Notas sobre a “Autobiografia” de Raphael Galvez

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Por ANNATERESA FABRIS*

A busca pelo justo equilíbrio entre o impulso criador e o domínio técnico

Numa conferência proferida em 1938, Mário de Andrade afirmava que “o artesanato é imprescindível para que exista um artista verdadeiro”. E prosseguia: “Artista que não seja ao mesmo tempo artesão […], artista que não conheça perfeitamente os processos, as exigências, os segredos do material que vai mover, […] não pode fazer obras de arte dignas deste nome”.

A ideia de que o artista e o artesão são figuras indissociáveis, já que o verdadeiro artista é concomitantemente um artesão, está na base das considerações de Raphael Galvez sobre sua carreira e seus encontros determinantes, como demonstra a autobiografia publicada no final de 2022 pela WMF Martins Fontes, com organização de José Armando Pereira da Silva. Artesão loquaz sobre as próprias contribuições e artista pouco eloquente sobre a própria obra, Raphael Galvez dedica boa parte da autobiografia à formação, às oficinas nas quais trabalhou e aos ateliês compartilhados com diversos colegas, dando particular destaque aos processos técnicos que estão na base da escultura.

É possível que a descrição do surgimento de seu interesse por essa modalidade remeta a um protótipo bastante difuso na historiografia artística: o de que o talento “luta cedo e urgentemente por expressão” (Kris & Kurz). Depois de atribuir a um desenho do tio materno César – que o encantou por sua perfeição – o “alerta” da própria “inclinação para a arte”, Raphael Galvez delega ao avô Gaetano o papel de descobridor de seu talento para a escultura. Atraído pelo barro “quase cor de ouro”, saído das valas de uma obra da Prefeitura, o pequeno Raphael sente “a necessidade de manuseá-lo, modelando com ele bonecos, flores, casinhas e muitas outras formas”. Artesão “muito sensível”, o avô admira os bonecos que o neto estava moldando e lhe sugere estudar escultura. Entusiasmado com a ideia depois que lhe foi explicado no que consistia a técnica, o pequeno consegue vencer a resistência materna.

As considerações de Raphael Galvez sobre a descoberta da própria vocação apontam para um tratamento mitológico. A conversa com o avô tinha-o levado a perceber que se tratava de um sonho incubado, que sua “única e suprema inclinação era fazer escultura” e que dedicar-se a ela era “algo sublime”. O avô tinha tirado o véu que escondia algo que ele queria, mas que estava no subconsciente. O tom da escrita torna-se emotivo: “Daí por diante, a minha vida só tinha uma razão de ser, que era a de vir a ser um dia um escultor. Nada mais eu queria. Todo o meu querer estava condicionado a essa arte, que agora, já com consciência, amava com todo fervor e se tornara o meu verdadeiro ideal”.

O enlace da descoberta casual do próprio talento com a dimensão mitológica ganha reforço quando se lê a descrição do começo da arte escultórica: “Do boneco de barro cozido, feito com amor, veio a escultura, que chegou até a sublime estátua de Apollo (detto di Belvedere), que é a mais bela visão concebida da forma espiritualizada”.

Admitido na seção de entalhe e escultura em madeira da Escola Profissional Federal, Raphael Galvez familiariza-se com formões, goivas e macetes e começa a entalhar motivos decorativos como rosas e margaridas. Para “conquistar mais facilidade”, estuda desenho e modela o barro na seção de modelagem, mas não consegue o resultado esperado e se inscreve no Liceu de Artes e Ofícios. Descontente com o processo mecânico de fazer escultura ensinado na instituição e com a “rotina de retocar vasos, figuras, jardineiras e estátuas”, é aceito no ateliê de Nicola Rollo, instalado no Palácio das Indústrias ainda em construção. É nesse momento que tem início “a verdadeira vida de estudante de arte, pois tudo era feito com o propósito de estudar realmente a arte da escultura”.

Seu primeiro trabalho – a cópia do pé de uma estátua de Antonio Canova em tamanho natural – é desaprovado e destruído por Nicola Rollo, o que o leva a refazê-lo em “dimensões enormes, para aprender melhor e, ao mesmo tempo mostrar ao mestre que o tinha compreendido totalmente”. Embora se tratasse de um exercício, Raphael Galvez transforma-o num encontro entre o artesão e o artista latente nele: “ Foi um trabalho insano, mas eu sentia um grande prazer e uma grande sensação de ser um verdadeiro escultor. Os meus colegas acharam uma verdadeira loucura essa minha ideia, mas eu não me importei e fiquei firme, modelando aquele enorme pé com seus grandes dedos, cujas unhas eram do tamanho de minha mão, e era realmente com minhas mãos que eu modelava aquelas unhas de espetacular tamanho”.

Essa prova iniciática, que atrai a atenção de Nicola Rollo, é o primeiro passo na construção mítica da figura do aprendiz como virtuose. A exibição do próprio virtuosismo, seja como habilidade para imitar o trabalho de outro artista, seja como destreza manual, desdobra-se em outros dois episódios emblemáticos protagonizados por Raphael Galvez e pelo mestre. O primeiro envolve um erro técnico cometido por um formador com a figura Il pianto sulla lira muta do monumento funerário da família Luigi Chiafarelli (1926), que tinha impossibilitado o trabalho de escarpelar a fôrma.

O aprendiz, obstinado, não leva em conta a ordem de Rollo de jogar fora a figura e trabalha nela durante duas semanas: “Comecei a escarpelá-la centímetro por centímetro, sem estragar a freschezza da modelagem da figura. Saía apenas pedacinho de um centímetro quadrado, mais ou menos, pois eu tinha que bater o corte do formão bem perpendicularmente sobre a superfície da figura e fazer estremecer a camisa rosa que, por sinal, era muito fina, dificultando ainda mais para destacar aquele pequenino quadradinho de um centímetro quadrado […]. Quando ele voltou, depois de dezesseis dias, encontrou a figura completamente escarpelada e retocada. Nicola Rollo disse: ‘O que você conseguiu, Raffaello, foi um verdadeiro milagre’, e ficou muito satisfeito e fez-me muitos elogios, e exclamou: ‘Formador novo nunca mais; daqui por diante, todos os meus trabalhos serão formados por você, meu caro Raffaello, tanto a forma quanto a reprodução do modelo’”.

Convertido em “pau para toda obra, para fazer armações, para amassar o barro, para montar escultura, para esboçar as esculturas ou para cobri-las com panos molhados para que não secasse o barro”, o jovem Raphael Galvez participa de uma empreitada ainda mais surpreendente. Quando estoura a Revolução de 1924, Rollo, que estava trabalhando na maquete do Monumento aos bandeirantes, muda-se para São Roque com a família, desinteressando-se do trabalho. Sem preocupar-se com os riscos que corria, Raphael Galvez ia todos os dias para o Palácio das Indústrias, onde estavam entrincheiradas as forças revolucionárias, para cumprir a “missão de conservar o trabalho de Rollo, molhando-o bem, para que o barro não secasse”. Com o término dos combates, Rollo volta ao local de trabalho e toma conhecimento do feito heroico do assistente. Infelizmente, o esforço de Raphael Galvez foi em vão, pois o escultor teve que desocupar o Palácio das Indústrias e levar os grupos de figuras para um barracão perto do Ipiranga, onde provavelmente foram destruídos.

Definido por José de Souza Martins um índice da “concepção de trabalho e de devotamento ao trabalho” de Raphael Galvez, o episódio de 1924 não é corroborado por Nicola Rollo. Como lembra Tadeu Chiarelli em artigo dedicado ao livro, o escultor afirmava ter perdido a maquete do monumento, pois não teve condições de umedecer cotidianamente o trabalho em argila. Se, com esse episódio possivelmente ficcional, Raphael Galvez quis destacar o próprio virtuosismo técnico como “marca de completude artística” (Kris & Kurz), não se pode esquecer que essa questão parece ser central em sua concepção de trabalho, indo além do campo escultórico. Martins capta muito bem essa característica do artista, ao considerar o episódio do almoço oferecido a Ciccillo Matarazzo na casa de Rollo como “um dos grandes e reveladores momentos” do livro. A refeição “preparada como obra de arte” é condizente com a busca meticulosa de uma perfeição técnica que adquire conotações estilísticas na viva evocação do artista.

