As Americanas vêm abaixo!

Imagem: Allan So
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Por JADIR ANTUNES*

A crise das Americanas é uma crise criada pelas próprias contradições do mercado capitalista

O mundo presente, e nele incluído o Brasil, não parece ser em nada diferente do passado vivido e analisado por Karl Marx em seus trabalhos de crítica ao capitalismo. O colapso das Americanas é prova disso. Marx e a leitura árdua de seu O capital poderiam ser dispensados se este colapso tivesse mesmo como causa um fundamento ético-moral, uma falha no caráter de seus altos executivos e acionistas majoritários, uma má fé e um desvio de comportamento na gestão dos negócios, uma conduta, enfim, incompatível com os princípios da ética e da moralidade.

Se fosse este o caso, Marx poderia ser substituído pela leitura mais agradável de Aristóteles e Kant. Mas não! O colapso das Americanas não tem nenhuma relação com o problema da conduta imoral de seus agentes de mercado. O colapso das Americanas tem um fundamento objetivo, racional e científico que independe totalmente da moral, um fundamento que reside no próprio modo de ser do mercado, de suas dicotomias, cisões, ironias, paradoxos e contradições.

O mercado é uma grande máquina em permanente movimento formada por peças, engrenagens, polias, correias e forças motoras alimentadas por dinheiro. Se uma destas peças ou engrenagens quebrar ou falhar, se a máquina não for alimentada continuamente com novos fluxos de dinheiro, o conjunto da máquina emperra e entra em colapso fatal.

A máquina do mercado é composta, ao menos, por cinco peças ou engrenagens importantes: (i) a indústria extrativista de base, aquela parte que está diretamente ligada à exploração da natureza e fornece a chamada matéria prima para a indústria de transformação, como a agricultura, a pecuária, a mineração e as usinas de energia e combustível; (ii) a indústria de transformação, a parte formada pelos fabricantes e manufatureiros que modificam e concluem o trabalho iniciado pela indústria de base; (iii) o atacadista, a parte que compra do fabricante e põe a coisa fabricada à disposição do varejista; (iv) o varejista, a parte que põe a coisa nas mãos do comprador final; (v) o comprador ou consumidor final, a massa dos indivíduos que destruirá a coisa no consumo. No meio desta engrenagem atuam os bancos emprestando dinheiro para os negócios e abocanhando parte dos salários e da mais-valia produzida através dos juros.

O impulso que move esta máquina é a acumulação de dinheiro em escalas sempre maiores e crescentes. A coisa fabricada é uma mercadoria cuja única coisa que importa, portanto, é ser trocada por dinheiro – dinheiro real. O problema começa, porém, com o fato de que todos os atos de troca realizados entre estas diferentes engrenagens são feitos com dinheiro que não é dinheiro propriamente dito, são feitos com notas promissórias, com documentos que prometem pagar a coisa efetivamente em dinheiro somente num prazo futuro e que têm valor meramente jurídico, mas não econômico.

O dinheiro, a meta final e absoluta desta imensa engrenagem, aparece e funciona inicialmente, assim, somente como meio de pagamento, como promessa de ser dinheiro efetivamente somente no futuro. A realização da mais-valia, porém, não pode ser feita com meros títulos jurídicos, mas com dinheiro efetivo.

Toda esta cadeia de atos de troca funciona, assim, inicialmente, com crédito fornecido pelo vendedor. A mercadoria é entregue ao comprador no presente mediante uma promessa de pagamento no futuro. Assim, todas as engrenagens do mercado se fundem numa cadeia de elos e compromissos que depende totalmente do dinheiro aparecer efetivamente como dinheiro. A dependência do mercado com a circulação do dinheiro, por isso, é um traço fundamental desta engenhoca. O dinheiro deve surgir e circular entre todas as partes desta máquina, resgatar as notas promissórias emitidas e concluir a meta final do processo: juntar e empilhar dinheiro.

