Revolução cultural-educativa

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Por LUIZ ROBERTO ALVES*

Educar sempre será “conduzir para fora” das imposições e das “novidades”, por respeito à cultura, ao espírito humano e à biologia do ser. Portanto, revolucionar é preciso

A educação das gerações não prescindirá do amor, na asserção de Hannah Arendt, muito menos do querer-bem pensado e vivido em Paulo Freire. Ou da atitude libertadora do conceito judaico-aramaico-cristão ahavah. Ao contrário do que irrompe na pandemia para a escola no/do futuro, o centro do sistema educacional não poderá ser o professor, mas os sujeitos do ato educativo, o um e o outro, uma e outra, isto é, a comunidade que se cria e se educa, verdadeira instituinte dos novos currículos, sejam presenciais, sejam pela via auxiliar remota. Em educação as pessoas dão-se e doam-se na construção do seu bem-comum. A fala humana será central na construção das ciências e emoções e os atos da educação terão como seu fulcro a constituição da autonomia e da liberdade. Fora disso, há ilações e ilusões, comuns a tempos de peste e de novos empreendimentos comerciais mal chamados de inovações.

Como é possível que homens e mulheres inteligentes apresentem nos inúmeros debates sob tempos pandêmicos tamanho desatino, ou seja, transformar Base Nacional Curricular Comum em documento da equidade brasileira? Será que a pandemia também está a prover atrasos mentais?

A rigor, a educação  não se realiza melhor porque o tempo passa, porque a peste grassa ou porque há incremento tecnológico. Bons  orçamentos sem avaliação rigorosa também nada valem.

Por que, então, sob a ótica do MEC, não será possível ver nada de novo em educação brasileira até 2022? Ora, porque se escolhe um ministro sob o bafo sujo dos grupos da bala, da bíblia (que não é o Tanach, nem o Logos, mas sim os interesses escusos) e do boi, símbolo do poder brutalmente conservador, anti-ecológico e expansionista. O que ocorrer de novo sob este governo será rebeldia e oxalá fruamos movimentos similares a 1968 ou mesmo 1932, quando a educação começou a escapar das mãos da elite bárbara do Brasil.

Ela sempre exigiu e exigirá arrojo, solidariedade, fé no conhecimento em direção à autonomia pessoal e coletiva. Assim pensaram os Educadores da Escola Nova, que em 1932 lançaram no Brasil um manifesto. Um de seus fortes momentos foi este:

“A escola que tem sido um apparelho formal e rijido, sem differenciação regional, inteiramente desintegrado em relação ao meio social, passará a ser um organismo vivo, com uma estrutura social, organizada á maneira de uma comunidade palpitante pelas soluções de seus problemas. Mas se a escola deve ser uma communidade em miniatura e se em toda communidade as atividades manuaes, motoras e constructoras constituem as funções predominantes da vida, é natural que ella inicie os alunos nessas atividades, pondo-os em contato com o ambiente e com a vida ativa que os rodeia, para que elles possam desta forma possuil-a, aprecial-a e sentil-a de acôrdo com as aptidões e possibilidades”.

Em 1932 pensou-se uma escola e um fazer educacional que ainda não temos. O lugar da prática sistemática da cultura e da formação das pessoas deveria ser comunidade de ensino e conhecimento da vida e do mundo, sem repressão ao sentimento, à apreciação e ao exercício das possibilidades e das aptidões, o que não se confunde com competências e habilidades previstas e impostas. Essa comunidade curricular, pedagógica e didática se projetaria para o bairro e para a cidade. Educação se tornaria cidadania. Trata-se da città e da civiltà.  

Neste momento da vida brasileira acompanha-se um comportamento que é tudo menos educativo, o qual se  move em Brasília para a escolha do tipo mais conservador, mais militarizado e mais adestrado por gurus de boca suja a fim de assumir o MEC. O ato de, ao mesmo tempo, ler o Manifesto e pensar na luta pela educação que vai de Anísio Teixeira a Florestan Fernandes e deste aos educadores e educadoras que foram humilhados e ofendidos na Ditadura Militar, provoca vergonha e asco, pois aquela história de sacrifício e inteligência dá lugar às trocas recentes de pústulas palacianas.

