Os filhos inconsoláveis da democracia

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por WALFRIDO WARDE & RAFAEL VALIM*

Apesar da barbárie de domingo, parcela considerável dos brasileiros ainda apoia uma intervenção militar

O domingo da vergonha exibiu o ataque contra os prédios públicos que simbolizam as mais sagradas instituições da República. Nós imaginávamos que as cenas escatológicas de vandalismo fossem horrorizar todo o país e nos conduzir a uma unânime defesa do Estado democrático de direito. Mas isso não aconteceu. Apesar da imediata reação institucional, as pesquisas de opinião revelam que, depois de tudo, depois do episódio que envergonha o país perante o mundo civilizado, ainda trinta e cinco por cento do nosso povo apoia uma intervenção militar. Isso não é o suficiente para fabricar uma ruptura sob a mão armada de setores das Forças Armadas, mas pode erodir até o último torrão de terra um governo sobre o qual se escora toda a esperança de continuidade existencial da democracia.

Há algumas verdades inconvenientes na causa desse espanto. A democracia produziu, no mundo todo, filhos inconsoláveis e outros ingratos. De um lado, aqueles a quem a democracia, sob regime de produção capitalista, não foi capaz de alimentar, dar moradia digna, educação e segurança. De outro, aqueles que vivem na abundância capitalista, mas se ressentem porque pensam “pagar a conta” sozinhos.

A vitória de Lula, um dos últimos estadistas, em todo o planeta, capaz de empolgar as massas em favor de ideais democráticos, ainda não foi capaz de alterar esse estado de coisas. E se não refrear seu desconforto na relação com as Forças Armadas, talvez tudo piore.

Lula é um produto das lutas sociais que se opuseram ao regime militar. Ou seja, emerge e viceja com a abertura democrática, sob o gabarito de militares como Geisel e Golbery, os quais a extrema direita considera esquerdistas infiltrados. Lula é filho da redemocratização, que sepultou as ambições políticas de oficiais e de aspirantes a oficiais que gravitavam no entorno de Sylvio Frota, símbolo da linha dura, removido do poder em outubro de 1977, para que se pavimentassem os caminhos da Nova República.

A geração perdida de Sylvio Frota voltou, no útero do bolsonarismo, com um populismo que a linha dura podia chamar de seu. Jair Bolsonaro foi eleito democraticamente e, como outros tantos representantes da direita alternativa, do non sense que anima as massas, quase acaba com a democracia no Brasil. Jair Bolsonaro ampliou a participação de militares em cargos de confiança e empoderou regimentos policiais pelo país inteiro, sob a afirmação de uma maçaroca ética que fala com grande parte da população brasileira. Fecundou, gestou e botou o ovo da serpente que eclodiu no domingo da vergonha. E que gerou um monstro que se alimenta da ruptura e do distanciamento entre a política tradicional e parte do povo.

Não haverá solução sem que o Presidente dialogue com a cúpula das Forças Armadas, majoritariamente conservadora e insatisfeita com o resultado das urnas. É como se Mozart estivesse escrevendo uma sinfonia e alguém ligasse uma britadeira na rua em frente da sua casa. Essa tarefa não pode ser conferida a terceiros. Só Lula, o maior gênio político da história do Brasil, será capaz de lidar com essa situação.

No mais, será necessário olhar para a democracia e suas mazelas, buscar uma regulação fina da democracia, de modo a impedir interferências indevidas na formação e expressão da vontade popular e, quando não for possível, compassá-la aos legítimos interesses públicos, criar estruturas perenes de planejamento e construção de estratégias estatais, que não podem variar ao sabor das mudanças de governo, assim como estruturas de Estado de salvaguarda da democracia, a exemplo do que fez a Alemanha.

As grandes democracias devem ser capazes de competir em eficiência com regimes autocráticos que mais recentemente floresceram em um regime de mercado sob intensa coordenação estatal. E ao fazê-lo, devem partilhar o produto do sucesso econômico de modo equânime, para que não haja uma multidão de perdedores e pouquíssimos vencedores.

Mas tudo isso sob a certeza de que não é possível acomodar todos os desejos. Assim como nas melhores famílias, sempre haverá filhos inconsoláveis, para os quais só resta um bom corretivo da lei.

*Rafael Valim, advogado, é doutor em direito administrativo pela PUC-SP, onde lecionou de 2015 a 2018. Autor, entre outros livros, de Lawfare: uma introdução (com Cristiano Zanin e Valeska Zanin Martins) (Contracorrente).

*Walfrido Warde, advogado, é doutor em direito comercial pela USP. Autor, entre outros livros, de O espetáculo da corrupção (Leya).

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Notas sobre a disputa em São Paulogilberto maringoni 18/11/2024 Por GILBERTO MARINGONI: É preciso recuperar a rebeldia da esquerda. Se alguém chegasse de Marte e fosse acompanhar um debate de TV, seria difícil dizer quem seria o candidato de esquerda, ou de oposição
  • O perde-ganha eleitoralJean-Marc-von-der-Weid3 17/11/2024 Por JEAN MARC VON DER WEID: Quem acreditou numa vitória da esquerda nas eleições de 2024 estava vivendo no mundo das fadas e dos elfos

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES