Por ALEXANDRE JULIETE ROSA*
Subsídios históricos para a leitura do romance de Lima Barreto
A primeira vez que li Triste fim de Policarpo Quaresma achei que Lima Barreto fosse um militar-escritor, ou que pelo menos tivesse passado pela experiência da farda, tamanha a familiaridade demonstrada com o jargão, as manhas, as gírias e a linguagem dos milicos.
Até mesmo um certo elã na voz de comando dos militares, a prosódia dos instrutores de ordem unida, aparece na história quando Lima Barreto descreve um sargento reformado, “um tanto coxo, e admitido no batalhão com o posto de alferes”, responsável pela instrução dos voluntátios que ingressavam nos batalhões patrióticos criados para a defesa do governo de Floriano Peixoto. O alferes gritava e adestrava novos voluntários “com seus majestosos e demorados gritos: ombroôô… armas! mei-ããã volta… volver!, que subiam no céu e ecoavam longamente pelos muros da antiga estalagem”.[i]
O estudo da biografia escrita por Francisco de Assis Barbosa revela tal proximidade entre o escritor e a farda.[ii] Por obra de uma catástrofe doméstica – a doença psiquiátrica irreversível de seu pai – Lima Barreto teve que abandonar a faculdade e arranjar emprego. A primeira oportunidade que apareceu foi um concurso público para o cargo de amanuense na Secretaria de Guerra, um órgão burocrático do Exército. Ao final de oito dias de provas, acabou classificado em segundo lugar. Como existia apenas uma vaga, o cargo foi assumido pelo primeiro colocado. No entanto, em outubro de 1903, em virtude do falecimento de um funcionário da Secretaria, Lima Barreto assumiu o posto.
Lima Barreto trabalhou na burocracia do Exército por cerca de quinze anos, até solicitar aposentadoria por invalidez, antes dos quarenta anos de idade. É daí que vem sua proximidade com a farda. Lima Barreto conhecia o Exército ‘por dentro’ e a partir desse lugar privilegiado pôde desancar um pouco o mito que se criou em torno da instituição verde oliva.
É verdade que nunca se rebelou radicalmente contra a “Força” que o empregava. Havia um limite ético que o escritor respeitava como funcionário público. As queixas e observações mais ácidas deixava, nessa época, para compartilhar com seu Diário, como esse registro de 1904 escrito sob o impacto da revolta popular que hoje conhecemos por Revolta da Vacina: “Os oficiais do Exército do Brasil dividem com Deus a omnisciência e com o Papa a infalibilidade”. Datam dessa época muitos escritos importantes deixados pelo escritor no Diário, mostrando que desde os primeiros anos de sua vida na Secretaria de Guerra já desconfiava da capacidade dos “guardiões da pátria”.
1.
O lançamento de sua primeira obra [Recordações do escrivão Isaías Caminha, 1909] não obteve a repercussão que o escritor esperava, fato que o deixou um tanto frustrado. Na verdade, o que houve foi um silenciamento por parte da imprensa, da ‘grande imprensa’ e dos críticos literários [exceção feita a José Veríssimo], que viram nele mais um ataque desabusado às principais figuras da intelectualidade da época do que uma denúncia contra racismo e o preconceito racial.
Contava, ainda, como fator desfavorável para a receptividade do Isaías Caminha, a campanha presencial que agitava não só o Rio de Janeiro, então capital da República, mas o Brasil inteiro. Foi a primeira vez que aconteceu algo parecido com uma campanha presidencial naquela República das fraudes; de um lado, o candidato civilista Rui Barbosa, de outro, o marechal Hermes da Fonseca, guindado pelas forças políticas e econômicas um tanto descontentes com o predomínio das grandes oligarquias representadas pelos estados de São Paulo e Minas Gerais: “Houve então um choque, mais aparente do que real, entre as oligarquias. A candidatura do marechal Hermes da Fonseca, ministro da Guerra de Afonso Pena e sobrinho do fundador da República, dividiu essas oligarquias em duas frações: uma sob o manto de Pinheiro Machado, que agrupava a maioria delas e outra, apoiando a candidatura civil, a do Conselheiro Rui Barbosa”.[iii]
A coisa ficou tão feia que acabou matando o presidente da República, o mineiro Afonso Pena. Segundo os próprios médicos que dele cuidaram em seus últimos dias, o presidente veio a falecer em decorrência de um traumatismo moral: “O desenvolvimento da candidatura Hermes da Fonseca e a situação gerada pela questão sucessória abalam a saúde de Afonso Pena, já idoso, que fica acamado no começo de junho de 1909; falecendo no dia 14. O choque resultante de sua morte é grande; a Nação fica como que traumatizada; o hermismo e o próprio Hermes da Fonseca são responsabilizados pela tragédia. O “traumatismo moral”, termo usado pelos médicos e que Rui Barbosa repete nos seus discursos no Senado, aparece como fórmula de acusação contra aqueles que eram homens da sua confiança e que fugiram ao compromisso que tinham para com ele [Afonso Pena].[iv]
Hermes da Fonseca foi cobra criada no próprio governo Afonso Pena, período em que surgiu “um tema que iria levantar celeuma nacional: a reorganização do Exército.”[v] Escolhido para ocupar a pasta de Ministro da Guerra, o marechal realizou uma série de melhorias na Força, remodelação e construção de quartéis, compra de armamentos modernos, instituiu o sorteio militar, o antecessor no serviço militar obrigatório e viajou para a Alemanha a convite do próprio imperador Guilherme II, onde acompanhou as manobras do Exército Alemão; enfim, seu prestígio o transformou numa das figuras mais populares daquele governo. Com a morte de Afonso Pena, quem assumiu o governo federal foi o vice-presidente Nilo Peçanha, que endossou a candidatura do militar. Outro importante aliado do marechal era ninguém menos que o todo poderoso Pinheiro Machado, coronel do Exército e senador pelo Rio Grande do Sul.
