Jesus, alguém que desconcerta

Imagem: Rodolfo Clix
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Por FRANCISCO DE OLIVEIRA BARROS JÚNIOR*

Cristãos e comunistas convergem na proposta de uma sociedade igualitária e equitativa

O calendário franciscano registra: 24 de março é o dia de Santo Oscar Romero. Na leitura da sua pagela do dia 23, no referido mês, encontro o seguinte texto, escrito pelo Frei Alberto Eckel Junior: “Oscar Romero nasceu em Ciudad Barrios, El Salvador, em 15 de agosto de 1917, numa família pobre. Ingressou no seminário ainda jovem e, aos 20 anos, foi a Roma, onde concluiu a Teologia. Ordenado padre, voltou a El Salvador, trabalhando por muitos anos como pároco. Grande pastor, foi conhecendo as misérias de seu povo e, em meio à ditadura militar em seu país, foi nomeado arcebispo. O assassinato de dois padres exigiu que se posicionasse contra a miséria e opressão que seu povo vivia, denunciando muitos erros. Incomodando os poderes políticos e militares, foi ameaçado muitas vezes e, no dia 24 de março de 1980, foi martirizado enquanto celebrava a Eucaristia em San Salvador. Em outubro de 2018, Oscar Romero foi canonizado”.

As franciscanas palavras, antes registradas, revelam uma das múltiplas imagens construídas em torno de Jesus Cristo e do que seja ser cristão. Em meio aos Cristos cúmplices dos poderes dominantes, midiatizados por grupos religiosos conservadores, rebentam vozes dissonantes, afinadas com um Cristo libertador, representantes de uma religião não opiácea, defensora de uma teologia da libertação. A de Frei Tito, que ancorou em Jesus Cristo “a razão fundamental” da sua vida e lendo Marx, encontrou as “bases teóricas” para a sua “utopia social”. Utopistas irmanados com os sujeitos das guerrilhas, mortos por defenderem justiça social e liberdade. Nas lutas contra os opressores, experimentam sacrificiais batismos de sangue. Romeros, Marighellas e Titos são modelares (BETTO, 2021).

A teologia da libertação, nas vozes dos seus entusiastas, gera ensaios de cristologias críticas para o nosso tempo (BOFF, 1988). Teólogos clássicos, com os pés no chão, divulgadores de Jesus Cristo libertador, interrogam: “o que quis afinal Jesus Cristo?” Contestar, reformar, revolucionar e libertar são verbos conjugados por quem, assumindo a “dimensão política do evangelho”, promove um “encontro com Deus na história” e afirma um compromisso com “o suspiro dos oprimidos”. Compromissos políticos de um modelo eclesiológico que “faz uso da sociologia como instrumento de sua política pastoral” (ALVES, 1984). Profetismo de anúncio e denúncia “para uma transformação da realidade latino-americana”, com destaque para os nossos brasis (GUTIÉRREZ, 1986).

Nas referências teóricas, a teologia abre o seu campo para uma “investigação sociológica da religião”. Uma reflexão teológica, crítica, representada por uma “comunidade cristã” que, associando “práxis da libertação e fé”, projeta uma “nova sociedade”. Projeção ligada ao objetivo de “desmantelar a ideologia” pela via de “uma prática política nascida dos explorados e dominados”, os diretores do desmanche ideológico, críticos da exploração, desigualdade, dominação e exclusão capitalistas (CHAUÍ, 2012, p.143).

Nas suas incidências político-ideológicas, as religiões apresentam um campo de relações objetivas de transação e concorrência. “Serviço religioso contra poder” no âmbito de uma burocracia religiosa na qual os seus sacerdotes respondem às demandas das classes dominantes e dominadas (BOURDIEU, 2005). Conflitos classistas nos quais um “Deus da resistência negra” acusa um catolicismo de “desviar para o terreno imaginário uma luta que deveria ser travada no plano concreto do sistema econômico, social e político” (HURBON, 1987, p.28).

“Jesus, alguém que desconcerta”, uma força carismática popular, condenado por blasfêmia, um tipo de “guerrilheiro”, contestador, reformador, revolucionário, libertador. Imagens de um Cristo divulgadas pelos teólogos da libertação. E eles indagam sobre “o sentido da morte de Jesus” (BOFF, 1988). No processo aberto contra ele, a fala dos poderosos traduz o incômodo da sua profética presença: “ele é perigoso!” Periculosidade de um líder eclesiástico engajado na “luta de classes” do contexto histórico em que viveu.

A teologia encontra âncora teórica no trabalho sociológico que associa “igreja, ideologia e classes sociais” (FOLLMANN, 1985). Em nome de Deus, funcionários especializados em empresas de salvação das almas, atuam como ideólogos ocultadores da exploração capitalista. Religião em um contexto de conflitos no qual ela assume controvertidas posições: uma força para a estabilidade social ou uma potencial agência transformadora. Religiosos desmascaradores ou justificadores dos interesses dos dominadores. Rezar para manter ou mudar. Teologia da prosperidade no mercado dos templos sagrados. Pregar um amém quietista diante das desigualdades sociais ou conduzir os fiéis para uma reação, um levante diante dos apartheids sociais.

