de uma realização sexual fora da heteronormatividade. Outra obra apresentada na Zipper, Trivertida (2022), tem um significado explícito: um gesto de masturbação associado a uma flexibilidade proporcionada pela prática de exercícios físicos. Um conjunto de pequenas estátuas de bronze, denominado IdEgoSuperego (2019), parece ser regido pelo mesmo princípio de um “corpo circense”.
Essa ideia foi aplicada por Diógenes Moura à primeira obra que levava esse título (2011), na qual se viam três formas contorcidas, evocadoras de “corpos olímpicos que se entrelaçam” e se tornam “únicos, expostos entre sexo e afeto, e sexo mais uma vez”. A problemática da sexualidade é explicitada num comentário de Monica Piloni, que faz referência a “três formas individuais [que se encaixam] perfeitamente uma na outra com o rosto de uma encarando a vagina da outra, simétricas e contínuas”. Na mostra de Sorocaba, cabia ao espectador determinar os entrelaçamentos e os encaixes, mas os resultados não eram menos perturbadores, pois apontavam para uma sexualidade desinibida e tensa ao mesmo tempo.
Ímpar (2013), apresentada em Sorocaba, é provavelmente a obra mais radical em termos sexuais. Tendo como elementos constitutivos o princípio do espelhamento transposto para o plano bidimensional, o uso de simetrias, desdobramentos de formas e fusão de dados artificiais e naturais, o vídeo dá a ver, em pouco mais de três minutos, dois corpos femininos transformados em massas informes, nas quais ganham destaque orifícios sendo penetrados e entregues ao gozo. O conjunto nem sempre é bem definido em termos visuais, mas os momentos de penetração se distinguem pelo uso de planos fechados.
Assumindo a existência de um aspecto mórbido em sua poética, Monica Piloni afirma que este “evoca um certo mistério”, conferindo “uma nebulosidade aos corpos femininos nus em poses imponentes, com os músculos tensionados, corpos flexíveis e vaginas sem pelo”. O fato de a pele ter que ser lubrificada para realizar os moldes “abre um paralelo com a sexualidade, desde o processo de produção. Acho que a sexualidade também pode estar no observador que se coloca como voyeur desses corpos. Talvez eles também possam trazer certo desconforto”.
Na exposição de Sorocaba, um dos maiores desconfortos era provocado pela apresentação de Retrato a e Retrato g, da série “Retratos” (2013-2016), e Siamesa b, que confrontam o espectador com a questão do vazio e da impossibilidade de conferir qualquer significado à existência humana. Retrato a e Retrato g fazem parte de uma instalação formada de 26 esculturas referentes às letras do alfabeto latino. Cada escultura tem a forma de uma cabeça destituída de face que, por meio de um corte “preciso e simétrico”, desvela um interior vazio, forrado de veludo vermelho.
“Negativos” de máscaras mortuárias, os retratos da série, todos iguais, remetem inequivocamente a representações femininas, em virtude das longas cabeleiras lisas. A opção pelo veludo vermelho é atribuída pela artista à evocação do sangue e de uma paradoxal caixa para guardar um objeto precioso, que não pode cumprir sua função por ser feita em ângulo. Colocadas na parede, as cabeças trazem à memória a imagem de troféus de caça, ao passo que Siamesa b convida explicitamente a uma travessia dentro do vazio, pois pode ser vista dos dois lados por estar suspensa no espaço.
Outras obras apresentadas em Sorocaba lidavam com a questão do veículo da vida. O sangue aparece de maneira indireta em três fotografias em preto e branco da série “No meu quarto”,[5] que encenam um crime numa atmosfera típica de cinema noir. Envolvido num tapete, o corpo de uma mulher loira de bruços jaz no chão de um ambiente desarrumado, dando a impressão de que o desmembramento visto nas imagens coloridas foi o primeiro estágio de um desfecho trágico. Na animação em looping Fonte (2021), uma álgida bailarina loira, que mais parece um organismo híbrido, cujas funções fisiológicas são realizadas com o auxílio da tecnologia, está suspensa no espaço em posição invertida; de seu púbis jorra um fluxo de sangue que tinge de vermelho sua veste.