A máquina emperra, portanto, toda vez que faltar dinheiro. Seu movimento torna-se mais lento, a cadeia de trocas gira mais vagarosamente, a demora e o vagar do fluxo contínuo das trocas enferrujam suas engrenagens e a máquina pode falir. Para que o fluxo seja permanente, portanto, e para que a máquina não perca o vigor de seus movimentos é fundamental acréscimos contínuos e crescentes de dinheiro, pois a máquina tem uma gula insaciável por dinheiro, dinheiro efetivo, dinheiro vivo. O dinheiro ideal na forma de meio de pagamento não a satisfaz.

Ainda que a máquina em seu conjunto produza por produzir e troque por trocar, ainda que sua meta final seja o dinheiro, ela está inteiramente submetida ao consumo humano, aos movimentos da última peça do sistema, à existência de dinheiro no bolso do consumidor final, à peça que surge no mercado com o dinheiro real e torna possível ao varejista resgatar suas notas promissórias com o atacadista, este com o fabricante e este, por sua vez, com o fornecedor de matéria prima. As Americanas quebraram e, assim, rompeu o elo com seus fornecedores, porque faltou dinheiro no bolso do comprador final do sistema de trocas.

Esta falta de dinheiro no bolso do comprador final pode ser atestada pela queda no volume da massa salarial disponível e pela relação entre esta massa e o PIB do país investigadas pelo IBGE. De 2019 a 2022, a relação entre o PIB brasileiro e a massa salarial dos trabalhadores caiu abruptamente de 43,5% para 30,9%. Em três anos houve uma queda brutal de 12,6% na capacidade de consumo total da classe trabalhadora brasileira. Em termos aproximados, sumiram do bolso do conjunto da classe trabalhadora cerca de 25 bilhões de reais. Este mesmo sumiço está na base da falência das Americanas.

A gula insaciável e permanente do capital por dinheiro aplaudiu o sofrimento da classe trabalhadora e o arrocho salarial durante a pandemia, aplaudiu a reforma trabalhista e previdenciária, os empregos precarizados, o sistema intermitente, rotativo e mal pago de salários, aplaudiu a queda real do salário mínimo e o congelamento de salário dos servidores, o fim do Ministério do Trabalho, o fim da fiscalização das fábricas, a ameaça e o assassinato de seus profissionais, aplaudiu, enfim, o aumento da exploração da classe trabalhadora brasileira. Agora, a voracidade insaciável do capital por sangue e vidas humanas cobra, contraditoriamente, o seu preço e reage sobre as pretensões irracionais da máquina capitalista em seu conjunto.

Não bastasse a queda da massa total de salários destes últimos anos, somou-se a ela uma queda do poder de compra real do salário do trabalhador individual. Ainda que, em certos casos, o número de empregados do país tenha crescido e diminuído, assim, o tamanho do desemprego, os novos empregos foram oferecidos por um salário menor que o anterior. Soma-se a este o fato de que aumentou, ainda, o percentual de empregos com salário abaixo de um salário-mínimo.

Para piorar, o próprio salário-mínimo destes últimos anos piorou para baixo dos anos anteriores a Jair Bolsonaro. Como se tudo isso fosse pouco, a inflação de alimentos, aluguel, farmácia, combustível, transporte e demais objetos de consumo essenciais do trabalhador, o boleto da casa própria, do carro velho financiado e da linha branca abocanharam a maior parte do salário do trabalhador, sobrando muito pouco para gastar com as quinquilharias das Americanas.

O mercado é uma grande máquina devoradora de vidas humanas. O capital tem um único impulso de vida – a acumulação permanente de dinheiro. Este impulso leva o capitalista individual não apenas à superexploração da classe trabalhadora, mas, ainda, à expansão ilimitada de seus negócios e ao surgimento de novos concorrentes. Ao lado desta superexploração surgem, assim, novos capitalistas, mais fanáticos e enlouquecidos que os habituais, à procura de dinheiro, de um dinheiro que, como vimos, sumiu e faz falta aos tradicionais operadores do mercado.

