Argentina, 1985

Bill Woodrow, Sem título (94_04), 1995
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOSÉ COSTA JÚNIOR*

Comentário sobre o filme dirigido por Santiago Mitre.

Num dos conflitos mais simbólicos que podemos assistir no filme Argentina, 1985, o jovem promotor assistente Luis Moreno Ocampo questiona a própria mãe sobre as práticas do governo ditatorial argentino, vigente entre os anos de 1976 e 1983. A mãe, que frequentava a mesma missa que o general Rafael Videla, um dos governantes mais brutais do período, reafirma constantemente a importância da família e da estabilidade política para defender as ações militares de então, além dos laços que a própria família manteve com o regime civil-militar que governava o país.

Luis Moreno Ocampo acusa aos presidentes do período ditatorial de crimes contra a humanidade juntamente com o promotor Julio Strassera, no mais importante julgamento da história política da Argentina. Para isso, levantam provas e testemunhos de tais crimes, atitude fundamental para que a sociedade argentina revisitasse seu passado recente e fizesse alguma justiça contra os perpetradores de políticas da brutalidade.

No entanto, após o testemunho de uma jovem mulher, que foi torturada juntamente com a sua filha recém-nascida dentro de um carro em movimento por militares, Ocampo recebe um telefonema da mãe. Ela questiona se aquilo realmente aconteceu e como foi possível que pessoas comuns fossem capazes de oferecer tamanha violência e sofrimento em nome de ideais políticos e sociais. Chorando, termina por concordar acerca da necessidade de condenar os líderes da ditadura argentina, responsáveis por aquele estado de coisas e defende o trabalho – quase impossível – dos promotores naquele julgamento tão importante.

Esse e outros diálogos de Argentina, 1985 tornam o filme indispensável para o nosso tempo. A atuação de Strassera e Ocampo no julgamento é uma importante defesa da vida democrática, tão atacada naquele país e na América Latina durante a segunda metade do século XX e que ainda hoje possui efeitos na vida política dos nossos países. No seu discurso final, o promotor Strassera faz referência aos riscos do esquecimento e retoma as palavras que “já não eram suas, mas de todo o povo argentino”: “Nunca más”, reafirmando o compromisso democrático daquela sociedade. Sabemos das dificuldades da construção política democrática da Argentina nas últimas décadas, porém, o reconhecimento dos crimes do regime civil-militar que aterrorizou o país foi fundamental para revisitar acontecimentos que a maioria gostaria de esquecer, por mais embaraçoso que isso tenha sido.

Revisitar as memórias do violento passado recente, discutir as justificativas oferecidas, responsabilizar os autores das práticas desumanas, entre outros movimentos traumáticos abordados no filme, foram passos necessários para aquela sociedade pudesse buscar uma reconstrução da vida conjunta, projeto ainda em construção na Argentina. Nesse contexto, o esquecimento seria mais perigoso, uma vez que traria a naturalização da barbárie e da brutalidade política como soluções aceitáveis para os desafios da construção política, mantendo caminhos para a retomada posições políticas reacionárias e violentas.

Os diferentes modos pelos quais Argentina e Brasil lidaram com seu recente passado ditatorial são exemplos da importância da memória e da tentativa de valorização da vida democrática, que receberam atenção menor no nosso país, a ponto de alguns cidadãos brasileiros exigirem algum tipo de “intervenção militar” de quando em quando. Aqui, desconhecimento e desprezo democrático parecem se juntar na ausência de compreensão dos riscos da vida sob o domínio da brutalidade política. A compreensão da mãe de Ocampo é simbólica nesse aspecto, pois, mesmo a contragosto, reconhece que a solução política violenta acarreta riscos para todos, inclusive com ameaças e excessos desumanizadores constantes.

O choque após o depoimento das vítimas do regime faz pensar, criando embaraços necessários para muitos que ou não tinham conhecimento ou “viraram o rosto” para tudo que acontecia. É importante reconhecer que se trata de uma ação compreensível, na medida em que “seguir a vida” pode ser uma saída mais simples e menos dolorosa em momentos de tensão. No entanto, desse tipo de atitude surgirá o perigoso esquecimento que manterá a porta aberta para a brutalidade política como solução no futuro.

Aqui, uma questão surge: qual é a responsabilidade daqueles que não sabem ou “viram o rosto” para os excessos do arbítrio daqueles que se propõem a resolver os desafios políticos? A cumplicidade e o laço entre aquela sociedade e seus líderes, mesmo que pouco ativa nos processos brutais de desumanização então promovidos, levantam mais uma vez dúvidas reflexivas e necessárias sobre responsabilidades e atitudes.

Argentina, 1985 oferece um relato importante e necessário sobre quando esquecer pode ser um risco. Quando desumanizações e brutalidades são esquecidas, podem ressurgir ou serem exigidas como solução política para os desafios da vida conjunta, como podemos observar em diversos lugares do mundo nesse exato momento, principalmente no Brasil. Sem esse acerto de contas, corremos o risco de nos aproximar perigosamente do convívio totalitário e desumanizador que tanto já assombrou nossa querida América Latina.

*José Costa Júnior é professor de filosofia e ciências sociais no IFMG –Campus Ponte Nova.

Referência

Argentina, 1985

Argentina, 2022, 140 minutos

Direção: Santiago Mitre

Roteiro: Mariano Llinás, Martin Mauregui, Santiago Mitre.

Elenco: Ricardo Darin, Peter Lanzani, Alejandra Flechner, Paula Ransenberg, Carlos Portaluppi.

 


O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Arquétipos e símbolos
Por MARCOS DE QUEIROZ GRILLO: Carl Jung combinou a literatura, a narração de histórias e a psicanálise para chegar às memórias inconscientes coletivas de certos arquétipos, promovendo a reconciliação das crenças com a ciência
Apelo à comunidade acadêmica da USP
Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO: Carta para a Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional – AUCANI
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Fundamentos da análise social
Por FABIO DE OLIVEIRA MALDONADO: Apresentação à edição brasileira do livro recém-lançado de Jaime Osorio
O martírio da universidade brasileira
Por EUGÊNIO BUCCI: A nossa universidade precisa se preparar e reforçar suas alianças com suas irmãs do norte. O espírito universitário, no mundo todo, só sobrevive e se expande quando sabe que é um só
A biblioteca de Ignacio de Loyola Brandão
Por CARLOS EDUARDO ARAÚJO: Um território de encantamento, um santuário do verbo, onde o tempo se dobra sobre si mesmo, permitindo que vozes de séculos distintos conversem como velhos amigos
A ampliação do Museu de Arte de São Paulo
Por ADALBERTO DA SILVA RETTO JR.: O vão livre do MASP será um espaço inclusivo ou excludente de alguma forma? A comunidade ainda poderá ali se manifestar? O famoso “vazio” continuará sendo livre, no mais amplo sentido do termo?
Ideologias mobilizadoras
Por PERRY ANDERSON: Hoje ainda estamos em uma situação onde uma única ideologia dominante governa a maior parte do mundo. Resistência e dissidência estão longe de mortas, mas continuam a carecer de articulação sistemática e intransigente
O fenômeno Donald Trump
Por DANIEL AARÃO REIS: Donald Trump 2 e seus propósitos “iliberais” devem ser denunciados com a maior ênfase. Se a política de potência se afirmar como princípio nas relações internacionais será funesto para o mundo e para o Brasil em particular
Minha infância nos porões da Bela Vista
Por FLORESTAN FERNANDES: “Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava”
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES