O tapete voador

Gillian Ayres, Sala de Crivelli I, 1967
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

O tapete, que ao voar tornou-se ator de As mil e uma noites, é uma das grandes invenções e patrimônio da humanidade

Devemos a As mil e uma noites a intimidade com o tapete voador, ou tapete mágico, um dos talismãs de Aladim, aquele da Lâmpada e do Gênio. Atende a nossa fantasia de voar com autonomia, comum nas crianças e nos sonhos dos adultos.

O tapete ocupa lugar de honra numa civilização em que, ao contrário do Ocidente, dispara projeções. Além de ornar palácios, forra tendas no deserto, onde constitui o único piso em cima da areia. Pendurado para formar reposteiros e divisórias, substitui paredes. Com sua trama multicolorida, em que se veem cópias reduzidas de fontes e ramagens e bichinhos (desmentindo a noção de que o Islã proíbe imagens), opera uma internalização do oásis ou do jardim. Transferindo-os simbolicamente para dentro do lar, mitiga a dureza agreste da paisagem calcinada circundante.

Típico de povos pastores, que assim aproveitavam a lã de seus rebanhos de ovelhas, seu desenvolvimento e apogeu se dá na Pérsia, hoje Irã. Tanto é que, seja qual for sua origem, venha da China, do Egito ou da Turquia, três grandes provedores de tapetes, tornou-se conhecido como “tapete persa”.

Quem pode nos ajudar a entender melhor o tapete voador é Gaston Bachelard, o filósofo francês que escreveu a bela sequência de livros em que analisa as figuras literárias do que chamou de “ imaginação dos quatro elementos” – terra, água, fogo e ar.

Bachelard define o “voo onírico”(em O ar e os sonhos) e o “devaneio ascensional” em desafio às forças da gravidade (em A terra e os devaneios do repouso), sendo esta uma fatalidade que o engenho humano viria a contradizer. O desejo de voar precede em vários milênios a invenção do avião, com direito à representação artística. Pense-se nos anjos da iconografia cristã: os serafins têm três pares de asas, tal como se vê em tanta pintura medieval e renascentista. Ou nos touros alados com cabeça humana dos assírios. Dentre os deuses egípcios supremos, Isis é usualmente representada com as duas asas espalmadas, de que se serve para abanar Osiris e ressuscitá-lo. Deus do firmamento, Horus, o filho do casal, tem asas e cabeça de falcão. Entre os gregos, Hermes (Mercúrio para os romanos), o mensageiro dos deuses, ostentava um par de asinhas em cada calcanhar, garantindo a mobilidade pelos ares.

Mas os deuses também tinham uma mensageira, Íris-das-asas-de-ouro, que, quando se deslocava entre a Terra e o Olimpo, riscava o céu criando em seu rastro o arco-íris. Célebre e frequente nas artes plásticas é Pégaso, o cavalo alado, bem como o grifo e a sereia aviforme. Leonardo Da Vinci criou várias máquinas voadoras, que não chegou a testar, mas estão expostas nos museus e até vieram ao Brasil, numa mostra na Oca do Ibirapuera. E Gaston Bachelard registra desde casos documentados de pessoas que tentaram voar com engenhocas ou asas postiças e se espatifaram, até algo que remete à mitologia como a lenda de Ícaro.

Como se sabe, este grego subiu aos céus com asas de plumas, mas se distraiu traçando arabescos no éter e se aproximou demasiado do Sol, numa alegoria da desmesura. A cera que prendia as asas derreteu, Ícaro despencou e morreu.

Quem apreciava As mil e uma noites era Jorge Luis Borges. Além de citá-la amiúde, também escreveu um erudito ensaio sobre seus tradutores. A eles podemos acrescentar Mamede Jarouche, professor da USP, que produziu uma versão brasileira. No ensaio, Borges desdobra seu saber.

Adepto do raciocínio a contracorrente, Borges, à sua maneira arrevesada e heterodoxa, compara inicialmente as duas traduções mais célebres: a primeira, a de Galland para o francês, expurgada dos episódios eróticos, e a de Burton para o inglês, que trata de restaurar o que a censura mutilara. O belíssimo (e libertino) filme de Pasolini baseia-se nesta última. Borges exalta a qualidade estética da primeira, que mantém o clima maravilhoso e mágico da obra, em detrimento de suas reticências. Examina ainda outras traduções e controvérsias, louvando por exemplo as infidelidades de Mardrus em extrapolações mais rococós que o original, desculpando-o pela colaboração criadora.