Nesse clima tenso e, de certa forma, para usarmos uma expressão mais contemporânea, de “polarização”, Lima Barreto decidiu apoiar a candidatura Rui Barbosa, que contava apenas com o endosso, meio velado, da oligarquia de São Paulo. É bem conhecida a antipatia que o escritor nutria pelo senador baiano, o “águia de Haia”; mesmo assim, como lembra Francisco de Assis Barbosa, Lima Barreto “havia tomado posição contra o marechal Hermes da Fonseca, embora discretamente, dada a sua condição de funcionário público subalterno e, ainda mais, servindo no próprio ministério de onde saíra o nome lembrado pelos políticos sob o comando de Pinheiro Machado.”[vi]
E fez questão de hipotecar seu apoio ao candidato civilista enviando-lhe uma carta: “Queira, Senhor Conselheiro Rui Barbosa, aceitar os meus parabéns e o voto ardente que faço pela vitória do seu nome nas urnas. É em nome da liberdade, da cultura e da tolerância, que um “roto” como eu, se anima a declarar tão grandes sentimentos de suas ambições políticas, que consistem simplesmente em não desejar para o Brasil o regímen do Haiti, governado sempre por manipansos de farda, cujo culto exige sangue e violência de toda ordem. Isaías Caminha.”[vii]
Assina com o nome de seu personagem, cujo livro estava às vésperas de ser lançado. Os últimos meses de 1909 e o início do ano seguinte, até o dia das eleições, que ocorriam a 1º de março, foram de intenso enfrentamento entre as duas correntes: “O Rio de Janeiro é palco constante de pequenos comícios civilistas, seguidos imediatamente por outros de tendência hermista, ou vice-versa. Os choques constantes provocam conflitos graves.”[viii] Junto a seu amigo Antonio Noronha Santos, Lima Barreto participou intensamente e a seu modo daquela campanha presidencial. Lançaram um panfleto para distribuir nas ruas da cidade, O Papão, um “jornalzinho anti-hermista escrito quase inteiro pelo romancista.”[ix] Infelizmente não se conservou nenhum exemplar de O Papão, mas é possível imaginar o que Lima Barreto deve ter feito com a figura do marechal Hermes e toda aquela trica política que o levou à presidência da República.
Em setembro de 1909 ocorreu um episódio que abalou profundamente a opinião pública da capital e sinalizou o que viria a ser aquela campanha presidencial. Trata-se do assassinato de dois estudantes que participavam de uma manifestação jocosa contra o chefe da Brigada Policial: “Tudo aconteceu em consequência de um incidente entre estudantes e o comandante da Brigada Policial, o general Sousa Aguiar, a quem os rapazes tinham ido reclamar contra o procedimento de soldados, durante a realização de uma passeata comemorativa da primavera. O general não os quis atender. Em sinal de protesto, os estudantes decidiram promover o enterro simbólico do comandante da Brigada. Mas o “enterro” acabou mal.
Soldados à paisana, manejando cacetes e punhais, investiram contra os rapazes indefesos. A Brigada Policial veio em seguida, espaldeirando o povo, num assomo de selvageria. Tudo fora previamente combinado. Haveria entre os policiais desordeiros conhecidos nas rodas da malandragem. Capoeiras famosos, como Bexiga, Bacurau, Serrote, Moringa, Turquinho. Resultado de tudo isso: dois estudantes mortos e numerosos feridos. José de Araújo Guimarães, acadêmico de Medicina e que fazia as vezes de sacristão, tombou ali mesmo, com uma facada no ventre, nas escadarias da Escola Politécnica. Francisco Pedro Ribeiro Junqueira, chamava-se o segundo estudante morto na chacina. Todo o Rio se emocionou com o acontecimento, tal a brutalidade de que se revestiu a reação policial à manifestação estudantil.”[x]
O triste episódio ficou conhecido como “Primavera de Sangue” e se, a rigor, não teve relação direta com a campanha presidencial, “não há menor dúvida de que foi o choque do chamado espírito civil com o militarismo hermista a causa principal do motim, no qual dois estudantes perderam a vida.”[xi] Por ironia do destino, Lima Barreto fez parte do júri, em setembro de 1910, que levou ao banco dos réus o tenente João Aurélio Lins Wanderley, comandante do destacamento responsável pelos assassinatos. O julgamento foi um dos mais famosos que aconteceram durante a primeira República.[xii]
Hermes da Fonseca venceu aquelas eleições e tomou posse no dia 15 de novembro de 1910. Logo na semana seguinte estourou a revolta dos marinheiros, conhecida como a “Revolta da Chibata”, ou melhor seria a “Revolta contra a Chibata”, liderada por João Cândido – o Almirante Negro. A repressão contra o movimento foi uma das coisas mais horrendas que se tem notícia daquela República e está muito bem descrita no livro de Edmar Morel, A Revolta da chibata. Além da truculência dos primeiros meses de governo, duas outras características ressaltaram o início da presidência Hermes da Fonseca: “a ocupação de cargos políticos por jovens e a participação de membros de sua família na política; sua vitória trouxe à tona outro problema, o retorno de um elemento no cômputo político – o Exército”.[xiii]
Desde a derrocada do governo Floriano Peixoto, o Exército parecia ter retornado às suas competências de força de defesa nacional. O período dos chamados governos civis (Prudente de Morais, Campos Salles, Rodrigues Alves e Afonso Pena / Nilo Peçanha) representou o predomínio das grandes oligarquias e um recuo da tendência intervencionista das forças armadas na política, principalmente do Exército. Com Hermes da Fonseca, o poder chega nas mãos dos militares de maneira legal, isto é: através das eleições. O “braço forte” e a “mão amiga” se fez sentir de forma mais gritante nos estados, onde as oligarquias que apoiaram a candidatura militar precisaram e contaram com a força bélica federal para se estabelecerem no poder.
Foi o chamado período das salvações: “A campanha eleitoral de Hermes da Fonseca desperta, nas oposições e em certos setores oposicionistas independentes, uma certa esperança de luta contra as oligarquias. É verdade que Rui Barbosa também as condena. Mas o que caracteriza a todos, com raras exceções, é a ideia de que o combate aos Nery (Amazonas), Acioli (Ceará), Rosa e Silva (Pernambuco) etc., significa somente a queda das lideranças de cada Estado ou a problemática revisão constitucional. Não se fala nos problemas das estruturas oligárquicas – a base coronelística – nem no sistema eleitoral. O que se condena é o indivíduo e sua entourage, o predomínio da coerção, o assalto ao orçamento público etc.”[xiv]
Sabemos que Lima Barreto escreveu Policarpo Quaresma entre janeiro e março de 1911, alguns meses após o julgamento dos envolvidos na “Primavera de Sangue” e do massacre aos revoltosos da Marinha. Estes fatos são importantes, pois nos ajudam a compreender as duas historicidades que compõem o livro, pois trata-se, também, de um romance histórico, embora recue pouco no tempo, em torno de duas décadas.
Existe no romance um tempo da narrativa, dentro do qual se desenvolve a história do major Quaresma, que vai mais ou menos dos anos de 1892 a 1894, período da guerra civil nos estados do sul do país (Revolução Federalista) e da Revolta da Armada, no Rio de Janeiro. Esse tempo da narrativa se articula com o presente imediato em que Lima Barreto escreve a obra, permitindo ao escritor criticar indiretamente o Exército, não na figura de Hermes da Fonseca e do hermismo (seus contemporâneos), mas sim na representação de Floriano Peixoto e do florianismo. A crítica ao período da presidência Hermes da Fonseca vai aparecer em outro romance, Numa e a Ninfa, publicado em folhetins no jornal A Noite[xv]. Outro dado importante ocorrido em abril de 1910 foi a inauguração do monumento em homenagem a Floriano Peixoto, na Cinelândia, fato que reavivou a memória daquele que até então havia sido o presidente mais popular do país, senão o único com verdadeira popularidade.
Por fim, mas não menos importante, os conflitos que se sucederam com a Revolta da Armada tiveram um impacto não desprezível no início da juventude de Lima Barreto. Nessa época, a família do futuro escritor morava na Ilha do Governador, onde seu pai ocupava, desde 1891, o cargo almoxarife das Colônias de Alienados. Lima Barreto, após terminar os estudos primários, fora matriculado, com a ajuda financeira de seu padrinho, o visconde de Ouro Preto, no Liceu Popular Niteroiense, “um dos melhores do tempo, frequentado pela gente rica.
Os colegas de Afonso se chamavam Otávio Kelly, Américo Ferraz de Castro, Manuel Ribeiro de Almeida, Ricardo Greenhalgh Barreto, Caio Guimarães, os irmãos Sauerbronns Magalhães, Carlos Pereira Guimarães. Todos vão se destacar, mais tarde, na magistratura, no jornalismo, na carreira das armas, no magistério. O Liceu ficava no Largo da Memória, num casarão de esquina com a Rua Nova, dando para uma grande chácara e de fachada toda revestida de azulejos. Era dirigido por Mr. William Henry Cunditt,22 que ali vivia com a família. Todos tomavam parte no ensino. Cunditt era viúvo, tinha duas filhas, Annie e Gracie, ambas professoras.[xvi]
Por conta da enorme distância – o Liceu ficava em Niterói, enquanto a família residia na Ilha do Governador – Lima Barreto se tornou aluno interno e retornava somente aos finais de semana para casa. Quem fazia a travessia da Baia de Guanabara para levar e buscar o menino era um senhor chamado José da Costa: “Este José – relembra o romancista – ou antes, Zé da Costa, era nas Colônias [de Alienados] tudo: cocheiro, carpinteiro, catraieiro e foi sempre doce e bom para mim. Agora, com lágrimas nos olhos, lembro-me dele quando, aos sábados, ia buscar-me no colégio, naqueles dias ansiosos e satisfeitos da minha meninice, isenta ainda de qualquer visão amarga do mundo e do desespero do meu próprio destino”.[xvii]
Ao irromperem os combates da Revolta – setembro de 1893 – o estudante Afonso Henriques de Lima Barreto ficou impossibilitado, por cerca de um mês, de retornar para casa. Um conjunto de cartas que escreveu para seu pai nos dá uma dimensão de quão traumático foi para ele esse momento. Citemos alguns trechos: “Meu pai. A causa de eu não ter chegado lá [em casa] no dia 7 é aquela que o senhor supôs. Acabo de receber a sua carta. Eu estava guardando a minha saída para sábado, porém os revolucionários assim não quiseram. Miss Annie disse que eu não sairei sem que o senhor venha buscar-me. Os revolucionários têm atirado muitas balas para cá [Niterói], e algumas têm causado dano. O nosso colégio felizmente não tem sofrido nada, porém não está livre de sofrer”.[xviii]
Em 21 se setembro de 1893 escreve: “Meu pai. Infelizmente não posso lá ir. Corre boato que a ilha [do Governador] está armada pelos revoltosos. Mande-me algum dinheiro, recebi a sua carta de 19. Não sei em que dará isso, o fim há de ser feio. Aqui passamos como porcos, dormindo, comendo e brincando. O senhor deve saber que o “República” [navio de guerra] saiu para Santos com dois navios da Frigorifica [empresa de alimentos] e duas torpedeiras. Anteontem houve um combate, no qual morreu um soldado e feriram-se muitos. Esta revolta tem estado com um caráter desagradável. Não deixam entrar navios, nem sair, o que será de nós? Morremos de fome. Os revoltosos já são senhores da Armação. As balas continuam a chover para cá. Aqui, as famílias que moram no litoral abandonam as casas. Adeus. Lembranças a todos. Seu Filho”.[xix]
Outra carta, de 23 de setembro: “Meu pai. Infelizmente não posso lá ir, há obstáculos que se opõem a isto, também não houve portador. Eu gozo saúde felizmente e estou satisfeito, estaria mais satisfeito se estivesse esses dias em companhia de todos que me são caros. Não há novidade. Corre boato que a ilha está tomada, está notícia foi dada pelo Fluminense [jornal], creio ser falsa. Estou crendo que se isto durar muito tempo, fico exilado em Niterói”.