Mario Ramiro detecta na obra uma mistura de “drama com beleza, tortura com dança”, mas o título pode sugerir um diálogo irônico com uma das obras mais instigantes do século XX, Fonte (Fountain, 1917), de Marcel Duchamp. Ao sujeitar a uma rotação de 90º uma peça de louça sanitária (um urinol), este acentua seu aspecto de receptáculo feminino e abre caminho para a sugestão de uma atividade sexual. O sangue que brota da genitália da bailarina pode levar a pensar que a fecundação não ocorreu e que o corpo está expurgando um resíduo líquido.
Se a leitura irônica da peça de Duchamp é uma hipótese, Lee, exposta em Sorocaba, não deixa dúvidas sobre o artista com quem Monica Piloni está dialogando: Man Ray. Lee Miller, fotógrafa e modelo deste, posou para A prece (La prière, 1930), uma fotografia elegante e blasfema ao mesmo tempo, na qual a justaposição de mãos, pés, nádegas e a insinuação do ânus geram uma composição a meio caminho entre uma visão realista e um objeto ambíguo. Ao recriar a fotografia tridimensionalmente, Monica Piloni confere uma maior densidade corpórea à figura, acentuada pelo tom róseo da pele e pelo alongamento das unhas. Além disso, estende a figura e a dobra sobre si mesma, oferecendo a visão de um corpo informe, quando visto de um determinado ângulo.
A artista brasileira usa, de forma frequentemente paradoxal, dois instrumentos associados à sedução feminina. O cabelo, como ela própria declara, é usado como “um recurso para esconder, substituir e desorientar a lógica da figura humana, como uma máscara que sobrepõe a identidade”. Ímpar metade é bem significativa nesse sentido, pois o observador não consegue determinar a posição exata do corpo pela ausência de um rosto e pela multiplicação de detalhes anatômicos.
Quase todas as figuras apresentadas nas exposições de Sorocaba e São Paulo usam um tipo de sapato, intimamente associado à sedução: o stiletto. Como aponta Mario Ramiro, isso gera uma espécie de paradoxo: o uso de um símbolo fetichista torna os corpos femininos “vulneráveis e instáveis”, pois um salto daquela altura torna impossível correr ou fugir, se necessário. Apoiado num “equilíbrio precário”, o ato de caminhar torna-se “refém de uma imagem, e a própria artista admite certa tensão sob a capa de glamour que irradia de seu trabalho”.
Afinal, que imagem do feminino pode ser inferida das obras de Monica Piloni? A uma sociedade, que tem no culto da aparência um de seus valores fundamentais e na qual amplos setores da população feminina se submetem a cirurgias de correção do corpo natural, com resultados por vezes trágicos, a artista propõe figuras paradoxais. Seu acabamento perfeito, que lembra um produto industrial, vem associado a excentricidades físicas, capazes de perturbar os sentidos, sobretudo a visão, e de suscitar perguntas sobre o significado do humano e do “normal”. Cirurgiã plástica às avessas, Monica Piloni mutila, enxerta membros suplementares, esquarteja, cria figuras improváveis, pondo em xeque a ideia do corpo como “idealização da carne” (Tucherman).
O enigmático título da mostra da Zipper parece fornecer uma chave de acesso às intenções da artista. De imediato, traz à mente Humano, demasiado humano (1878-1880), de Friedrich Nietzsche, no qual a mulher é apresentada como um ser volúvel, superficial e, portanto, incapaz de dedicar-se a qualquer atividade política, intelectual, artística ou filosófica. Mais interessada nas pessoas do que nas coisas, a mulher tem como horizonte o costume, o pudor, o diletantismo e a aparência. Por acreditar que a questão da aparência está entranhada nas mulheres, o filósofo não hesita em defini-las “simples máscaras” destituídas de interioridade, “criaturas quase espectrais”, capazes de suscitar o desejo no homem, “que busca sua alma e continua sempre a buscá-la”.
Aferrado a uma visão biológica, Nietzsche afirma que a mulher sente-se feliz em servir e ser mãe,[6] constituindo um entrave para a afirmação do “espírito livre”, que não deseja ser servido. Indivíduo que tem como objetivo a conquista do conhecimento, o espírito livre eleva-se acima da humanidade, dos costumes, das leis e das tradições; por querer voar sozinho, prefere o celibato, pois a propensão das mulheres a relacionamentos “tranquilos e uniformes” se choca com seu “impulso heroico”.