O cuidado com que Raphael Galvez apresenta os processos técnicos da escultura é também empregado na descrição de seus dotes culinários, resumidos numa macarronada. Todo o processo de elaboração é esmiuçado nos mínimos detalhes: o uso de um “ótimo macarrão” e de queijo parmesão italiano; a escolha de uma boa peça de coxão duro recheado com várias especiarias; a diluição com água da massa de tomate e o preparo do molho; o cozimento da carne e do macarrão; a apresentação “artística” da iguaria, disposta em camadas e acompanhada pela carne, cortada “em fatias de três milímetros”. Se houvesse dúvidas sobre a proximidade de Raphael Galvez da concepção do virtuosismo como marca de distinção, bastaria atentar para esse trecho da autobiografia: “O cheiro que saía desse molho quando estava sendo feito ia pelo quintal afora, chegando até nas casas vizinhas. As domésticas e mesmo as patroas afirmavam que abria o apetite de qualquer um, e perguntavam como era a minha receita, pois elas não eram capazes de fazer igual”.

Se o artista aprende com Rollo o complexo processo escultórico é, contudo, com o jovem Júlio Guerra,[1] um estudante “puro e sincero, um tanto primitivo, porém sem vícios”, que aprende o verdadeiro significado da arte. Os desenhos de Guerra o colocam em contato com uma manifestação artística “espontânea e livre”. Compreende que a “sabedoria” adquirida com Rollo não permitia que o trabalho tivesse a marca do seu íntimo, do seu eu, da sua personalidade.

A descrição dessa descoberta é feita num tom emocionado: “Isso me alertou muito, comecei a ter mais cuidado com o meu trabalho, participando mais com o espírito, com a sensibilidade, e abandonando a maldita sabedoria adquirida pela ginástica materialista do treino, onde é a mão que faz e não a nossa sensibilidade./ Foi uma lição que aprendi: que a sensibilidade é melhor que a técnica, que o amor é criativo, e é melhor um trabalho com falhas, mas sincero e puro, do que um trabalho perfeito tecnicamente, mas que não diz nada de nosso eu, de nossa pessoa./Daí por diante me libertei daquela sabedoria adquirida, e, quando começava qualquer trabalho, a minha preocupação já não era a perfeição, a técnica, mas sim a minha participação espiritual, pondo algo de mim nos meus trabalhos; e também, ao observar o modelo, procurar o caráter e o espírito desse modelo”.

Essa defesa apaixonada da espontaneidade atenua-se no perfil de Douglas Morris, no qual é estabelecido um justo equilíbrio entre o impulso criador e o domínio técnico. Tendo constatado que o amigo possuía todos os requisitos de um bom artista – “amor, devoção, dedicação e desprendimento” –, Raphael Galvez aconselha-o a adquirir a necessária habilidade técnica. Os desenhos “belos, limpos e perfeitos e de uma grafia exuberante” resultantes desse conselho apresentavam um senão: eram mais feitos “pela sabedoria da técnica do que pela emoção sentida na hora do enfoque do assunto e do momento psicológico emocional, e do impacto que uma cena ou um objeto que a natureza nos transmite”. Sua perfeição desperta em Galvez a ideia do “carimbo”, pois eles não traziam as marcas de “erros” ou “arrependimentos”, tendo como característica uma “observação nua e crua”, destituída de interpretação.

Aprendida a lição, Morris chega finalmente ao resultado visado pelo amigo: um desenho dotado de “arrependimento e originalidade pessoal, interpretação e vibração emocional”. Essa lição tinha como ponto de partida o elogio do erro, considerado por Raphael Galvez “a ação mais sincera do homem”. O erro é benéfico, puro e verdadeiro quando assegura aos artistas a possibilidade de serem “espontâneos, livres, verdadeiros e sinceros”, quando permite “ter o arrependimento, voltar atrás e partir para outros caminhos”.

Se Rollo, o “Mestre”, e suas idiossincrasias – o uso desinibido de uma tanga para trabalhar, que escandaliza as “matronas e moças” da Alameda Joaquim Eugênio de Lima, e a Condessa Maria Ângela Matarazzo e a Madre Superiora da Capela de São Roque durante a visita ao ateliê do Jardim Paulista; o interesse pelo moto contínuo; o hábito de não dar prosseguimento a obras iniciadas; a desilusão com a arte que tenta transmitir ao aluno mais chegado – ocupam um espaço considerável nas memórias de Raphael Galvez, porém é em Alfredo Volpi que ele parece projetar a imagem do artista moderno por excelência.