Por fim, a carta de 28 de setembro, antes de conseguir retornar para casa: “Meu pai. Recebi a sua carta de 25 do corrente. As aulas estão funcionando muito mal, isto é, com falta de frequência. No colégio, só há um professor. Correu boato que a Escola Naval estava lá na ilha. Miss Annie não quer me deixar ir. Eu já estou aqui há mais de um mês sem ir lá [para casa]. Se o senhor tiver alguém que venha a Niterói por necessidade, mande-me buscar. Não mande ninguém de propósito aqui, porque a viagem é cara. Diga à Dona Prisciliana [madrasta de Lima Barreto] que eu desejava vê-la aqui, para ver as balas passar e arrebentar, como eu as tenho visto daqui do colégio. Nessa brincadeira tem morrido muita gente. As granadas rebentam por todos os lados, de Niterói, até chegou arrebentar uma no morro que fica nos fundos do colégio. A nossa professora de piano não tem vindo. Lembranças a todos. Seu filho”.
Não bastasse a angústia de não poder retornar para casa, além das apreensões próprias de estar presenciando diariamente bombardeios muito próximos ao colégio, o jovem Lima recebia notícias de que o mesmo cenário estaria ocorrendo no lugar onde morava, ou seja, na Ilha do Governador. Conforme dissemos um pouco acima, essa época ficou muito marcada na vida do futuro romancista. Não foram poucos os textos – além do próprio Policarpo Quaresma – nos quais o já consagrado escritor rememora aquele segundo semestre de 1893.
Num deles, Lima Barreto narra as peripécias de sua volta para casa, em companhia do pai, que fora pessoalmente até Niterói buscá-lo: “É da memória dos contemporâneos que as comunicações por mar entre o Rio e aquela cidade [Niterói] ficaram logo interrompidas no começo do levante, de forma que, para ir buscar-me, meu pai teve que dar uma imensa volta, saltando de trem em trem, vendo rios e cidadinhas [sic] sem conta. Com meu pai, depois de uma fatigante viagem de vinte e quatro horas, desembarquei na Central [estação de trem Central do Brasil] às nove horas da noite, dormi na cidade; e, para chegar em casa, ainda tive que ir da estrada de ferro até a parada da Olaria, da Estrada de Ferro Leopoldina, nas proximidades da Penha, andar à pé cerca de um quilômetro, tomar um bote no chamado porto de Maria Angu, desembarcar na Ponta do Galeão, montar a cavalo e a cavalo percorrer cerca de três quilômetros, para chegar afinal na residência de minha família”.[xx]
O alívio por finalmente ter conseguido retornar para casa não durou muito. As notícias que recebia no Liceu, segundo as quais a Ilha do Governador se tornara um foco de combates, não eram de todo falsas. Ele mesmo presenciou, aos doze anos de idade, um desembarque de revoltosos na Ilha, as negociações que fizeram com seu pai, enquanto ficava “entre os marinheiros, conversando com um e com outro, desejoso até que um deles me ensinasse o manejo de uma carabina”. E continua no relato dramático daquele dia, que talvez nunca tenha esquecido: “Desceram, meu pai e o comandante. De repente, eu vejo ser tirado do curral o ‘Estrela’, um velho boi de carro, negro, com uma mancha branca na testa. O ‘Estrela’ fazia junta com o ‘Moreno’, um outro boi negro; e ambos, além de carreiros, lavravam também. Foi o boi conduzido para junto da estrebaria e vi que um marinheiro, de machado em punho, o enfrentava e aí desfechar-lhe um golpe na cabeça. […] Quando vi que o iam matar, não me despedi de ninguém. Corri para casa, sem olhar para trás.”[xxi]
Era a selvageria da guerra, os saques, abusos, intimidações. A ocupação da Ilha do Governador obrigou muitas famílias a abandonarem suas casas, dentre elas a família do futuro escritor, que voltou a rememorar aqueles dias numa crônica de 1920.[xxii] Há, portanto, um vínculo indissolúvel entre a Revolta da Armada e a memória afetiva de Lima Barreto, que somente muitos anos mais tarde pode elaborar intelectualmente aquele flagelo. Conforme relatou Francisco de Assis Barbosa, “o menino hipersensível começou a sentir as injustiças do mundo. Os acontecimentos de 1893 deram-lhe depois uma nova imagem da vida. Estariam os soldados tomados de loucura coletiva?”[xxiii]
2.