As figuras singulares da artista brasileira não se enquadram na visão da mulher como “mera superfície de projeção do imaginário masculino”, pois elas não constroem sua aparência de acordo com as normas vigentes. Os olhares indagadores que muitas delas lançam sobre o observador comprovam que “a miopia” atribuída pelo filósofo às mulheres burguesas não faz parte de suas características fundamentais. Sua excentricidade coloca-as na contramão da ideia de que a mulher procura apagar voluntariamente “o espírito de seus traços ou os detalhes espirituosos de seu rosto” em prol da ênfase numa sensualidade e numa materialidade “vivas e ansiosas”.
Uma das obras apresentadas na Zipper, Selfie (2022), parece condensar a visão de Piloni sobre as possibilidades que se abrem para a mulher numa sociedade complexa, que impõe limites nada sutis à liberdade individual. Ajoelhada, uma mulher de olhos metálicos fita com seus dois rostos dois aparelhos celulares. Para Érica Burini, trata-se da maneira encontrada pela artista de observar “a criação espontânea de uma nova codificação de poses dentro do espaço virtual”, de demonstrar até que ponto a mulher consegue ter “o controle da sexualidade e da autoimagem”.
Outra possibilidade de interpretação do título da exposição paulistana remete ao conceito de monstro desenvolvido por Ieda Tucherman. O monstro não está fora, mas no “limite do humano”. Trata-se de um limite “interno”, produtor de figuras estranhas, que suscitam perguntas sobre sua natureza, pois evocam a ideia da “‘desfiguração’ do Mesmo no Outro”. Se não nos confundimos com essas figuras, também não nos diferenciamos de todo delas, e disso resultam uma definição instável e uma alteridade móvel. A autora aventa a hipótese de que os monstros talvez existam para nos mostrar “o que poderíamos ser, não o que somos, mas também não o que nunca seríamos e assim articulam a questão: Até que grau de deformação (ou estranheza) permanecemos humanos?”.
As figuras “humanas, demasiado humanas” de Monica Piloni parecem responder a outras indagações de Ieda Tucherman, provocadas pelas atuais tecnologias de manipulação genética. Até onde podem ser levados os artifícios e as intervenções sem prejudicar a imagem humana “natural”? O que é humanoide? Que corpo podemos ter hoje que seja ainda reconhecível como humano? A figura de Selfie é a que mais se aproxima dessas indagações, pois parece abrir caminho para o surgimento de novos seres conformados não apenas pela manipulação genética, mas igualmente pelo predomínio crescente da tecnologia no cotidiano da sociedade.
A prefiguração do ser humano dos anos 3000, feita pela Toll Free Forwarding, não está muito distante de algumas figuras bizarras da escultora. Mindy tem postura corcunda e pescoço largo, em decorrência do esforço muscular para manter a cabeça sustentada olhando para baixo no momento de interagir com computadores e smartphones. As mãos travadas em forma de garra e o cotovelo em 90º são uma consequência da presença excessiva do telefone na mão. O longo tempo de exposição à luz artificial está na base da previsão do desenvolvimento de uma pálpebra interna maior, de um crânio mais grosso e de um cérebro menor.[8]
É significativo que um conúbio entre uma das criações de Monica Piloni, a Bailarina IV (2019), e o universo tecnológico tenha sido proposto no caderno “Ilustrada Ilustríssima” do jornal Folha de S. Paulo de 23 de outubro deste ano. Um detalhe da perturbadora bailarina desarticulada[7] foi publicado na primeira página do caderno, com o espartilho preto atravessado pelos dizeres “Tudo é mentira. Ao manipular vídeos, deepfakes se firmam como atores no caos da desinformação durante as eleições e aprofundam o abismo entre redes sociais, tecnologia, leis e arte”.
Nas páginas C4 e C5, a obra em sua integridade serve de ilustração ao artigo “Crimes do futuro”, de Gustavo Zeitel, no qual são discutidos os diversos aspectos da manipulação de informações graças às deepfakes e a vídeos realistas feitos com inteligência artificial, incluindo seus possíveis usos criativos no universo artístico. No campo ocupado pela reprodução da obra de Monica Piloni destaca-se uma declaração de Camilo Aggio: “O deepfake causa um desnorteio, aumentando a cacofonia nas redes. Mas um vídeo não vai mudar o voto, as pessoas tendem a repassar as fake news que ativam suas convicções”.