No musical Jesus Cristo superstar, em suas versões roqueiras, baseadas na obra de Tim Rice & Andrew Lloyd Webber, os donos dos poderes seculares e eclesiásticos, em alianças, veem a periculosidade do nazareno, o aguardado Messias. A sua popularidade incomodava os representantes das classes dominantes. Provocava os “sepulcros caiados” do farisaísmo. Na cabeça dos “movimentos religiosos de protesto social”, Jesus é processado e encara os seus perseguidores. “Quem é você?” “Você acha que é o que eles dizem?” Cristo e o mundo político de ontem e hoje. Fé, utopia e ação política comprometida com as classes dominadas, no grito dos excluídos.

Uma espiritualidade libertadora, fraterna e pastoralmente comprometida com os pobres criminalizados, vistos como perigosos. Uma opção preferencial e solidária por eles, em documentos eclesiásticos latino-americanos. Em um campo conflituoso, a religião a serviço da “dominação de classe” enfrenta as lideranças questionadoras das propostas defendidas pelas bancadas evangélicas, organicamente sintonizadas com o coro dos privilegiados na ordem social opressiva, injusta, escandalosamente desigual e negadora dos princípios e valores cristãos.

Cristo executado, torturado. Termos usados por um discurso católico para narrar a paixão de um Cristo rejeitado por anciãos, sumos sacerdotes e doutores da lei. Representantes dos poderes religiosos e seculares, protagonistas do processo de condenação, execução e tortura de um Jesus comprometido com a “construção de um mundo mais justo e fraterno”. Justiça e fraternidade afrontadoras dos esquemas políticos imperiais da conjuntura histórica do seu tempo.

Quais os partidos políticos que disputavam o poder naquele contexto imperial? Pensando em termos de classes sociais, a que interesses incomodava a pregação cristã? Discursos cristãos abertos para o diálogo com outros referenciais. “Comunismo e evangelho” dialogam entre si? São convergentes? Na companhia das pagelas franciscanas, leio o seguinte fragmento, extraído de um calendário franciscano. As letras do prof. Me. Carlos Eduardo Xavier são desconstrutoras e promovem encontros convergentes.

Evocando “as pessoas de boa vontade”, emite uma fala incômoda: “Dom Helder Camara disse certa vez que quando alimentava os pobres era chamado de santo, mas quando indagava pelas causas da pobreza era chamado de comunista. Carlos Eduardo indaga: “Por quê?” Com fundamentação bíblica, argumenta: “Está na essência do Evangelho de Jesus o amor ao próximo e a prática da justiça. Já o comunismo propõe a igualdade essencial entre as pessoas e a equidade social”. Cristãos e comunistas convergem na proposta de uma sociedade igualitária e equitativa. “Nesse aspecto há uma convergência entre os ideais de Jesus e do próprio comunismo”. Entre convergências e divergências, abrem diálogo rumo à construção de um reino terrestre de justiça e fraternidade.

Não se trata de uma defesa da religião. O que está em jogo é um campo religioso atravessado por conflitos. A âncora teórica fornecida por Pierre Bourdieu revela um conjunto de relações objetivas de transação e concorrência entre os diversos agentes religiosos. Destaco os sacerdotes, os pastores e os leigos, representantes das demandas das diversas classes sociais. Interesses legitimadores, compensatórios e salvacionistas. Usando os termos no plural, pronunciar catolicismos, pentecostalismos e umbandas, é estar conectado com uma visão complexa sobre as relações religiosas.

Em todas estas, são encontrados os performadores de práticas conservadoras, aliadas aos grupos de tendências fascistas, necropolíticas e as figuras propagadoras de uma práxis religiosa encarnada em um Deus “…que fincou pé na periferia geográfica e existencial de sua época”, segundo as palavras do Frei José Raimundo de Souza. Uma divindade potencialmente aliada aos movimentos sociais progressistas. Com isto, quero dizer que considero equivocada a postura de quem não enxerga o outro lado das ações religiosas, ou seja, as protagonizadas pelos membros das pastorais da terra, dos negros, dos indígenas e outros engajamentos eclesiais. Mesmo que sejam apontados os seus limites, importa reconhecer que nem todos os crentes e fiéis religiosos são sujeitos fechados, preconceituosos e com os quais estão inviabilizadas as conversas e acordos.

Convém elencar uma sequência de nomes ligados às diferentes matrizes religiosas que sacrificaram as suas próprias vidas na defesa de relevantes causas. Começo a minha lista com Dom Oscar Romero, Martin Luther King. Deixo ao leitor o exercício de continuá-la. O franciscano José Raimundo convida ao não “resistir à proposta libertadora de Jesus”. Atualizando a mensagem pascal do cristianismo, ele segue com o seu carisma congregacional ao continuar apostando em uma resistência nos dias atuais.

Frei José escreve para quem vive hoje e afirma que “…Jesus continua a ser encontrado na mesma periferia, identificando-se com os pobres e excluídos, em favor de quem o discípulo é convocado a se empenhar para promover a vida. Isso é ressureição!”. Uma convocação cristã clamando no deserto de um mundo necrosado pelos investimentos da morte vista no espetáculo cotidiano.

*Francisco de Oliveira Barros Júnior é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí.

Referências


ALVES, Rubem. O suspiro dos oprimidos. São Paulo: Edições Paulinas, 1984.

BETTO, Frei. Batismo de sangue: guerrilha e morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro: Rocco, 2021.

BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador: ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo. Petrópolis: Vozes, 1988.

BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2005.

CHAUÍ, Marilena. O Que é Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2012.

FOLLMANN, José Ivo. Igreja, Ideologia e Classes Sociais. Petrópolis: Vozes, 1985.

HURBON, Laënnec. O Deus da Resistência Negra: O vodu haitiano. São Paulo: Paulinas, 1987.

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