Na galeria de personagens do Triste fim de Policarpo Quaresma o que mais encontramos são militares. O próprio protagonista, embora não fosse militar, recebeu a patente de major por engano, aceitando-a de bom grado. Na juventude, sonhou em ser milico, mas acabou dispensado pela junta médica, talvez por conta da forte miopia. Impossibilitado de ingressar na fileira das armas, Quaresma se volta para o estudo da pátria e escolhe uma profissão que o possibilite conviver de perto com a farda: vai trabalhar na burocracia do Arsenal de Guerra. O seu patriotismo, nesse primeiro momento, liga-se de forma secundária ao Exército.
A tríade “Exército-Patriotismo-Nação” começa a invadir a história de maneira caricata, conduzida pela ironia do narrador e representada nas figuras do general Albernaz e do contra-almirante Caldas, verdadeiros generais de pijama, mais preocupados com suas vidas privadas do que com o bem público. É um núcleo cômico no interior de um livro trágico. Comicidade que desmascara o apelo patriótico utilizado para justificar a existência dessas caricaturas de militares, que vivem da memória de uma guerra que não participaram, a Guerra do Paraguai: “O general nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não possuísse. Durante toda a sua carreira militar, não viu uma única batalha, não tivera um comando, nada fizera que tivesse relação com a sua profissão e o seu curso de artilheiro. Fora sempre ajudante-de-ordens, assistente, encarregado disso ou daquilo, escriturário, almoxarife, e era secretário do Conselho Supremo Militar, quando se reformou em general. Os seus hábitos eram de um bom chefe de seção e a sua inteligência não era muito diferente dos seus hábitos. Nada entendia de guerras, de estratégia, de tática ou de história militar; a sua sabedoria a tal respeito estava reduzida às batalhas do Paraguai, para ele a maior e a mais extraordinária guerra de todos os tempos.O altissonante título de general, que lembrava cousas sobre-humanas dos Césares, dos Turennes e dos Gustavos Adolfos, ficava mal naquele homem plácido [Albernaz], medíocre, bonachão, cuja única preocupação era casar as cinco filhas e arranjar pistolões para fazer passar o filho nos exames do Colégio Militar. Contudo, não era conveniente que se duvidasse das suas aptidões guerreiras. Ele mesmo, percebendo o seu ar muito civil, de onde em onde, contava um episódio de guerra, uma anedota militar. ‘Foi em Lomas Valentinas’, dizia ele… Se alguém perguntava: ‘O general assistiu a batalha?’ Ele respondia logo: ‘Não pude. Adoeci e vim para o Brasil, nas vésperas. Mas soube pelo Camisão, pelo Venâncio, que a coisa esteve preta’”.[xxiv]
O patriotismo do major Quaresma, neste momento, é de outra estirpe e vem de um profundo sentimento de amor ao Brasil e, principalmente, de um conhecimento acumulado durante anos de leitura e estudo das coisas nacionais; fato materializado em sua biblioteca, que se constituía numa verdadeira brasiliana. Quaresma vinha motivado por aquele nacionalismo cultural elaborado pelo romantismo, através do qual, segundo a pesquisadora Giralda Seyferth, “a língua nacional era o elemento fundamental, juntamente com o folclore demarcador das ‘tradições’ populares”.[xxv]
Não podemos esquecer que no início século XX alguns círculos intelectuais, sobretudo do Rio de Janeiro, haviam sido tomados pelo ‘nacionalismo ufanista’, cuja principal obra de propaganda se encontrava no livro Por que me ufano do meu país, publicado justamente no ano de 1900, quando se comemorava o quarto centenário de nosso “descobrimento”. O autor do livro era o monarquista Afonso Celso de Assis Figueiredo Júnior, ou simplesmente Afonso Celso, também agraciado pelo título de “conde de Ouro Preto”; isso por que seu pai era o “visconde de Ouro Preto” – Afonso Celso de Assis Figueiredo – o padrinho de Lima Barreto.[xxvi]
O termo ufanismo passou a ser identificado à corrente de pensamento que propunha uma contrapartida às ideias fatalistas e de “inviabilidade congênita” do povo brasileiro e, em consequência, do próprio Brasil enquanto nação: “Apesar de tendências de exaltação do País se manifestarem desde o período colonial, a obra de Afonso Celso trazia com mais força um novo elemento: a valorização das três raças”.[xxvii] Marilena Chauí, numa outra chave de leitura, propõe uma compreensão crítica ao ufanismo e o relaciona à ideia de reação, típica de movimentos conservadores ou reacionários no interior das sociedades de classes.[xxviii]
O importante a ressaltar nesse momento é a adesão de Quaresma ao ufanismo. Por isso mesmo, seu primeiro movimento em direção às reformas que irá propor tem por objetivo a “emancipação da modinha”, junto a seu fiel escudeiro, o músico Ricardo Coração dos Outros. Chega a contrariar o bom senso da época, que condenava a viola como instrumento de capadócio, e começa a tomar aulas com o menestrel dos subúrbios.
A irmã do major, dona Adelaide, não via com bons olhos esse novo hábito do irmão; “A sua educação [de dona Adelaide], vendo semelhante instrumento entregue a escravos ou gente parecida, não podia admitir que ele preocupasse a atenção de pessoas de certa ordem.”[xxix] No entanto, as relações entre Quaresma e Ricardo Coração dos Outros acabaram por extrapolar e muito as aulas de violão, transformando-se numa grande e verdadeira amizade, cheia de cumplicidades, que muitos leitores e estudiosos compararam à parceria entre Dom Quixote e Sancho Pança.