A presença da bailarina cria um efeito disruptivo no jornal. Embora não seja resultado de inteligência artificial, ela propõe uma nova versão da realidade, que não se confunde com o fenômeno das deepfakes. A artista põe em xeque um dos aspectos fundamentais dessa estratégia de falseamento – a crença na “semelhança das imagens” –, pois o hiper-realismo que caracteriza suas figuras se contrapões à realidade fenomênica de maneira tão radical que não restam dúvidas sobre sua irrealidade e artificialidade.
Ao enfocar a crise do corpo e, particularmente, a questão de seus limites, Monica Piloni embute em suas obras um mal-estar, cujo clímax pode ser localizado nas fotografias coloridas da série “No meu quarto”. Nelas, a imagem técnica deixa de representar um “objeto de certeza” para adquirir o aspecto de um “texto ficcional” dotado de múltiplos significados, para constituir o ponto de partida de narrativas pessoais. Essa visão da fotografia explicitada por Chris Townsend, associada a uma crise do olhar, o qual se descobre incapaz de reconhecer a imagem do objeto e, logo, seu significado, pode ser estendida a toda a produção da artista, que questiona os limites do corpo e convida o espectador a surpreender a manifestação da beleza em anatomias excêntricas e a repensar seu conceito de normalidade. Suas figuras “demasiado humanas” são a demonstração viva da instabilidade e da artificialidade de todo conceito: tendo como diretrizes deformações, mutações, despedaçamentos, problematizam a ideia de forma e fazem do corpo o ponto de convergência entre realidade e fantasia, beleza e monstruosidade, possível e impossível.
*Annateresa Fabris é professora aposentada do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. É autora, entre outros livros, de Realidade e ficção na fotografia latino-americana (Editora da UFRGS).
Referências
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Notas
[1] Agradeço a colaboração de Mariarosaria Fabris; e de Pablo Di Giulio e Paula Viecelli da Galeria Utópica (São Paulo).
[2] A sétima imagem do conjunto, Minha alma sob a cama, não constou da exposição.
[3] Essa ideia é retomada no comentário de Haverias de querer minha alma?, no qual Piloni fala do uso da técnica do cut-up “para criar uma espécie de monólogo interno”.
[4] O busto apresentado em Sorocaba é menos perturbador que a escultura Ímpar, realizada em 2009. Dotada de três seios, três umbigos, três vaginas e três pernas, a figura tem o rosto ocultado por uma peruca e está assentada num tripé metálico que evoca muletas.
[5] Na mostra da galeria Fass, havia uma quarta imagem em preto e branco. Allan Yzumizawa selecionou três imagens coloridas da série para a exposição de Sorocaba: E por que haverias de querer minha alma na tua cama?, Haverias de querer minha alma? e Porque na minha cama não há alma alguma.
[6] Para Nietzsche existem dois tipos de maternidade: a biológica e a espiritual, própria do artista e do filósofo. Em Ecce homo (1908), atribui a busca de emancipação à mulher “malograda”, isto é, incapaz de ter filhos, pois não acredita na possibilidade de escolher livremente a não procriação.
[7] A coreógrafa Adriana Nunes está realizando há alguns anos pesquisas sobre o corpo fragmentado. No espetáculo Todo, veem-se “pernas se balançando e se torcendo, […] separadas do tronco, dos braços e da cabeça […], escondidas e quase imobilizadas por tecidos pretos”. No final, a intérprete retira o pano preto que cobre a cabeça e se dirige ao público, “reunindo seus pedaços de corpo e desejos”. As eleições de 2018 e 2022 e a pandemia de Covid-19 conferiram um significado político ao estilhaçamento: o de “um corpo social despedaçado que não consegue se conectar”, nos dizeres da bailarina.
[8] Alguns especialistas ouvidos por O Estado de S. Paulo fazem ressalvas ao modelo vislumbrado pela empresa de telecomunicação. Para o oftalmologista Ricardo Paleta, é quase impossível pensar no surgimento de uma segunda pálpebra em menos de 800 anos de evolução humana. O ortopedista Ivan Rocha, por sua vez, acredita que a projeção pode ter um fundo de verdade, mas nada garante que problemas de postura sejam herdados por nossos descendentes como “características mais adaptáveis”. Mas, de todo modo, fica o alerta.
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