Pintor introspectivo, Volpi é visto como “um iniciado que criou do nada essa sua bela expressão, que não tem nada de exibicionismo, mas tem uma simplicidade cósmica que transmite algo de sincero, algo de verdadeiro, algo de puro”. Marco da “pintura iniciática, que se emancipa das sabedorias arcaicas, tecnológicas, artificiais, metodológicas e mentirosas”, o artista trabalha com “a naturalidade de um boi que rumina a erva para se alimentar”. Voltado para a captação do cotidiano, Volpi é o patriarca da “dinastia da pintura paulista, que nasceu com ele e que se firmou no seu alicerce da verdade, da sinceridade, da simplicidade, da pureza e do amor”.

Redigida em meados dos anos 1980, com a finalidade de ser publicada, como atestam o desenho da capa e os dois cadernos com sua produção escultórica e pictórica, a Autobiografia de Galvez não fornece apenas informações sobre o circuito artístico frequentado por ele, feito de marmorarias, ateliês compartilhados, engajamento em associações profissionais, encontros mais ou menos determinantes.

Ela permite também adentrar uma São Paulo provinciana, que se escandalizava com os nus “originais e extraordinários” de Flávio de Carvalho, a ponto de solicitar o fechamento de uma de suas primeiras exposições realizada num prédio da Rua Barão de Itapetininga. Ou que tinha em Tarsila do Amaral o oposto das mulheres paulistanas, “beatas, carolas, conservadoras e de um conformismo sem limites”, que “se vestiam mais para cobrir bem seu corpo, escondendo de toda forma qualquer possibilidade de mostrar a sua nudez – isto tudo imposto por uma tradição e uma educação severa de seus ancestrais”.

A essa cidade burguesa e provinciana, em que “o conservadorismo era obrigatório”, o artista contrapõe a cidade solidária e alicerçada em laços de vizinhança, emblemada num bairro como a Barra Funda. É com emoção que Raphael Galvez evoca o padrinho da irmã Dolores, que acolheu o galo carijó da família; a “Santa Esmoleira”, que curava as crianças da vizinhança com orações e poções; o vendeiro Aristodemo Fornasari que, não raro, doava as mercadorias aos mais necessitados ou dava o dobro dos alimentos solicitados e pagos; o engenheiro Antônio Ambrósio, “um pouco arrogante e um tanto orgulhoso, porém um bom homem”, o qual resolve dar diversas peças de vestuário de seus filhos à família Galvez depois de deparar-se com o paletó cerzido inúmeras vezes do pequeno Raphael.

A condição de neto do “socialista convicto” Gaetano Dazzani reponta no relato indignado do cancelamento do Montepio ao qual a mãe tinha direito na qualidade de viúva de um funcionário da Light & Power. Como o pai Raphael Galvez Claros integrava a Sociedade Beneficente dos Empregados da Light & Power, depois de sua morte em decorrência de um acidente de trabalho, a mãe Clotilde Dazzani teria direito a uma cota vitalícia de trinta mil reis mensais e a consultas médicas e remédios para toda a família. O benefício, porém, foi cancelado de maneira unilateral em troca de uma indenização de seiscentos mil reis, considerada irrisória pelas viúvas.

O avô chegou a procurar os diretores do jornal italiano Fanfulla para protestar contra a medida, mas estes “se acovardaram […] porque a Light & Power era uma empresa muito poderosa, que estava cuidadosamente protegida pelo governo do nosso País, que se submetia às suas exigências”. A imprensa em geral “não deu ouvidos às lamúrias dessas vítimas e o crime de exploração daquela sociedade se consumou”.

Os sacrifícios feitos pela mãe para garantir o sustento da família depois do acidente do marido multiplicam-se com sua morte e o pequeno Raphael é testemunha de um trabalho sem fim, que a ocupava dia e noite, “no afã constante, para ganhar o nosso sustento e pagar o aluguel da casa”. Com poucas palavras o Raphael adulto resume uma vida de privações: “Eu ia para a escola e voltava, e minha mãe sempre a trabalhar; eu ia dormir, e, ao levantar, via a minha mãe à beira da máquina a costurar para aprontar os vestidos das freguesas que sempre tinham pressa”. As condições de vida da família Galvez melhoram com o crescimento dos filhos que começam a trabalhar na adolescência: Dolores aprende o ponto ajour e colabora com a mãe; Thereza dedica-se à confecção de chapéus femininos e botões prensados na máquina; Júlio emprega-se numa fábrica de sacos de papel. Raphael, por sua vez, ajuda nos afazeres domésticos e se incumbe das compras na venda e no açougue.