A radicalidade do patriotismo de Quaresma só vai encontrar respaldo quando percebe que os fundamentos de nossa cultura haviam sido surrupiados pela colonização, que todo o nosso verdadeiro manancial cultural estava soterrado pelo que vinha de fora, a começar pela língua. Daí a tentativa de exercer suas prerrogativas de cidadão e enviar para a Câmara dos Deputados um projeto de lei propondo a adoção do tupi como língua oficial do país. O “requerimento” de Quaresma viralizou, para usarmos um termo mais próximo, mas não do jeito em que ele esperava. O major virou motivo de chacota, viu seu nome circular pela imprensa, vilipendiado, achincalhado, até ser recolhido ao hospício, tratado como louco.
A segunda tentativa de Quaresma em dar vasão a seu patriotismo ocorreu logo após a internação no hospício, quando adquiriu o sítio do “Sossego” e ali viu a possibilidade de, através do exemplo, mostrar o potencial agrícola de nossas terras. Logo se chocou com as dificuldades do empreendimento, a guerra silenciosa das saúvas e, pior do que essa ‘praga’, as intrigas políticas e interesses particulares que o enredaram, mesmo contra sua vontade, no joguinho do mandonismo local.
Com muito trabalho e resignação, o major e seus auxiliares, Anastácio e Felizardo, conseguem revivescer o sítio, arando e semeando a terra, colhendo os primeiros frutos. Estava provado que nessa terra “em se plantando tudo dá”, apesar das saúvas. Mas, os políticos, os interesses mesquinhos e a ‘mão invisível do mercado’ vão se infiltrando na vida do major ao ponto de tornar-se insuportável a continuidade de seu empreendimento: “Aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais caciques, se transformava em potro, em polé, em instrumento de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as. Pelos seus olhos [de Quarema] passaram num instante aquelas faces amareladas e chupadas que se encostavam nos portais das vendas preguiçosamente; viu também aquelas crianças maltrapilhas e sujas, d’olhos baixos, a esmolar disfarçadamente pelas estradas; viu aquelas terras abandonadas, improdutivas, entregues às ervas e insetos daninhos; viu ainda o desespero de Felizardo, homem bom, ativo e trabalhador, sem ânimo de plantar um grão de milho em casa e bebendo todo o dinheiro que lhe passava pelas mãos – este quadro passou-lhe pelos olhos com a rapidez e o brilho sinistro do relâmpago. A quarenta quilômetros do Rio, pagavam-se impostos para se mandar ao mercado umas batatas? Depois de Turgot, da Revolução, ainda havia alfândegas interiores? Como era possível fazer prosperar a agricultura, com tantas barreiras e impostos? Se ao monopólio dos atravessadores do Rio se juntavam as exações do Estado, como era possível tirar da terra a remuneração consoladora? E o quadro que já lhe passara pelos olhos, quando recebeu a intimação da municipalidade, voltou-lhe de novo, mais tétrico, mais sombrio, mais lúgubre; e anteviu a época em que aquela gente teria de comer sapos, cobras, animais mortos, como em França os camponeses, em tempos de grandes reis. Quaresma veio a recordar-se do seu tupi, do seu folklore, das modinhas, das suas tentativas agrícolas – tudo isso lhe pareceu insignificante, pueril, infantil. Era preciso trabalhos maiores, mais profundos; tornava-se necessário refazer a administração. Imaginava um governo forte, respeitado, inteligente, removendo todos esses óbices, esses entraves, Sully e Henrique IV, espalhando sábias leis agrárias, levantando o cultivador… Então sim! O celeiro surgiria e a pátria seria feliz”.
É nesse momento de reflexão e revolta que aparece o Felizardo, um dos ajudantes de Quaresma, segurando um jornal:
“– Seu patrão, amanhã, não venho trabaiá.
– Por certo; é dia feriado… A Independência.
– Não é por isso.
– Por que então?
– Há baruio na Corte e dizem que vão arrecrutá. Vou pro mato… Nada!
– Que barulho?
– Tá nas foias, sim sinhô.
Abriu o jornal e logo encontrou a notícia segundo a qual os navios da esquadra haviam se insurgido e intimado ao Presidente a renunciar. Lembrou-se das suas reflexões de instantes atrás; um governo forte, até à tirania… Medidas agrárias… Sully e Henrique IV…: “Os seus olhos brilhavam de esperança. Despediu o empregado. Foi ao interior da casa, nada disse à irmã, tomou o chapéu, e dirigiu-se à estação. Chegou ao telégrafo e escreveu: ‘Marechal Floriano, Rio. Peço energia. Sigo já. – Quaresma.’” [xxx]
Eis que seu patriotismo encontra definitivamente a razão de ser. Em primeiro lugar, defender Floriano Peixoto contra os inimigos da pátria. Mas quem eram eles? Quem era Floriano? Nesse ponto do livro, não somente, mas principalmente, o posicionamento político do narrador se faz sentir de forma mais intensa. Conforme observou o crítico literário Silviano Santiago: “a leitura que o narrador faz do próprio texto no interior do romance e que é dada de presente para qualquer um dos seus possíveis leitores.”[xxxi] Na caracterização de Floriano Peixoto e do florianismo é sobretudo a voz de Lima Barreto que se faz sentir num primeiro plano. Narrador e autor se confundem na apreciação crítica a um dos momentos mais delicados de nossa primeira experiência republicana.