O caso mais conhecido e popularizado deste fanatismo da concorrência entre nós é o das lojas Havan, uma loja praticamente inexistente até os anos 2.000. A Havan, concorrente direta das Americanas, possuía, em 2002, meras cinco lojas no sul do país. Em 2011, impulsionada com recursos públicos do BNDES, pulou para 24. Em 2018, sempre com recursos públicos, saltou para 107 e agora chegou a 173 megalojas espalhadas por todo o território brasileiro, competindo diretamente com os negócios das Americanas, tomando parte de sua clientela e do dinheiro que faltou a esta para solver suas dívidas com os credores: fabricantes, atacadistas e bancos – públicos e privados. Ao lado da Havan, somam-se, ainda, competidores poderosos como a Amazon e as compras diretas da China através de aplicativos de compra como a Shopee.

A crise das Americanas não nos parece ser, por isso, como indicamos na introdução, uma crise oriunda da conduta moral de seus gerentes e acionistas, ainda que eles possam ser concebidos como homens imorais e desprezíveis. A crise não tem origem na conduta moral dos agentes do mercado porque, em certo sentido, todo o mercado, mesmo em épocas de prosperidade, tem sua lógica regida pela imoralidade da coisificação e da exploração do homem pelo homem.

Um primeiro defeito da crítica moral ao mercado se deve ao fato de que a moral é regida pelo princípio do dever-ser e não do ser efetivo da coisa. Para se compreender objetivamente o mercado é preciso compreender sua constituição efetiva e sua lógica real. Um segundo defeito se deve ao fato de que a crítica moral é sempre carregada de emotivismo e subjetivismo, funcionando, muitas vezes, como mera projeção para fora de nós de rancores e anseios frustrados de justiça. A crítica moral ao mercado é sempre uma crítica burguesa e liberal. Ainda que inflamada pela beleza e pelo ardor do desejo de justiça, a crítica moral aceita que tudo fique como está desde que tudo esteja de acordo com os anseios punitivistas de nosso desejo.

A crise das Americanas é uma crise objetiva e econômica que se desenvolve num ramo determinado da produção: o ramo da produção de bens de consumo para o trabalhador. Uma crise que pode ser compreendida teoricamente primeiro, como uma crise do dinheiro na sua função de meio de pagamento, segundo, como uma crise de subconsumo no polo da classe trabalhadora, terceiro, como uma crise de superoferta de produtos em relação à capacidade solvente do mercado comprador, quarto, como uma crise na realização de parte da mais-valia feita com meros títulos jurídicos, quinto, como uma crise oriunda da anarquia do mercado e à livre iniciativa do capitalista individual e, sexto, como uma crise que surge da desmedida insana do capital, que só encontra limites na medida cada vez mais encolhida do consumo humano.

A crise das Americanas, resumindo, é uma crise criada pelas próprias contradições do mercado capitalista. É uma crise, ainda, que parece se estender para outras lojas de varejo como a multinacional C&A que está sendo vendida para as Lojas Renner e não se limitar à esfera da troca, mas que começa a se expandir para o mundo da produção e de suas concorrentes nacionais, como a Riachuelo, que anunciou o fechamento de sua unidade de produção no Ceará e demitirá cerca de 2 mil trabalhadores.

Só uma coisa pode salvar as Americanas: dinheiro, dinheiro vivo e efetivo. A máquina do mercado não funciona sem ele. Se ele sumiu do bolso do trabalhador é preciso encontrá-lo em outros bolsos. Caso não seja salva, pelo bolso dos próprios acionistas, pelos bancos, por novos investidores ou pelo bolso do governo, as Americanas sucumbirão à guerra de todos contra todos e à mesma sorte das antigas Mesbla, Mappin e Arapuã, falidas pelas mesmas contradições atuais e pelo mesmo sumiço do dinheiro do bolso do trabalhador.

*Jadir Antunes é professor de filosofia na Unioeste. Coautor, com Hector Benoit, de O problema da crise capitalista em O capital de Marx (Paco Editorial).

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