Tributo negro a França

Keith Haring, sem título, 1983
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Por ACHILLE MBEMBE*

A Europa nunca deixará nenhum de nós partir enquanto lhe prestarmos, orgulhosos, tantos serviços, raramente reconhecidos

Eu gostaria de acreditar que a cada vez que Mbappe, Umititi, Pogboa, Matuidi, Varane faziam o que sabem fazer tão bem com seus músculos, seus cérebros, sua inteligência e uma bola de futebol, me transportavam fazendo isso com eles, me forçando a querer doar-lhes meu próprio corpo, para que eles possam ir até o fim, eu não estava disposto a me prostrar diante do bezerro de ouro no qual se tornou, entre muitos de nós, nossa eterna potência tutora.

Como muitos outros telespectadores, segui assiduamente os jogos da Copa do mundo de futebol, que acabam de acontecer em Moscou. E, como eles, passei por milhões de estados emocionais, dos quais fazemos a experiência a cada quatro anos, em tais circunstâncias. No começo, apoiei em bloco todas as equipes africanas – Marrocos, Egito, Tunísia, Nigéria e Senegal. Que agonia, conforme as coisas progrediam, que fossem derrotadas frequentemente com placares apertados, um gol ou outro concedido no último minuto após tanta resistência e, ao final de tudo, a eliminação – e a esperança quase sempre decepcionante de melhores performances uma próxima vez!

Depois que todas as equipes africanas foram eliminadas, imediatamente passei a torcer por nossos irmãos do sul do mundo – a Colômbia (hoje, a equipe mais africana da América Latina), o Brasil (onde a negritude se esforça mais uma vez para levantar-se), a Argentina (que se desembaraçou de todos os seus negros ao longo do século XIX), até mesmo o Uruguai (e isso a despeito do gesto celerado de Luis Suarez contra Gana em 2010).

Logo, escolha política. A verdade, entretanto, é que a despeito de nossos esforços e de todas as nossas belas intenções, não estamos jamais em condição de nos purgarmos da Europa. A Europa, por seu lado, nunca deixará nenhum de nós partir enquanto lhe prestarmos, orgulhosos, tantos serviços, raramente reconhecidos.

A França e a Bélgica tinham, por consequência, minha voz. Mas meu destino para esta Copa do Mundo, como para as anteriores, é o da França, ao qual estou ligado tanto por razões sentimentais quanto práticas.

Não sem dilemas. A França deveria enfrentar a Argentina, o Uruguai, depois a Bélgica. Contra a Argentina e o Uruguai, era necessário escolher entre minha afeição à antiga (e eterna) potência tutora e minha fraterna lealdade para com os outros países do Sul do mundo. Minha tutora ganhou.

Contra a Bélgica, essa escolha foi reafirmada a despeito do jogo direto, potente e atrativo dos “Diabos negros”. Eu adoraria que Romelu (Lukaku) e Vincent (Kpmpany), figuras cativantes, fossem até à final. Mas, pensei que a França estava melhor posicionada e tinha mais trunfos para terminar o trabalho, para marcar os espíritos tanto pela força do conjunto quanto pela frieza da expressão, por ser a manifestação visível e brilhante de um outro modo de presença no mundo, nesses tempos de protofascismo, de islamofobia, do aumento dos sentimentos anti-imigrantes… Em suma, nesta época anti-iluminista.

Muitos sabem, que tenho profundos desacordos com a França, quando se trata de sua política africana ou ainda da Francofonia, ainda que as duas sejam dificilmente separáveis.

Desde muitos longos anos, sou um dos críticos mais ácidos do mercantilismo e do paternalismo que caracterizaram a presença da França na África. E por inúmeras vezes, cheguei a intervir na cena pública francesa sobre esse tema e muitos outros como o racismo e as questões ligadas à imigração; ou ainda, quando foi necessário se confrontar com uma espécie de “tropismo provinciano”, do qual sofrem as elites culturais e intelectuais francesas, mesmo quando o planeta nos chama.

A despeito dessa enorme disputa de opiniões, não sou capaz de virar as costas para essa equipe.

Novamente, não percebo nenhuma contradição maior entre meu apoio a esta equipe e minha crítica aos maus tratamentos institucionais que a França infligiu aos africanos na África ou aqueles que ela reserva, na metrópole, aos cidadãos franceses de origem africana.

