Por MARIANA MAZZUCATO & ROSIE COLLINGTON*
Quanto mais os governos confiam nas consultorias, mais perdem sua capacidade de fazer as coisas por conta própria
Conforme a remuneração real continua caindo na Grã-Bretanha e perduram os cortes em serviços vitais, como a habitação e o sistema de justiça, parece haver apenas um item no orçamento do governo que é imune à crise do custo de vida: os consultores do setor privado.
O The Guardian revelou recentemente que ministros britânicos suspenderam silenciosamente os controles sobre o gasto com consultores, removendo restrições que demandavam autorização central nos casos em que contratos com grupos como Deloitte, McKinsey e Boston Consulting Group durassem mais de nove meses ou custassem mais do que 600.000 libras.
Estas regras não foram capazes de impedir um acúmulo de gastos nos últimos anos: uma estimativa sugere que o setor público do Reino Unido concedeu 2,8 bilhões de libras em contratos de consultoria em 2022 – um aumento de 75% com relação a 2019. Contudo, esta movimentação indica que o affair de Whitehall com o setor está longe de acabar – apesar do acúmulo de evidências de que essa forma de administrar um país é uma receita para o fracasso.
Realmente, a onipresença de consultores em toda a economia global é surpreendente. Na última década, as maiores empresas foram contratadas para planejar cidades inteligentes, desenvolver estratégias de carbono neutro, propor reformas educacionais, aconselhar exércitos, gerir a construção de hospitais, rascunhar códigos éticos de medicina, escrever legislações fiscais, fiscalizar a privatização de empresas estatais, administrar a fusão de empresas farmacêuticas e governar a infraestrutura digital de incontáveis organizações. Os contratos de consultoria abrangem cadeias e setores de abastecimento, através dos países e dos continentes, afetando todos os níveis da sociedade, embora a maior parte de sua receita seja proveniente de apenas alguns poucos países, incluindo o Reino Unido.
O caso recentemente noticiado não é a primeira vez que o governo britânico renegou compromissos anteriores de abandonar este hábito. Na verdade, David Cameron, que introduziu os hoje defuntos controles sobre os gastos com consultorias, também é culpado desta mesma prática. Em 2008, ele prometeu reverter o que descreveu como o “governo por consultoria de gestão” do New Labour; mas, assim que assumiu seu mandato, os contratos de consultoria do setor público proliferaram.
Embora os gastos dos departamentos de Whitehall tenham caído inicialmente, foi permitido que as empresas de consultoria fizessem ofertas para licitações por valores muito menores do que normalmente cobrariam, por vezes trabalhando de graça, em uma tentativa de manter as conexões com o governo. Conforme disse francamente o chefe do setor público da KPMG em 2011: “Não temos condições de fazer isso indefinidamente, mas podemos fazê-lo no curto prazo. Esperamos estar bem-posicionados quando o governo decidir que está disposto a pagar.”
Em última instância, a austeridade tem sido um bom negócio para o setor: conforme a capacidade administrativa do setor público encolhe, aflora a demanda por outsiders. Tomemos, como exemplo, o NHS (Serviço Nacional de Saúde). Nos anos seguintes às reformas Conservadoras-Liberais Democratas do NHS inglês, em 2012, emergiu a informação de que o serviço de saúde tinha gasto milhões de libras com serviços de consultoria. As reformas haviam definido que os médicos generalistas locais ficassem encarregados de comissionar os serviços de saúde – decidindo acerca das necessidades de suas comunidades.
Mas, conforme grupos como o Royal College of General Pratictioners haviam previsto, muitos simplesmente não tinham o tempo ou os recursos para fazer tudo aquilo que lhes era exigido. Então, para quem se voltaram? Para a turma de McKinsey, EY, Deloitte e ProcewaterhouseCoopers. No final da década, a escala e o escopo dos contratos de consultoria por todo o setor púbico britânico estavam para além de qualquer comparação com períodos anteriores. Apenas entre 2016 e 2019, os gastos com consultorias de gestão do NHS mais do que triplicaram.
