Por Flavio Aguiar*
O dano cultural, social, econômico, espiritual, moral e agora sanitário que a farsa política deste governo vem causando ao país e sua imagem não tem paralelo na história brasileira.
O manifesto pela renúncia de Bolsonaro, assinado por três ex-candidatos à presidência e mais alguns políticos de proa na cena nacional, introduziu dois elementos novos no conturbado cenário brasileiro, atacado por duas pandemias: a do coronavírus e a da boçalidade medíocre que ora diz que nos governa a partir do Palácio do Planalto e arredores.
O primeiro elemento novo foi o das assinaturas: Boulos, Ciro e Haddad (de propósito, escolhi a ordem alfabética…), e mais Carlos Lupi (PDT), Carlos Siqueira (PSB), Edmilson Costa (PCB), Flavio Dino (PCdoB), Gleisi Hoffmann (PT), Juliano Medeiros (PSOL), Luciana Santos (PCdoB), Manuela D’Ávila (PCdoB), Roberto Requião (MDB), Sonia Guajajara (PSOL) e Tarso Genro (PT). A coleção de signatários desenha uma necessária, ampla e multipartidária frente das esquerdas pedindo a saída de Bolsonaro.
O segundo elemento novo foi o da amplitude da pauta proposta, acoplada ao pedido de renúncia do atual presidente, acusado de cometer crimes e fraudes, mentir e de incentivar o caos. A coleção de elementos postos na mesa política pode não ter novidades; o elemento novo está em reuni-los numa agenda unificada e multipartidária, significando, na prática, também a suspensão do caótico programa neoliberal que o governo pretende implantar através deste prestidigitador de segunda mão chamado Paulo Guedes.
São elementos desta pauta: evitar o contágio pelo vírus, proteger a renda do trabalho, o emprego e as empresas; acoplar a luta em defesa da saúde com a de evitar a destruição da economia; implantar a redução do contato social de acordo com critérios científicos; aumentar a oferta de leitos hospitalares em UTIs; propiciar uma renda básica permanente; proteger indígenas, quilombolas e sem teto; suspender o pagamento de tarifas públicas as para os mais pobres durante a crise; proibição de demissões neste momento, propiciando também auxílio do Estado para pagamento de salários e proteção de médios, pequenos e microempresários; tributação de grandes fortunas e outras medidas na área financeira para prover de recursos a área da saúde. O manifesto conclui fazendo um chamado amplo à responsabilidade por parte do Congresso Nacional, de governadores e prefeitos, do Ministério Público e do Poder Judiciário.
Há um terceiro elemento que paira como guarda-chuva sobre estas iniciativas, que é o de pôr fim à farsa trágica em que se empenha o governo de Bolsonaro, e que o empenha na destruição espiritual da sociedade brasileira.
Farsa trágica: é comum se aplicar este termo ao Teatro do Absurdo, aquele de peças como as de Ionesco, Beckett, Arrabal, Jean Genet, além de outros, em que a vida perdeu o sentido e a ética seu significado. O termo “farsa” nos induz a pensar em “falsidade”, uma representação que falseia e encobre o real. E a palavra “trágica” nos recorda que por detrás ou na ponta desta “falsidade” jaz um elemento destruidor das relações humanas, como o que está ameaçando acontecer no Brasil, nos reduzindo à anomia e à anonímia dos espíritos curvados, destituídos de espinha dorsal que os ponha de pé.
Ampliando-se o sentido da expressão percebe-se que a “farsa” frequentemente também é um elemento da tragédia, no sentido clássico da palavra. É comum a protagonistas ou coadjuvantes de grandes tragédias recorrerem à farsa para justificarem e implantarem seus propósitos e suas ações. Um dos farsantes mais acabados do teatro é Iago, o conspirador que identifica em Otelo (de Shakespeare) toda a origem de seus males, isto é, da inveja que o corrói e corrompe por dentro, montando uma gigantesca farsa em torno de um suposto adultério para destruí-lo. Menos farsante é Macbeth, da tragédia homônima, também de Shakespeare; mas também ele monta uma farsa a fim de disfarçar o crime que comete: o assassinato do rei Duncan para usurpar seu trono. Termina vítima das promessas farsescas que as três bruxas do pântano lhe fazem…
O comportamento político de Jair Bolsonaro tem tudo de uma farsa trágica. Este comportamento vai se apoiando em sucessivas fraudes; a maior delas foi desvelada quando ele, através de argumentos destorcidos, que incluíram a edição enganosa de um depoimento do diretor da Organização Mundial da Saúde, quis justificar a proposta de substituir o “isolamento horizontal” pelo “vertical” em nome de “manter a economia em funcionamento” para supostamente “proteger empregos e salários”. A farsa fica evidente se levarmos em conta que entre as primeiras propostas de seu governo estava a suspensão do pagamento de salários durante meses, com aplauso por parte da escória do lumpen-empresariado brasileiro. Sem falar nas fake-news que o ajudaram a se eleger, na maior tragédia eleitoral do Brasil em toda a sua história. E outras ações fraudulentas se seguiram num rosário de sandices que parece não ter fim.