De todo modo, nesta equipe, houve sempre no passado como hoje inúmeros de “nós”, pessoas que, de relance, dão a impressão de parecer com a gente.

Como antes, não posso de imediato achar que “nossa presença” nessa equipe nada significa; que ela não tem estritamente nenhum impacto nas grandes lutas simbólicas e políticas em curso – as lutas em torno da cidadania e da identidade, dos pertencimentos, do reconhecimento e da relação com os outros, enquanto a ideologia da supremacia branca (que esteve na fonte da escravidão, do colonialismo e do racismo) pega de volta os cabelos da besta por toda parte do mundo.

É preciso dizer também, que conheço pessoalmente alguns dos jogadores desta equipe, jovens negros com os quais estou em contato, jovens (não todos evidentemente) que são movidos pelo cuidado para com a África ou que se perguntam pelo seu porvir, que manifestam uma curiosidade intelectual, até mesmo um interesse cultural e político ativo por nossa condição comum no mundo em geral e não apenas na França ou na Europa.

Franceses de nascimento ou de adoção, a maior parte dentre eles são conscientes da contradição viva, da qual eles são a manifestação no seio de uma sociedade de consumo, que inveja suas riquezas repentinas, mas não hesita em estigmatizá-los e a todos que se parecem com eles; que não hesita em zombar da predileção de alguns por estandartes, tralhas e ferragens, da falta de refinamento dessas crianças-eternas-riso-negras e da atração exercida sobre elas por brinquedos de toda espécie, por tudo que brilha mas sem valor, reflexo – deduzimos disso – de sua falta de educação, senão das origens imundas que usam como indumentária, seu símbolo permanente.

Eles sabem que cada vez que vestirem a camisa nacional, podendo cantar La Marseillaise a plenos pulmões, uma boa parte da opinião – e não necessariamente francesa – se colocará sempre a questão de saber de onde eles vem e o que fazem ali, ou se perguntará ainda como uma nação tão civilizada pode se fazer representar diante da cena do mundo, por tantos vagabundos disfarçados.

Repetimos. Eles estão lá por causa da história. No caso direto que nos interessa, é preciso ainda se lembrar de uma coisa. A França moderna, na sua busca de grandeza e por sua sobrevivência enquanto potência mundial, teve sempre necessidade de “subsídios negros”.

Evoquemos as duas guerras contra a Alemanha e em particular o hitlerismo e o fascismo? Onde estariam sem Felix Éboué,[i] Blaise Diagne[ii] e a “força negra”? Se trata de salvar o Império colonial ou de empreender guerras contra-insurrecionais em Madagascar, na Indochina ou na Algéria? Mais ou menos a mesma receita. Quem deve se colocar na frente, face aos canhões, nos campos de batalha na Europa ou quando se organizam incêndios e razzias em Kabylie ou quando é necessário decapitar guerrilheiros nas florestas do Sul e nos platôs do Camarões Ocidental?

E o que dizer do Franco CFA,[iii] das jazidas do subsolo africano mais ou menos cativas, como o urânio, do próprio território africano, das bases militares em Dakar, Abidjan, Ndjamena, Djibouti, verdadeiro imposto eleitoral, ou da presença militar no Mali e no deserto do Sahara, o novo epicentro da nova corrida para a África na era do Antropoceno?

Todo esse derramamento de sangue e essa punção, todos esses territórios, todas essas jazidas, todos esses corpos e todos esses músculos tensos – tudo isso constitui o “subsídio negro” da França.

Tudo isto faz parte do formidável tributo que a África não cessou de pagar para a França há alguns séculos – tributo em sangue, tributo em homens, tributo em riquezas de toda espécie que a África não cessou de sacrificar no altar dessa história que produziu essa equipe, para a maior glória de uma outra potência que não é a africana, potência e glória, para a qual estamos condenados a participar sempre por procuração.

Graças ao futebol, podemos, portanto, desfrutar delas por procuração, sem qualquer amargura, de forma quase vicária, ainda é preciso estar ciente disso. Quanto ao resto, como você pode razoavelmente esperar que um esporte, até mesmo o futebol, resolva sozinho as contas de uma história bastante suja?