Essa dura disciplina forja um temperamento resistente, que não se envergonha da própria condição social. Ao contrário, o Raphael adulto conclui a autobiografia com uma nota de orgulho: “A minha vida foi de pobreza e sempre sem nenhuma fartura; porém, a miséria nunca me incomodou. Vivi sempre alegre, esperando dias melhores, que não sei se vieram./O meu alimento do espírito foi sempre farto e abundante, e nunca neguei esse alimento a ninguém. […] Na minha pobreza fui sempre rico, muito rico de liberdade íntima. As cadeias das imposições nunca me prenderam; as minhas ambições foram sempre espirituais; as materiais nunca existiram. […] Amei esta vida mesmo com todos os seus percalços, achando apenas que ela é curta demais”.

Ao organizar o volume, José Armando Pereira da Silva o estruturou em cinco núcleos temáticos – Família e infância; Formação; Trabalho em oficinas e ateliês; Personalidades e amigos; e Conclusões – para dar maior coerência ao “fluir de pensamentos e lembranças”, feito de “forma coloquial”. O organizador corrigiu imprecisões e erros detectados em eventos, nomes e datas “já distantes no tempo”, mas teve o cuidado de não interferir em determinadas evocações: “Algumas lembranças de Raphael Galvez podem não conferir em detalhes com o relato oficial, mas são interpretações suas, são as imagens que ele guardou ou se transfiguraram em sua memória, e assim foram mantidas, sem preocupação de confrontá-las com outras fontes”.

Tendo em vista essa assertiva, soa estranha a decisão de excluir do volume as considerações do artista sobre a Semana de Arte Moderna, em virtude de seu aspecto “opinativo”, que “contraria os vínculos manifestados em outro capítulo, com artistas participantes da Semana: Anita Malfatti, Brecheret, Di Cavalcanti e Tarsila”. Por mais idiossincráticas que elas pudessem ser, permitiriam um confronto profícuo com a historiografia oficial, esclarecendo como um participante de uma versão “menor” do modernismo via as manifestações “majoritárias” e alguns de seus principais expoentes.

Um dos grandes acertos de José Armando Pereira da Silva foi abrir cada núcleo com autorretratos, pintados em 1927, 1943, 1963, 1947 e 1980, para “fixar estados de alma”, já que eles não podem ser considerados “manifestações narcisistas”. Outro objetivo levou o organizador a fazer essa escolha: “comprovar a qualidade artística que ele alcançou nesse gênero em que o artista se desafia como sujeito e objeto da representação”.

Os cadernos de esculturas e pinturas preparados pelo próprio Raphael Galvez permitem que os leitores entrem em contato com uma obra pouco conhecida, que denota diversos diálogos com a tradição e a modernidade, tensionando os alcances do modernismo brasileiro e convidando a lançar um olhar menos preconceituoso sobre artistas e grupos que contribuíram, à sua maneira, para a tarefa de renovação da visualidade nacional. A imponente estátua O brasileiro, exposta num dos corredores do segundo andar da Pinacoteca do Estado, pode ser um bom começo de conversa com a obra multifacetada de Raphael Galvez, ora mais clássica, ora próxima de certas declinações expressionistas na escultura; ora cézanniana, ora quase abstrata na pintura.

*Annateresa Fabris é professora aposentada do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. É autora, entre outros livros, de Realidade e ficção na fotografia latino-americana (Editora da UFRGS).

Referência


Raphael Galvez. Autobiografia. Organização: José Armando Pereira da Silva. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2022, 750 págs.

Bibliografia


ANDRADE, Mário. “O artista e o artesão”. In: _______. O baile das quatro artes. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1963.

CHIARELLI, Tadeu. “Petit maître” (21 dez. 2022). Disponível em: artebrasileiros.com.br/opinião/conversa-de-barr/raphael-galvez>.

KRIS, Ernst; KURZ, Otto. Lenda, mito e magia na imagem do artista: uma experiência histórica. Lisboa: Editorial Presença, 1981.

MARTINS, José de Souza. “O modernismo de Raphael Galvez no lado de dentro da vida”. In: GALVEZ, Raphael. Autobiografia. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2022.

SILVA, José Armando Pereira da. “A vocação de Raphael Galvez”. In: GALVEZ, Raphael. Autobiografia. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2022.

Nota


[1] Autor da polêmica estátua de Borba Gato (1963), Guerra é também responsável pela criação de Mãe Preta (1954), situada no Largo do Paissandu, e do painel Homenagem às artes (1968) do Teatro Paulo Eiró.

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