A operação de desmistificação da tríade “Exército-Patriotismo-Nação” continua corroendo o ufanismo do herói. Enquanto o major Quaresma enxergava no “marechal de Ferro” a possibilidade redentora para a nação, o narrador/autor vai desvelando, passo a passo, a série de enganos pelos quais o bom patriota se deixara arrastar: “Quaresma pôde então ver melhor a fisionomia do homem que ia feixar em suas mãos, durante quase um ano, tão fortes poderes, poderes de Imperador Romano, pairando sobre tudo, limitando tudo, sem encontrar obstáculo algum aos seus caprichos, às suas fraquezas e vontades, nem nas leis, nem nos costumes, nem na piedade universal e humana. Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande mosca; os traços flácidos e grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso – parecia não ter nervos. Não quis o major ver em tais sinais nada que lhe denotasse o caráter, a inteligência e o temperamento. Essas coisas não vogam, disse ele de si para si. O seu entusiasmo por aquele ídolo político era forte, sincero e desinteressado. Tinha-o na conta de enérgico, de fino e supervidente, tenaz e conhecedor das necessidades do país, manhoso talvez um pouco, uma espécie de Luís XI forrado de um Bismarck”.[xxxii]
A leitura que Lima Barreto fez de Floriano Peixoto e do movimento que o sutentou no poder é ancorada no ponto de vista anti-militar, anti-positivista, anti-estadunidense e na crítica à ideia de pátria/nação, tão cara a nosso autor. Sobre essa última é possível observar a influência do historiador francês Ernest Renan, não poracaso dono da epígrafe que abre o Triste fim de Policarpo Quaresma. Renan era constante colaborador da Revue de deux monds, “revista de cabeceira” de Lima Barreto, que faleceu com um exemplar dela ao colo. Embora bastante conservador, arauto do colonialismo e da supremacia da ‘raça europeia’ sobre os demais povos do mundo, isso nas décadas de 1860 e 70, Renan parece ter mudado sua visão sobre tais questões, ou as colocado um pouco de lado, ao proferir sua famosa conferência “Qu’est-ce qu’une nation?”, em março de 1882, na Sorbonne, posteriormente publicada, em 1887, na coletênea Discours et conférences.
Renan sustentou, em sua conferência, que o esquecimento e o erro histórico são os fatores decisivos para a criação e manutenção do sentimento de nacionalidade; e por essa razão, “o progresso dos estudos representa um perígo para a ideia de nação, pois a investigação histórica traz de volta à luz os atos de violência que ocorrem à origem de todas as formações políticas, mesmo daquelas cujas consequências foram a mais benéficas. A unidade se faz sempre por meios brutais”.[xxxiii]
Na contramão dos principais argumentos arrolados pelos paladinos do nacionalismo europeu, Renan descarta qualquer tipo de consderação étnico-racial como fundamento para a ideia de nação. E assim também o faz em relação a determinações de ordem linguística, religiosa e até mesmo geográficas. “A consideração étnica não foi de qualquer importância na constituição das naçõs modernas. A França é celta, ibérica, germânica. A Alemanha é germânica, celta e eslava. A Itália é o país mais etnicamente embaralhado: gauleses, etruscos, pelasgos e gregos, sem falar de outros elementos, cruzam-se ali numa mistura indecifrável. As ilhas britânicas, em seu conjunto, oferecem uma mistura de sangue celta e germânico em proportções especialmente difíceis de definir. A verdade é que não há raças puras e que basear a política sobre análise étnica é baseá-la sobre uma quimera. Os países nobres – a Inglaterra, a França, a Itália – são aqueles em que o sangue é mais misturado”.[xxxiv]
Esse “detalhe” havia escapado ao major Quaresma quando estudara a Pátria. O “progresso dos seus estudos” não o fez enxergar, num primeiro momento, a série de erros históricos, de crimes, assassinatos e esquecimentos que vão ficando pelo caminho da construção da nação. Foi no momento da grande crise que ele, o patriota Quaresma, percebeu aquilo que os livros já haviam lhe ensinado: “Reviu a história; viu as mutilações, os acréscimos em todos os países históricos e perguntou de si para si: como um homem que vivesse quatro séculos, sendo francês, inglês, italiano, alemão, podia sentir a Pátria? Uma hora, para o francês, o Franco-Condado era terra dos seus avós, outra não era; num dado momento, a Alsácia não era, depois era e afinal não vinha a ser. Nós mesmos não tivemos a Cisplatina e não a perdemos; e, porventura, sentimos que haja lá manes dos nossos avós e por isso sofremos qualquer mágoa? Certamente era uma noção sem consistência racional e precisava ser revista. Mas, como é que ele tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que não viu nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se deixou enganar por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto toda a sua existência? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira!”[xxxv]
“A pátria que quisera ter era um mito”. Em uma frase simples, lapidar, Lima Barreto toca numa questão que iria mobilizar os principais críticos do nacionalismo na segunda metade do século XX. A pátria, na qualidade de mito, não é outra coisa senão a boa e velha ideologia, ou seja, “uma narrativa utilizada como solução para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade.”[xxxvi] No caso de nosso personagem, o mito também ganha foros na acepção psicanalítica, “como um impulso à repetição de algo imaginário, que cria um bloqueio à percepção da realidade e impede de lidar com ela.”[xxxvii] Qualquer semelhança com nossa realidade atual não é mera coincidência…
O escritor enreda seu personagem nessa dupla articulação da ideia de pátria-mito, ou seja, na ideologia (Quaresma embarca na ideia de patriotismo como solução das tensões sociais do período) e na individualidade (sua compulsão em estudar as coisas nacionais, que oblitera a avaliação crítica da realidade). Se o narrador/autor já sabia dessas coisas de antemão, o Personagem só aos poucos vai se dando conta da situação, até cair no buraco cujo alçapão ele próprio ajudara a abrir. A pátria que quisera ter era um mito, talvez o mito de Saturno devorando seus filhos…
*Alexandre Juliete Rosa é mestre em literatura pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
Notas
[i] Lima Barreto. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Klick Editora / Coleção Vestibular do Estadão, 1999, p. 169. Todas as citações que aparecerem da obra se referem a essa edição.
[ii] Francisco de Assis Barbosa. A vida de Lima Barreto. Belo Horizonte: Authêntica, 2017.
[iii] João Cruz Costa. Pequena história da República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 75.