Como, razoavelmente, fazer pesar sobre ombros tão jovens os prolongamentos dessa história suja no presente – o racismo anti-negro, a islamofobia rastejante, a brutalidade policial nas ruas e nas delegacias e outros espaços públicos, os intermináveis controles faciais, de vez em quando uma vida interrompida ou eletrocutada na curva do nada ou por tão pouco, uma ambulância que não chega, uma respiração abafada, a caça aos migrantes, sua detenção nos inumeráveis campos, sua deportação em condições desumanas, a superpopulação negra nas prisões, a vida negra sitiada um pouco por toda parte, na África inclusive, assim como outras vidas subalternas.

Talvez coloquemos demasiada esperança no futebol, esse puro ópio do capitalismo contemporâneo, narcótico por excelência da “sociedade do espetáculo”, nesses tempos de neoliberalismo triunfante e de ressacralização das desigualdades, compreendidas as raciais.

Talvez depois de tudo, é a isso que servem os mega eventos tais como a copa do mundo de futebol – para nos adormecer, nos embalar no berço das ilusões, nos fazer viver por procuração, a esquecer tudo, a começar pelo essencial, a saber, a ascensão dos oceanos, a Terra que se destrói, territórios inteiros tornados inabitáveis, que se envenenam com pesticidas, a água e o ar tornados tóxicos, milhões de pessoas em fuga transformadas em detritos, outros que estão se afogando à vista de todos e um pouco por toda parte, um novo ciclo de brutalidade, de aprisionamento e de expulsões, numa escala planetária.

E entretanto!

E entretanto, cada vez que vejo Kilian Mbappe correr tão rápido quanto Husain Bolt, cada vez que vejo Pogba, Umtiti ou Varane marcarem um gol decisivo, cada vez que vejo N’Golo Kante ou Matuidi assediarem incansavelmente o adversário, como se fossem dotados de três pulmões cada um, me deixo transportar, como que para lhes insuflar um suplemento de força, do qual eles poderiam ter necessidade, para acompanhá-los até o gol, até a jubilação.

Assim fazendo, estou longe de festejar o nacional-chauvinismo, aquele que teria causado tantos erros, tantas humilhações e tantos sofrimentos, tanto na África quanto entre os cidadãos franceses de ascendência africana na metrópole.

Não sendo um escravo feliz, tomado de alegria e totalmente inconsciente de sua condição, eu estava simplesmente lembrando de uma coisa – o que será necessário se, de fato, quisermos acabar com o que a África e seu povo em todo o mundo sofreram por séculos, muitas vezes por uma dupla fuga interna e externa, fuga que tanto nos terá custado, tanto em força física como moral.

Eu estava apenas lembrando o que será necessário para, de fato, mudar o curso de nossa história no mundo moderno; o que será necessário para curar nosso mundo do racismo anti-negro e anti-árabe; tipo anti-humano, nesta era de anti-iluminismo.

De resto e tal como em 1998, esta vitória, sacramento por excelência do efémero, dificilmente mudará o fundamental.

Seria necessário mais que uma vitória num estádio de futebol numa noite de verão em Moscou, para que o lixo da história seja limpo e que a cada um, jovens jogadores inclusos, seja restituída sua plena humanidade.

Mas se, no fundo, não se anuncia nada de verdadeiramente novo, ao menos o espetáculo alegre, do qual fomos testemunhas periféricas nos muda de cena. Ao menos nos permite respirar, no espaço de um instante e de tomar consciência – de que nós também podemos, como os outros, ganhar.

Serve, na verdade, para um povo que teve o hábito de perder, de perder com frequência e de perder também tão lamentavelmente, nos reconectar com a ideia, segundo a qual somos capazes de ganhar por nós e com os outros, sem preço.

*Achille Mbembe é filósofo e historiador. Autor, entre outros livros, de Necropólítica (n-1 edições).

Tradução: Ernani Chaves.

Publicado originalmente no portal AOC.

Notas


[i] Adolphe Sylvestre Félix Éboué (Caiena, 1 de janeiro de 1884 – 17 de maio de 1944) foi um administrador colonial francês e líder da França Livre (N. do T.).

[ii] Blaise Diagne (13 de outubro de 1872 – 11 de maio de 1934) foi um líder político senegalês e francês e prefeito de Dakar. Ele foi a primeira pessoa de origem da África Ocidental eleita para a Câmara de Deputados da França e a primeira a ocupar um cargo no governo francês (N. do T.).

[iii] Franco CFA (Confederação Franco-Africana) foi uma moeda corrente nos país africanos de colonização francesa., extinta muito recentemente, em 21.05.2020 (N. do T.).

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