Por Paulo Capel Narvai*
A ignorância, em suas várias modalidades, produz o que se poderia caracterizar como uma espécie de terraplanismo epidemiológico, que se constitui como um dos principais desafios à contenção da pandemia COVID-19 no Brasil.
Com epidemias, não se deve brincar. Não se deveria, também, manipular doença e morte, mercantilizando-as. Também não se deveria ideologizar e partidarizar o fenômeno epidemiológico, prejudicando o seu enfrentamento com base em evidências científicas. Contudo, o episódio atual protagonizado pelo vírus SARS-Cov-2 (Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2) mostra que hoje, no Brasil, não há espaço para esse mundo do “deve ser”. Por aqui, a mais alta autoridade da República faz chacota com a epidemia COVID-19 (do inglês ‘Coronavirus Disease 2019’), empresários manipulam preços de produtos cujo consumo inútil é estimulado pela ignorância e ideólogos terraplanistas zombam do novo coronavírus, que não passaria de um “comunavírus”. O cenário, desalentador, revela uma mescla abjeta de oportunismo político-partidário com ganância e ignorância. A consequência é que aumentam nossas dificuldades para controlar a pandemia.
Difundir informações é essencial no enfrentamento de epidemias. Refiro-me a informações científicas e não a “notícias”, simplesmente. Nem a fake news, decerto. A história brasileira registra o episódio, lamentável, da desinformação da população sobre a epidemia de meningite no início dos anos 1970. A censura imposta à imprensa pela ditadura civil-militar, impedindo a circulação de informações, contribuiu negativamente, pois ajudou a aumentar a circulação do meningococo ao retardar muito a vacinação. A censura à imprensa causou mortes evitáveis1.
Na atual pandemia COVID-19 há, também, guerra de informação, envolvendo potências econômicas. Donald Trump, de um lado, se refere ao coronavírus como “um vírus estrangeiro” [sic] , e acusa a China de utilizar a epidemia para jogar com preços de commodities, petróleo e soja, sobretudo. Zhao Lijian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, respondeu afirmando que o SARS-Cov-2 foi introduzido na China pelos Estados Unidos, em ato criminoso, por ocasião da sétima edição dos Jogos Mundiais Militares, em outubro de 2019, em Wuhan, cidade a partir da qual a epidemia se transformaria em pandemia. O objetivo seria criar dificuldades econômicas aos chineses2. O fato é que ninguém tem dúvida sobre o notável impacto da pandemia sobre as atividades econômicas em todo o planeta. As bolsas de valores, segundo Nouriel Roubini, o economista que anteviu a crise financeira de 2008, cairão de 30% a 40%3.
Outro tipo de guerra de informações é a disputa pelo monopólio da informação “correta” a ser divulgada para “esclarecer” a população e evitar “pânico”, envolvendo cientistas e especialistas de várias áreas. Médicos(as), aos montes, mas também enfermeiros, biólogos e até mesmo “paramédicos”, vêm povoando as redes sociais com suas verdades “científicas”, todos se dizendo apolíticos, técnicos, apoiados em suas “experiências” e “vivências”, as de quem estaria com “a mão na massa”. “Eu sou de fazer, não de ficar falando”, ouvi de um deles. Alguns se dizem “cansados” de ver “besteiras” sendo ditas por leigos e, por estarem “cansados” e “não aguentarem mais”, vêm a público para mostrar onde estaria a verdade e o que fazer. Cada disciplina científica ou especialidade médica, por vezes ignorando a complexidade de fenômenos epidemiológicos, tem sempre algum de seus luminares a postos para nos “explicar” o que se passa. “Cientificamente”, segundo creem. Tudo o que colide com suas certezas “científicas”, ainda que proveniente de outras disciplinas ou especialidades, não merece crédito, nem respeito. Alguns, mais ideologizados, deduzem que outros pontos de vista, igualmente embasados em saberes científicos, teriam apenas a finalidade de criar pânico. Seriam, apenas e tão somente, coisas dessa “turma do contra”.
Não, caro leitor, cara leitora, fique tranquilo(a), pois não me porei a dizer onde está a verdade, nem o que fazer.
As características biológicas e epidemiológicas, básicas, envolvendo o o SARS-Cov-2 são bem conhecidas a esta altura do desenvolvimento da pandemia COVID-19. As básicas. Mas não se sabe como as coisas evoluirão em países tropicais, pois a epidemia está chegando agora. O Brasil está nessa expectativa. O que se sabe é suficiente, contudo, para reconhecer que não se trata de “uma gripe como qualquer outra”.