A teoria de que esta forma de tocar as coisas aumenta a “eficiência” e a “inovação” é apenas isso: uma teoria. Ela está baseada na presunção de que a experiência e a capacidade podem ser compradas pré-prontas, em vez de desenvolvidas com o tempo dentro de uma organização. Na verdade, consultorias frequentemente não entregam o que prometem inicialmente. Uma investigação parlamentar sobre o programa inglês de teste e rastreio de casos de Covid-19, por exemplo, descobriu que “consultores compunham cerca de metade de sua equipe principal”, e concluiu que ele “não atingiu seu principal objetivo de ajudar a romper as cadeias de transmissão da Covid-19 e permitir que as pessoas retornassem a uma forma de vida mais normal.”
Uma pessoa que entrevistamos detalhou como o número enorme de consultores contratados para trabalhar com os testes e rastreios tornou-se um obstáculo operacional. Sua falta de conhecimento sobre os processos governamentais significou que as equipes gastaram muito tempo respondendo a questões básicas por e-mail, “tirando a atenção do verdadeiro trabalho.”
Enquanto isso, as evidências se acumulam. Um recente estudo acadêmico sobre o uso de consultorias de gestão em 120 fundos do NHS encontrou que, apesar de se ter “gasto cerca de 600 milhões de libras com consultorias em quatro anos, não há qualquer sinal de aumento geral de eficiência.” Na Austrália, o governo chegou a gastar cerca de seis milhões de dólares australianos em um contrato com a McKinsey para ajudar a desenvolver sua estratégia climática neutra, mas analistas depois descobriram que o modelo estava cheio de lacunas.
Todavia, a ilusão das capacidades panacéicas das consultorias enraizou-se no setor público, em parte devido a outro mito enraizado em nossas economias: o mito de que o setor público é ineficiente, inefetivo e não inovador. Onde for possível, ele deve sair do caminho e permitir que o setor privado faça o trabalho, colhendo as recompensas financeiras enquanto os riscos do fracasso continuam nas mãos do governo e dos cidadãos.
Se seus resultados são tão ruins, por que os governos continuam confiando nas consultorias? Trata-se de um ciclo parcialmente autorrealizável. A confiança em consultorias externas pode, com o passar do tempo, enfraquecer a capacidade interna – fazendo com que departamentos sejam infantilizados, conforme afirmou um ministro Conservador durante o primeiro ano da pandemia.
Quanto mais os governos confiam nas consultorias, mais perdem sua capacidade de fazer as coisas por conta própria, criando uma situação de dependência. Enquanto isso, as consultorias raramente assumem os riscos de seus conselhos falharem. A natureza dos contratos de consultoria pode dificultar o processo dos clientes apontarem culpados de maneira convincente quando algo dá errado, e clausulas de responsabilidade limitada também protegem legalmente as empresas.
Essa arriscada relação de risco-recompensa está no centro do modelo de negócios da indústria de consultorias. Em vez de gastar bilhões em consultorias externas que se beneficiam do esvaziamento de Whitehall, os governos devem investir internamente em criar organizações capazes de promover aprendizados e que estão capacitadas para correr riscos. É claro, os departamentos também devem trabalhar com outras pessoas e organizações que podem ajudá-los a cumprir seus mandatos democráticos – mas este conselho deve vir dos bastidores, sendo fornecido por pessoas com verdadeira expertise e experiência.
Chegou a hora de investir na inteligência coletiva do setor público e acabar com a fraude das consultorias de uma vez por todas.
*Mariana Mazzucato é professora de economia na Universidade de Sussex (EUA). Autora, entre outros livros, de O Estado empreendedor (Companhia das Letras).
*Rosie Collington é ecoomista. Autora, com Mariana Mazzucato, do livro The Big Com: How the Consulting Industry Weakens our Businesses, Infantilizes our Governments and Warps our Economies (Penguin Press).
Tradução: Daniel Pavan.
Publicado originalmente no site do jornal The Guardian.
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