[iv] Edgard Carone. A República Velha II – evolução política. Rio de Janeiro / São Paulo: DIFEL, 1977, p. 255.
[v] Idem, p. 241.
[vi] Francisco de Assis Barbosa. A vida de Lima Barreto, p. 214.
[vii] Lima Barreto. Correspondência – Tomo I. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 194.
[viii] Edgard Carone. A República Velha II, p. 260.
[ix] Francisco de Assis Barbosa. A vida de Lima Barreto, p. 222.
[x] Idem, pp. 219-20.
[xi] Idem, p. 218.
[xii] Francisco de Assis Barbosa descreve detalhadamente a participação de Lima Barreto no julgamento, no capítulo “Primavera de Sangue” da biografia.
[xiii] Edgard Carone. A República Velha II, p. 270 e 278.
[xiv] Edgard Carone. A República Velha II, p. 278.
[xv] Segundo Nelson Werneck Sodré, “… a 18 de julho de 1911, Irineu Marinho [o patriarca das organizações Globo] fazia circular A Noite, com o reduzido capital de 100 contos de réis. Jornal moderno, bem diagramado, feito por profissionais competentes; em menos de um ano, estava em condições de comprar novas máquinas, linotipos, montando oficina de gravura bem aparelhada, fazendo a distribuição em automóveis. Era um jornal eminentemente político e de oposição à grandes oligarquias. Quando Hermes da Fonseca deixou o poder, em novembro de 1914, a reação não se fez esperar; Irineu Marinho, em 1915, publicava, em folhetins, o romance satírico de Lima Barreto, Numa e a Ninfa, que apareceram entre 15 de março e 26 de julho”. (História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: MAUAD, 1999, p. 330-31).
[xvi] Francisco de Assis Barbosa. A vida de Lima Barreto, p. 67.
[xvii] Lima Barreto. “O Estrela”. In: Feiras e mafuás. Obras Completas de Lima Barreto, vol. X. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 64. No volume I de Toda Crônica, organizado por Beatriz Resende e Rachel Valença, o texto aparece como publicado na edição de 23 – 05 – 1916 do Almanaque d’A Noite.
[xviii] Carta datada de 14 de setembro de 1893. Lima Barreto. Correspondência ativa e passiva, vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 28.
[xix] Idem, p. 28-9.
[xx] Lima Barreto. “O Estrela”. In: Feiras e mafuás, p. 61-2.
[xxi] Idem, p. 65-6.
[xxii] Trata-se da crônica “Homem ou boi de canga?”, publicada no volume Bagatelas, organizado ainda em vida por Lima Barreto, mas publicado após sua morte, pela editora de Romances Populares, em 1923. Ver também em Toda Crônica, vol. II, pp. 247 – 250.
[xxiii] Francisco de Assis Barbosa. A vida de Lima Barreto, p. 83.
[xxiv] Triste fim de Policarpo Quaresma, p. 29-30.
[xxv] Giralda Seyferth. “Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização”. In: Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos (orgs.). Raça, Ciência e Cultura. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1996, p. 42.
[xxvi] Afonso Celso, o visconde de Ouro Preto [1836 – 1912], foi um dos político mais importantes dos últimos anos do Império. Chefiava o Gabinete dos Ministros quando ocorreu a queda da Monarquia em 15 de novembro de 1889. Lima Barreto nunca se relacionou com o padrinho, apesar deste ter lhe custeado os estudos no Liceu Popular Niteroiense e de ter ajudado seu pai, Afonso Henriques de Lima Barreto, em muitos momentos difíceis da vida. Nos capítulos “Origens” e “O Padrinho” de A vida de Lima Barreto, Francisco de Assis Barbosa detalha a amizade entre o pai de Lima Barreto e Afonso Celso, bem como as “não relações” entre padrinho e afilhado. Já a relação entre Lima Barreto e Afonso Celso Filho sempre foi bastante cordial e de respeitabilidade mútua. Isso é o que mostra a correspondência trocada entre os dois, bem como os elogiosos artigos escritos por Afonso Celso Junior a respeito de alguns livros publicados por Lima Barreto, em especial o Policarpo Quaresma e o Gonzaga de Sá. (Ver a respeito em: Lima Barreto. Correspondência – Tomo I. São Paulo: Brasiliense, 1956, pp. 261 – 265).
[xxvii] Nísia Trindade e Gilberto Hochman. “Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da primeira república”. IN: Raça, Ciência e Cultura. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1996, p. 27
[xxviii] Marilena Chauí. “Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária”. In: Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Escritos de Marilena Chauí – Volume 2. São Paulo / Belo Horizonte: Fundação Perseu Abramo – Autêntica, 2013, especialmente as páginas 183 a 192.
[xxix] Triste fim de Policarpo Quaresma, p. 63.
[xxx] Os trechos citados encontram-se entre as páginas 108 a 110.
[xxxi] Silviano Santiago. Uma ferroada no peito do pé. Revista Iberoamericana. Vol. 50. Nº 126, 1984, p. 34.
[xxxii] Triste fim de Policarpo Quaresma, p. 124-5.
[xxxiii] Ernest Renan. Qu’est-ce qu’une nation? In: Plural – Revista de Ciências Sociais. São Paulo. USP. Vol. 4. Primeiro Semestre de 1997, p. 161. Tradução de Samuel Titan Jr.
[xxxiv] Idem, p. 166.
[xxxv] Triste fim de Policarpo Quaresma, p. 167.
[xxxvi] Marilena Chauí. “Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária”. In: Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Escritos de Marilena Chauí – Volume 2. São Paulo / Belo Horizonte: Fundação Perseu Abramo – Autêntica, 2013, p. 151.
[xxxvii] Idem.
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