O pior modo de lidar com a COVID-19 é ficar paralisado, “achando coisas” (que é uma “fantasia” e que não é “tudo isso que a grande mídia propaga”4 ou que é “apenas uma gripinha”). O devaneio sobre a epidemia foi de ninguém menos do que o Presidente da República, principal responsável pelo descuido do governo federal que não deu à epidemia a devida atenção em janeiro, demorando a reagir com relação aos brasileiros que estavam na China e que apenas em fevereiro começou a dar mostras de tentar articular ações federais com Estados e Municípios. Mas até meados de março o país não conhecia qualquer plano para assegurar assistência aos milhares de doentes que, sabe-se, buscarão assistência em serviços públicos e privados. Pressionado por servidores públicos especializados em vigilância epidemiológica, por governos estaduais e municipais, e pela opinião pública, o governo federal pôs em curso seu plano para coordenar o enfrentamento da pandemia no Brasil. Coordenação, registre-se, que é sua obrigação constitucional.
No exercício dessa função, porém, o ministro da Saúde rapidamente se deu conta das dificuldades que teria. A par do agravamento do subfinanciamento do SUS, causado pela Emenda Constitucional 95/2016 (a EC da Morte, que congelou por 20 anos os recursos do SUS), com sucateamento dos serviços, e o descontrole do sistema em muitos municípios, em decorrência da privatização de unidades de saúde de vários níveis de atenção, a coordenação das ações de contenção da pandemia vem sendo muito prejudicada pela falta de credibilidade da principal autoridade da República. Como se sabe, a função de coordenação requer respeito e confiança em quem a exerce. No caso, as fanfarronices de Bolsonaro à frente do cargo do qual é mandatário, escalando um palhaço para falar aos jornalistas, distribuindo “bananas” aos interlocutores que não são da sua preferência (consta que teria dado uma banana ao novo coronavírus) e outras atitudes bizarras, minam sua credibilidade e isto contamina todo o governo sob seu comando, prejudicando notavelmente as ações do seu ministro da Saúde. Sua aparição midiática, portando máscara, foi outro desastre na comunicação social requerida neste momento.
Nesse contexto em que o governo federal não consegue coordenar bem o esforço nacional de contenção da pandemia, impera uma espécie de salve-se quem puder, com governos estaduais e municipais, e instituições e empresas, tomando decisões contraditórias, frequentemente conflitivas. É uma espécie de balbúrdia sanitária. O Estado de São Paulo tirou, sabe-se lá de onde, um inacreditável critério quantitativo que fixou em 500 pessoas um limite “aceitável” para a realização de eventos. A Universidade de São Paulo, utilizou 100. Números mágicos, apostas. A balbúrdia vira um jogo.
A alta transmissibilidade do coronavírus recomenda o “distanciamento social”. A baixa letalidade do SARS-Cov-2 é, comparativamente com outras epidemias, de certo modo, tranquilizadora. Mas ninguém deve se iludir com isso, pois uma epidemia como a COVID-19 impõe a adoção de medidas dirigidas à organização da prestação dos cuidados de saúde que serão necessários. O fato de o Brasil dispor de um sistema universal de saúde, o SUS, dá ao país uma boa infraestrutura para isto, pois contamos com 42.488 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 538 Unidades de Pronto Atendimento (UPA). Integram o que se convencionou denominar de rede básica. Nessas unidades de saúde trabalham profissionais de saúde, de modo geral bem qualificados, mal remunerados e sob condições laborais precárias, que constituem a espinha dorsal do sistema. Essa rede, espera-se, fará diferença positiva na batalha epidemiológica que já se iniciou. Atenua, também, que a remissão da doença é espontânea, mas até que isto ocorra pressionará intensamente a rede hospitalar, dada a necessidade de internação, e pode levar a óbito. As estimativas indicam milhares de óbitos, sobretudo de pessoas muito idosas (mais de 80 anos). Tendo em vista que a transmissão sustentada (“comunitária”) do vírus indica que se está num cenário em que haverá inexoravelmente a propagação do coronavírus, coordenar as ações para que a ocorrência de casos se distribua o mais lentamente possível na linha do tempo é essencial, como medida preventiva. É igualmente necessário coordenar a assistência aos doentes, para diminuir o número de mortes. Aqui, na capacidade de coordenar, contando com o suporte da inteligência epidemiológica desenvolvida pelas instituições públicas brasileiras, reside outra enorme fortaleza do SUS. O país dispõe de milhares de servidores públicos bem qualificados que atuam na área de vigilância em saúde e que, neste contexto, representam um recurso de valor inestimável. É o SUS cuja atuação, habitualmente, não se vê.