A farsa política – impondo uma sucessão de fraudes – tem sido a marca de seu governo. O que é a política externa brasileira, liderada por Ernesto Araújo, senão uma farsa trágica que está aniquilando uma tradição secular de profissionalismo e respeito internacional do Itamaraty? O que é a presença de Ricardo Salles no Meio Ambiente senão uma farsa trágica que ameaça a Amazônia e todo o planeta? O que dizer das iniciativas demolidoras de Weintraub no Ministério da Educação?
Poderia citar muito mais; cheguemos logo ao cume desta cordilheira de farsas: o comportamento irresponsável do próprio presidente diante do coronavírus, estimulando o descaso perante evidências científicas sobre o melhor comportamento face à pandemia, pondo em risco a vida de inúmeros cidadãos e cidadãs. Diante de tal álbum de farsas, o comportamento de Damares Alves parece ser uma ilha de virtude, pois parece que ela acredita de verdade nas sandices que diz como aquela em torno das cores azul e rosa para as vestes de meninos e meninas.
Um aspecto mais daninho desta farsa trágica é a indução coletiva à fraude, estimulando, em todas as frentes, em todas as classes e segmentos da sociedade, aquilo que existe de pior na escória social que mobiliza: o desprezo, disfarçado de “patriotismo”, pela vida alheia e pela solidariedade, espelhado mais recentemente nas patéticas carreatas em favor da suspensão do isolamento como defesa contra pandemia.
A farsa presidencial atira os que a seguem num delírio negativista que ameaça a saúde do país em todas as frentes: cultural, social, política e econômica. Miremo-nos no exemplo alemão: depois da Segunda Guerra, o desmonte espiritual das farsas montadas pelo nazismo levou décadas para começar e se consolidar, sendo que hoje em dia alguns elementos daquelas farsas, travestidos de outros motivos (defesa da Europa cristã, proteção contra o terrorismo e agora contra a pandemia, etc.), ameaçam continuamente voltar.
As direitas brasileiras sempre se esmeraram na montagem de farsas. A República dita Velha foi, em grande parte, uma farsa, pois nada tinha de republicana, a começar pelas eleições fraudulentas. A campanha contra Getúlio nos anos 1950 foi outra farsa, pretextando, como a Lava Jato (outra farsa), o combate contra a corrupção. Idem, o Golpe de 1º. de abril de 1964, que se travestiu em “Revolução de 31 de Março”, a “Redentora e Irreversível”. Jânio e Collor corresponderam a outras farsas – sempre com apoio da mídia conservadora. O impeachment de Dilma foi mais uma. A eleição e o governo de Jair Messias não passam do cume desta ladainha de farsas.
O manifesto lançado pedindo a renúncia de Jair tem o condão de emparedar o presidente dentro das quatro linhas de sua farsa, cobrando dele um gesto verdadeiro, antidelírio individual e coletivo, que é o de reconhecer o dano e despedir-se (despir-se) do farsesco, bem como do delírio que estimula. Terá efeito prático? Do ponto de vista individual, tenho minhas dúvidas. Raramente os farsantes abdicam de suas farsas. Faz-se necessário uma força externa que desfaça o enredamento com que ele engana os outros, como no personagem Tartufo (que se tornou sinônimo de impostor) de Molière. Pode ser, no entanto, que o manifesto ajude a despertar forças capazes de desfazer a tragédia em que estamos nos afogando.
Uma última consideração. Há hesitações no ar quanto à renúncia ou o impeachment de Bolsonaro. Teme-se, por exemplo, que Mourão seja um Bolsonaro com racionalidade, sem milícias nem a trinca de filhos por detrás ou pela frente. Pode ser. Mas o dano cultural, social, econômico, espiritual, moral e agora sanitário que a farsa política deste governo vem causando ao país e sua imagem não tem paralelo na história brasileira, nem na nefasta Ditadura de 64, e olha que esta foi – como eu disse – nefasta, nefanda e abominável.
Se continuarmos a nos afogar em sua banheira, milhões de brasileiros e brasileiras levarão décadas para recuperar o bom senso de ter uma espinha dorsal que não se dobre diante do inominável horror dos delírios consentidos. Levamos 21 anos para começar a descosturar o manto de horrores aberto em 1964. É possível que desta vez levemos mais, se ele não for desfeito agora. Para desfazer uma costura, é necessário começar por um fio. Este fio se chama Jair Messias Bolsonaro.
*Flávio Aguiar é jornalista, escritor e professor aposentado de literatura brasileira na USP.