O tapete, que ao voar tornou-se ator de As mil e uma noites, é uma das grandes invenções e patrimônio da humanidade: como se vê, merece respeito.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).


O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Heraldo Campos Luiz Bernardo Pericás Fernão Pessoa Ramos João Carlos Salles Salem Nasser Luiz Renato Martins Eleutério F. S. Prado Ladislau Dowbor Chico Whitaker Matheus Silveira de Souza Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Michael Löwy Ronald León Núñez Bento Prado Jr. Leonardo Boff Michael Roberts Francisco de Oliveira Barros Júnior Boaventura de Sousa Santos João Paulo Ayub Fonseca Rafael R. Ioris Remy José Fontana Flávio Aguiar Jorge Branco Marcelo Guimarães Lima Andrés del Río Annateresa Fabris Luiz Carlos Bresser-Pereira Marcelo Módolo Airton Paschoa Thomas Piketty José Dirceu Juarez Guimarães Daniel Afonso da Silva Tales Ab'Sáber Tarso Genro Mário Maestri Alysson Leandro Mascaro Marcos Silva Rubens Pinto Lyra Celso Frederico Yuri Martins-Fontes Rodrigo de Faria Bruno Fabricio Alcebino da Silva Daniel Brazil Walnice Nogueira Galvão Luis Felipe Miguel Jean Pierre Chauvin Luiz Werneck Vianna Priscila Figueiredo Gerson Almeida Flávio R. Kothe Leonardo Sacramento Alexandre de Freitas Barbosa Alexandre Aragão de Albuquerque Marcus Ianoni Bruno Machado José Machado Moita Neto Luiz Eduardo Soares Fernando Nogueira da Costa Gilberto Maringoni Michel Goulart da Silva Ricardo Musse Luís Fernando Vitagliano Julian Rodrigues Vladimir Safatle João Sette Whitaker Ferreira José Geraldo Couto Paulo Capel Narvai André Márcio Neves Soares Gabriel Cohn Mariarosaria Fabris Luiz Roberto Alves Manuel Domingos Neto Liszt Vieira Claudio Katz Slavoj Žižek Eliziário Andrade Francisco Pereira de Farias Afrânio Catani Berenice Bento Caio Bugiato Celso Favaretto Denilson Cordeiro Paulo Fernandes Silveira Milton Pinheiro Renato Dagnino Antonino Infranca Elias Jabbour Francisco Fernandes Ladeira Igor Felippe Santos José Costa Júnior Maria Rita Kehl Otaviano Helene Sergio Amadeu da Silveira Henri Acselrad João Lanari Bo Marilena Chauí Luiz Marques Anselm Jappe Antônio Sales Rios Neto Atilio A. Boron Ricardo Antunes Osvaldo Coggiola Eugênio Trivinho Marcos Aurélio da Silva Alexandre Juliete Rosa Plínio de Arruda Sampaio Jr. Alexandre de Lima Castro Tranjan Chico Alencar Carlos Tautz José Luís Fiori Paulo Nogueira Batista Jr Jorge Luiz Souto Maior Dennis Oliveira Gilberto Lopes Jean Marc Von Der Weid Armando Boito João Adolfo Hansen Eleonora Albano Ronald Rocha Everaldo de Oliveira Andrade Ricardo Fabbrini Eduardo Borges Vanderlei Tenório Henry Burnett Benicio Viero Schmidt Kátia Gerab Baggio Andrew Korybko Bernardo Ricupero Luciano Nascimento Valerio Arcary Leda Maria Paulani Tadeu Valadares Carla Teixeira André Singer Ronaldo Tadeu de Souza Marilia Pacheco Fiorillo Daniel Costa Érico Andrade Leonardo Avritzer Vinício Carrilho Martinez Paulo Sérgio Pinheiro Samuel Kilsztajn Eugênio Bucci João Feres Júnior Manchetômetro Ricardo Abramovay José Raimundo Trindade Antonio Martins Lincoln Secco Marjorie C. Marona João Carlos Loebens Ari Marcelo Solon Lucas Fiaschetti Estevez Dênis de Moraes Paulo Martins Sandra Bitencourt José Micaelson Lacerda Morais Fábio Konder Comparato Lorenzo Vitral

NOVAS PUBLICAÇÕES