Nesse contexto, em que a coordenação de ações assume importância estratégica sendo tão importante quanto os conhecimentos sobre o SARS-Cov-2, é evidente que Bolsonaro e suas bizarrices não só não contribui para a gestão adequada do controle epidemiológico pelos órgãos do SUS em todo o país, como o próprio presidente da República passa a ser parte do problema. Ele e aqueles que o apoiam de modo politicamente organizado, como é o caso de um movimento envolvido na organização de atos públicos em todo o país no último dia 15 de março, contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Ignorando e zombando das recomendações para cancelar eventos e manter distanciamento social, mantiveram resolutos seus atos, alegando que não deveriam recuar “por causa de uma porcaria de um coronavírus”. Manifestantes levaram o negacionismo da pandemia ao clímax. Um deles declarou que “o coronavírus nunca matou uma pessoa na face da terra. Nem vai matar. Velhos morrem por pneumonia e outras coisas mais”, explicou. O presidente da República e seus acólitos são a dimensão política mais relevante da epidemia COVID-19, no Brasil.
A principal luta da humanidade, ao lado dos desafios da sobrevivência, sempre foi a luta contra a ignorância, contra o desconhecido. Decerto que saciar a fome, conseguir abrigo e sobreviver às doenças são desafios permanentes para a espécie humana. Mas, assegurada a sobrevivência, o Homo sapiens tem na ignorância, no desconhecimento, nas fantasmagorias e crendices, a maior ameaça à espécie. Seu enfrentamento, cotidiano, tem longa história e registra passagens que não nos colocam em nenhum panteão das espécies, ou algo assim. Não há um começo para o registro dos que pagaram com vida a ousadia de desafiar poderosos, em nome do conhecimento, mas é inegável o marco representado pela condenação e morte de Sócrates. A longa lista inclui Giordano Bruno e fez vítimas não fatais, mas igualmente lamentáveis, como Galileu, Spinoza, Darwin, Unamuno, Freire e Snowden, para chegar à contemporaneidade.
Linsey McGoey, canadense autora do livro “The unknowers: how strategic ignorance rules the world”6, cunhou a expressão “ignorância estratégica” para caracterizar um fenômeno que diz respeito à omissão de pessoas, empresas e governos que, frente a conhecimentos que possam lhes ameaçar de algum modo, optam por ignorá-los, ainda que não sejam, a rigor, ignorantes, tecnicamente falando.
Assim como há epidemias e epidemias (a COVID-19, por exemplo, é bem diferente da epidemia de ebola, dada a grande diferença de letalidade entre ambas), há ignorância e ignorância. A ignorância estulta, produto da estupidez completa, nada tem a ver com a ignorância estratégica. Mas a pior ignorância parece ser a ignorância arrogante.
O ignorante arrogante pensa que está acima de tudo e de todos, notadamente das leis e das regras de convívio social. Nada que diga respeito “ao povo” e às “coisas do povo” lhe diz respeito. Ele “não tem nada a ver com isso” e não crê em coisa alguma que não sejam as suas convicções sobre qualquer assunto. Nem pensar em que, por alguma razão coletiva (o interesse da saúde pública, por exemplo), se atrevam a restringir-lhe o “sagrado direito de ir e vir”. Tal é o caso de pessoas que, tendo tido contato com indivíduos comprovadamente portadores do coronavírus SARS-Cov-2, decidem que não seguirão as recomendações das autoridades públicas. O noticiário recente registra episódios de pessoas nessa condição que frequentaram deliberadamente espaços sociais de afluxo humano, como restaurantes, templos, e centros comerciais5. O ignorante arrogante não se deixa tocar, nem de longe, pelo conhecimento que provem das evidências científicas. Estas, nada significam para ele. Não é herdeiro, nem parece lhe fazer falta, os sacrifícios de Sócrates e Giordano. Nas fogueiras da Inquisição, e nas queimadas de livros do nazismo, o ignorante arrogante tinha o fogo nas mãos.
A ignorância, em suas várias modalidades, produz o que se poderia caracterizar como uma espécie de terraplanismo epidemiológico, que se constitui como um dos principais desafios à contenção da pandemia COVID-19 no Brasil.
Referências
1. Barata RCB. Meningite: uma doença sob censura? São Paulo: Cortez; 1988.
2. Porta-voz da Chancelaria da China acredita que EUA podem ter levado o COVID-19 a Wuhan. Sputnik Brasil. 12 mar 2020. Disponível em: https://tinyurl.com/yx5acpkl
3. “Esta crise se espalhará e resultará em um desastre”. Por Tim Bartz. Carta Maior. 28 fev 2020. Disponível em: https://tinyurl.com/scm48pr
4. “É muito mais fantasia”, diz Bolsonaro sobre crise nos mercados causada por epidemia de coronavírus. Por Mariana Sanches. BBC News Brasil. 10 mar 2020. Disponível em: https://tinyurl.com/ropkxn7
5. McGoey L. The unknowers: how strategic ignorance rules the world. London: Zed Books; 2019.
6. Mesmo com coronavírus, paciente de Brasília frequentou shopping, igreja etc. Diário do Poder. 12 mar 2020. Disponível em: https://tinyurl.com/r396z7o
* Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP