Por MARCELLO MUSTO
Trecho do livro recém-lançado “Repensar Marx e os marxismos”
Poucos homens abalaram o mundo como Karl Marx. À sua morte seguiu-se imediatamente, com uma velocidade poucas vezes vista na história, o eco da fama. Muito cedo, o nome de Marx estava na boca dos trabalhadores de Detroit e Chicago, assim como dos primeiros socialistas indianos, em Calcutá. Sua imagem foi o pano de fundo do congresso dos bolcheviques, em Moscou, logo após a revolução. Seu pensamento inspirou programas e estatutos de todas as organizações políticas e sindicais do movimento operário, do conjunto da Europa até Xangai. Suas ideias viraram de ponta-cabeça a economia, a política, a filosofia e a história.
Mesmo assim, em que pese a afirmação de suas teorias, transformadas ao longo do século XX em ideologia dominante e doutrina de Estado por uma parte significativa da humanidade, e malgrado a enorme difusão de seus escritos, até os dias de hoje suas obras não receberam uma edição integral e científica. A razão principal dessa particularíssima condição reside em seu caráter de incompletude. Excluindo-se os artigos jornalísticos, publicados por quinze anos, entre 1848-1862 – grande parte deles destinados ao New-York Tribune, à época um dos maiores jornais do mundo –, os trabalhos publicados foram relativamente poucos, se comparados aos tantos apenas parcialmente realizados e à imponente quantidade de pesquisas desenvolvidas. Emblematicamente, em 1881, quando questionado por Karl Kautsky sobre a possibilidade de publicar uma edição completa de suas obras, Marx respondeu: “antes de tudo, é preciso que essas obras sejam escritas”.
Marx deixou um volume muito maior de manuscritos que não vieram à luz do que publicados. Ao contrário do que geralmente se pensa, sua obra é fragmentária, e uma das características de O capital é a incompletude. O método extremamente rigoroso e a autocrítica impiedosa, que aumentaram as dificuldades a serem ultrapassadas para se levar a cabo muitos dos trabalhos empreendidos; as condições de profunda miséria e o estado de saúde permanentemente debilitado, que se impuseram por toda sua vida; a inextinguível paixão pelo conhecimento, que sempre o levava a novos estudos, tudo isso fez justamente da incompletude a fiel companheira de toda a produção de Marx, bem como condenou sua própria existência. No entanto, seus incessantes esforços intelectuais se mostraram brilhantes e frutíferos, repletos de extraordinárias consequências teóricas e políticas, ainda que apenas uma pequena parte do colossal plano de sua obra tenha sido concluída.
Após a morte de Marx, ocorrida em 1883, foi Friedrich Engels o primeiro a se dedicar à dificílima empresa, dadas a dispersividade dos materiais, a obscuridade da linguagem e a ilegibilidade da grafia, de publicar o legado do amigo. Seu trabalho se concentrou na reconstrução e seleção dos originais, na publicação dos textos inéditos ou incompletos e, ao mesmo tempo, na reedição e tradução dos escritos já conhecidos.
Ainda que com exceções, como no caso das “Teses sobre Feuerbach”, publicadas como apêndice em seu Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, e da Crítica do programa de Gotha, publicada em 1891, Engels privilegiou quase exclusivamente o trabalho editorial de complementação de O capital, do qual só havia sido concluído o Livro I. Esse esforço, que durou mais de uma década, se deu com a justa intenção de realizar uma obra “coerente e o mais acabada possível”. Assim, no decorrer de sua atividade editorial, a partir da seleção daqueles textos que apareciam não como versões finais, mas sim como variantes reais, e da necessidade de uniformizar o conjunto, Engels, em vez de reconstruir a gênese e o desenvolvimento dos Livros II e III de O capital, muito distantes de sua redação definitiva, publicou os volumes acabados.
Por outro lado, anteriormente, Engels já havia contribuído de maneira direta, com seus próprios escritos, para gerar um processo de sistematização teórica. O Anti-Dühring, publicado em 1878 e que ele definiu como a “exposição mais ou menos coerente do método dialético e da concepção de mundo comunista defendidos por Marx e por mim”, tornou-se a referência crucial na formação do “marxismo” como sistema e na diferenciação deste em relação ao socialismo eclético, predominante naquele período. Impacto ainda maior teve Do socialismo utópico ao socialismo científico, reelaboração, para fins propagandísticos, de três capítulos da obra anterior que, publicado pela primeira vez em 1880, teve sorte análoga àquela do Manifesto Comunista. Embora houvesse uma clara distinção entre esse tipo de vulgarização, realizada em controvérsia aberta com os atalhos simplistas das sínteses enciclopédicas, e aquele da qual a geração posterior da social-democracia alemã se tornou protagonista, o uso das ciências naturais por Engels abriu caminho para a concepção evolucionista que, pouco depois, se afirmaria também no movimento operário.
A despeito de ser algumas vezes atravessado por tentações deterministas, o indiscutivelmente crítico e aberto pensamento de Marx caiu sob os golpes do clima cultural da Europa do fim do século XIX, permeado, como jamais o fora antes, por concepções sistemáticas, sobretudo pelo darwinismo. Para responder a isso, o marxismo recém-nascido, que de modo precoce se torna ortodoxo nas páginas da revista Die Neue Zeit [O novo tempo], dirigida por Kautsky, rapidamente assumiu a mesma conformação. Um fator decisivo que contribuiu para a consolidação des- sa transformação da obra de Marx tem a ver com a forma de sua difusão. Como demonstrado pela reduzida tiragem das edições de seus textos à época, foram privilegiados brochuras sumárias e resumos muito parciais. Além disso, algumas das obras traziam consigo os efeitos da instrumentalização política. De fato, surgiram as primeiras edições retrabalhadas pelos editores, prática essa que, favorecida pela incerteza acerca do legado de Marx, posteriormente se popularizou cada vez mais junto com a censura de alguns escritos. O formato de manual, notável veículo de exportação do pensamento de Marx para o mundo, certamente representou uma ferramenta de propaganda muito eficaz, mas trouxe consigo a alteração da concepção inicial. A divulgação de sua obra, de caráter complexo e incompleto, ao se deparar com o positivismo e para responder melhor às exigências práticas do partido proletário, traduziu-se, por fim, em empobrecimento teórico e vulgarização do patrimônio original.
Foi a partir do desenvolvimento desses processos que tomou forma uma doutrina de interpretação evolucionista, esquemática e elementar, banhada de determinismo econômico: o marxismo do período da Segunda Internacional (1889-1914). Guiada por uma convicção firme e ingênua no progresso automático da história e, portanto, na inelutável sucessão do socialismo ao capitalismo, essa doutrina se mostrou incapaz de compreender a verdadeira tendência do presente e, rompendo o vínculo necessário com a práxis revolucionária, produziu uma espécie de imobilização fatalista que se transformou em fator de estabilidade para a ordem existente. Revelava-se, assim, o profundo distanciamento em relação a Marx, que já em sua primeira obra, escrita com Engels, declarara: “A História não faz nada […] não é, por certo, a ‘História’ que utiliza o homem como meio para alcançar seus fins – como se se tratasse de uma pessoa à parte –, pois a História não é senão a atividade do homem que persegue seus objetivos”.
A teoria do colapso (Zusammenbruchstheorie), ou a tese do fim iminente da sociedade capitalista-burguesa, que teve na crise econômica da Grande Depressão – que se desenrolou durante os vinte anos posteriores a 1873 – o contexto mais favorável para se expressar, foi proclamada como a essência mais intrínseca do socialismo científico. As afirmações de Marx, dirigidas a esboçar os princípios dinâmicos do capitalismo e, de modo geral, a descrever sua tendência de desenvolvimento, foram transformadas em leis históricas universalmente válidas, às quais se reduziria, inclusive nos detalhes, o curso dos acontecimentos.
A ideia de um capitalismo agonizante, automaticamente destinado ao ocaso, estava presente também no quadro teórico da primeira plataforma inteiramente “marxista” de um partido político, o Programa de Erfurt, de 1891, e no comentário de Kautsky sobre ele, no qual enuncia que “o desenfreado desenvolvimento econômico leva à falência do modo de produção capitalista com uma necessidade de lei natural. A criação de uma nova forma de sociedade no lugar da atual não é mais apenas algo desejável, mas tornou-se inevitável ”. Essa foi a mais clara e significativa representação dos limites intrínsecos à elaboração marxista da época, bem como da distância abissal entre ela e aquela na qual se inspirou.
O próprio Eduard Bernstein, que, concebendo o socialismo como uma possibilidade e não como algo inevitável, havia marcado uma descontinuidade com as interpretações dominantes naquele período, fez uma leitura igualmente artificial de Marx. Ela não se distanciou minimamente daquelas de seu tempo e contribuiu para a difusão, devido à vasta ressonância obtida pelo Bernstein-Debatte [O debate Bernstein], de uma imagem de Marx igualmente alterada e instrumental.
O marxismo russo, que no decorrer do século XX desenvolveu um papel fundamental na divulgação do pensamento de Marx, seguiu essa trajetória de sistematização e vulgarização, até mesmo com maior enrijecimento. Para o seu mais importante pioneiro, Georgi Plekhanov, de fato, “o marxismo é uma concepção do mundo completa”, marcada por um monismo simplista com base no qual as transformações superestruturais da sociedade ocorrem simultaneamente às modificações econômicas. Em Materialismo e empiriocriticismo, de 1909, Lenin definiu o materialismo como “o reconhecimento das leis objectivas da natureza e do reflexo aproximadamente exacto destas leis na cabeça do homem”. A vontade e a consciência do gênero humano devem, “necessária e inevitavelmente”, se adequar à necessidade da natureza. Mais uma vez, prevalece a abordagem positivista.
Portanto, a despeito do áspero embate ideológico daqueles anos, muitos dos elementos teóricos característicos da deformação operada pela Segunda Internacional passaram para aqueles que marcariam a matriz cultural da Terceira Internacional. Essa continuidade se manifestou, de maneira ainda mais clara, em A teoria do materialismo histórico, publicado em 1921 por Nikolai Bukhárin, segundo o qual, “seja na natureza, seja na sociedade, os fenômenos são regulados por determinadas leis. A primeira tarefa da ciência é descobrir essa regularidade”. O êxito desse determinismo social, inteiramente voltado para o desenvolvimento das forças produtivas, gerou uma doutrina que afirma que “a variedade de causas cuja ação se faz sentir na sociedade não contradiz de fato a existência de uma lei única da evolução social”.
Antonio Gramsci se opôs a essa concepção. Para ele, a colocação desse problema enquanto “uma busca por leis, por linhas constantes, regulares, uniformes, está ligada a uma necessidade, concebida de maneira um tanto pueril e ingênua, de resolver peremptoriamente o problema prático da previsibilidade dos eventos históricos”. Sua sólida rejeição a restringir a filosofia da práxis marxiana a uma sociologia grosseira, a “reduzir uma concepção de mundo a uma forma mecânica que dá a impressão de carregar toda a história no bolso”, ganhou ainda mais importância porque foi além do escrito de Bukhárin e visava condenar aquela orientação muito mais geral que posteriormente prevaleceria, de modo inconteste, na União Soviética.
Com o estabelecimento do marxismo-leninismo, o processo de distorção do pensamento de Marx alcançou sua manifestação definitiva. A teoria foi retirada da função de guiar a ação e se tornou, ao contrário, uma justificativa a posteriori. O ponto de não retorno foi alcançado com o Diamat (Dialekticeskij materializm – Materialismo dialético), “a concepção de mundo do partido marxista-leninista”. O panfleto de Stálin, Sobre o materialismo dialético e o materialismo histórico, de 1938, e que teve uma difusão extraordinária, fixou suas características essenciais: os fenômenos da vida coletiva são regulados por “leis necessárias do desenvolvimento social”, “perfeitamente reconhecíveis”; “a história da sociedade se apresenta como um desenvolvimento ne- cessário da sociedade, e o estudo da história da sociedade se torna uma ciência”. Isso “significa que a ciência da história da sociedade, não obstante toda a complexidade dos fenômenos da vida social, pode se tornar uma ciência tão exata quanto, por exemplo, a biologia, capaz de usar as leis do desenvolvimento da sociedade na prática” e, por conseguinte, a tarefa do partido do proletariado é fundar sua própria atividade com base nessas leis. É evidente que o mal-entendido em torno dos conceitos de “científico” e “ciência” atingiu seu ápice. O caráter científico do método marxista, baseado em critérios teóricos escrupulosos e coerentes, foi substituído pelo modo de proceder das ciências naturais, que não contemplava nenhuma contradição. Por fim, afirmou-se a superstição da objetividade das leis históricas, segundo a qual estas operariam, como as da natureza, independentemente da vontade dos homens.
Junto a esse catecismo ideológico, o dogmatismo mais rígido e intransigente encontrou terreno fértil. A ortodoxia marxista-leninista impôs um monismo inflexível que não deixou de produzir efeitos perversos inclusive sobre os escritos de Marx. Inegavelmente, com a Revolução Soviética o marxismo experimentou um momento significativo de expansão e circulação em áreas geográficas e classes sociais nas quais estava, até então, ausente. No entanto, uma vez mais, a divulgação dos textos, em vez de remeter diretamente àqueles de Marx, dizia respeito a manuais do partido, vade-mécuns, antologias marxistas sobre diversos temas. Além disso, tornaram-se cada vez mais comuns a censura de algumas obras, o desmembramento e a manipulação de outras, bem como a prática da extrapolação e a edição astuta de citações. A esses textos, cujo uso correspondia a fins predeterminados, era atribuído o mesmo tratamento que o ladrão Procusto reservava às suas vítimas: se fossem muito compridos, eram amputados, se muito curtos, estendidos.
Em resumo, a relação entre a divulgação e a esquematização de um pensamento – e sobretudo para um pensamento tão crítico como o de Marx –, entre a sua popularização e a exigência de não o empobrecer teoricamente, é sem dúvida uma empresa difícil de realizar. A despeito disso, o fato é que, com frequência, Marx foi fortemente deturpado.
Inclinado para vários lados de acordo com contingências e necessidades políticas, ele foi assimilado a elas e, em seu nome, injuriado. Sua teoria, por mais crítica que fosse, foi usada como exegese de versículos bíblicos. Assim nasceram os paradoxos mais impensáveis. Ao contrário de “prescrever receitas […] para o cardápio da taberna do futuro”, Marx, ao contrário, foi ilegitimamente transformado no pai de um novo sistema social. Crítico rigorosíssimo e nunca satisfeito com pontos de chegada, tornou-se a fonte do mais obstinado doutrinarismo. Defensor convicto da concepção materialista da história, foi removido de seu contexto histórico mais do que qualquer outro autor. Convencido de “que a emancipação da classe trabalhadora deve ser obra dos próprios trabalhadores”, Marx foi, ao contrário, enjaulado numa ideologia que via prevalecer o primado das vanguardas políticas e do partido no papel de propulsores da consciência de classe e guia da revolução. Proponente da ideia de que a condição fundamental para o amadurecimento das habilidades humanas era a redução da jornada de trabalho, ele foi assimilado ao credo produtivista do stakhanovismo. Convicto defensor da abolição do Estado, viu-se identificado como seu baluarte. Interessado, como poucos pensadores, no livre desenvolvimento das individualidades dos homens, argumentando contra o direito burguês que esconde as disparidades sociais por trás de uma mera igualdade jurídica que “o direito teria de ser não igual, mas antes desigual”, foi associado a uma concepção que neutralizou a riqueza da dimensão coletiva no indiferenciado reconhecimento. A criticidade original de Marx foi abalada pelos empurrões da sistematização dos seguidores que produziram a distorção de seu pensamento.
*Marcello Musto é professor de sociologia na York University (Canadá). Autor, entre outros livros, de O velho Marx – uma biografia intelectual de seus últimos anos (Boitempo).
Referência
Marcello Musto. Repensar Marx e os marxismos: Guia para novas leituras. Tradução: Diego Silveira e outros. São Paulo, Boitempo, 2022, 320 págs (https://amzn.to/45Mtyqn).
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