Horrores à parte, há uma experiência integrada de cultura, educação e recreação que poucas pessoas conhecem neste país, pois o ensino de ciências humanas e artes vai sendo sufocado e isso não é de hoje. Deu-se entre 1935 e 1938, na prefeitura de São Paulo, cujo prefeito era Fábio da Silva Prado. Ele confiou a diretoria de cultura e recreação ao líder do Modernismo brasileiro Mário de Andrade.

Quando o crítico e professor Antonio Candido analisou a experiência, não deixou por menos: ali, no São Paulo de fato empreendedor, fez-se uma “revolução na rotina” da gestão pública, por meio de instituições avançadas, com leitura clara das necessidades da gente paulistana, por meio de pesquisa de opinião junto às famílias e pelo estímulo ao voluntariado adolescente. Do mesmo modo, a pequena metrópole viu a seleção e contratação de especialistas em todas as áreas da cultura e da recreação para atuarem ao lado das escolas do ensino infantil e dos ginásios.

Imagine-se de um mês para o outro a cidade começar a receber novas bibliotecas para públicos distintos, gravações de música e de toda a ampla matéria folclórica do Brasil, ampliação de espaços recreativos com efetiva prática de inclusão, a partir dos bairros para o centro.  Pense-se na disposição de toda a tecnologia cinematográfica e musical do final dos anos de 1930 a serviço dos grupos em formação social,  ou no trabalho conjunto e matricial de gente preparada das áreas de educação, recreação, medicina, enfermaria, gastronomia, música, cinema, teatro, todos e todas a serviço de um processo  político entendido como bem-comum indisputável, como bem depois propôs Chomsky. Tratou-se de um  avanço compartilhado da educação, da saúde e da fruição cultural, especialmente dedicado aos pequenos e à adolescência.

Durou pouco, pois esse serviço revolucionário foi esmagado pelo regime autoritário de Getúlio Vargas e pelo futricar partidário.  No entanto, a experiência de três anos trouxe a São Paulo estudiosos, gestores públicos e intelectuais europeus para ver e sentir o que acontecia na cidade até há pouco provinciana e dirigida pelas elites de gostos duvidosos, suas operetas e seu parasitismo junto ao poder público, que pagava a conta do seu egoísmo cultural, incapaz de dividir seus bens para além da cosa nostra. Com Mário de Andrade na direção do Departamento, ao contrário, um longo amadurecimento de homens e mulheres brilhantes das artes, da cultura e da educação projetaram São Paulo para o mundo não pelo seu brilho particular, mas porque o serviço público foi dirigido aos operários, aos analfabetos, às crianças da periferia paulistana, ao mundo migrante e imigrante. O Estádio do Pacaembu e o Teatro Municipal regurgitaram de gente, com especial apreço às juventudes e a ações planejadas, realizadas com participação e avaliadas por equipes dirigidas pelo perfeccionista genial,  Mário de Andrade.  A ação foi tão forte que secretarias de cultura e educação pelo país afora assumiram o modo de organização daquela diretoria de cultura e recreação e vários projetos contemporâneos ainda são estimulados pelo modo-de-fazer mariodeandradiano, a despeito da perda  do espírito revolucionário.

Bem, não é possível ressuscitar Mário, Anísio, Durmeval, Florestan, Cecília, Rubens Borba, Oneyda, Levi- Strauss, Luís Saia e toda a equipe revolucionária. Pior ainda seria imaginar que seja possível substituí-los por representantes da ordem unida, filhotes dos gurus de boca suja, sabujos e parasitas do poder. Ou pelos moderados de plantão, que justificam tudo e pontificam sua sabedoria tecnológica, conquanto neguem mudanças indispensáveis a partir do horror que se vive no Brasil e do desamor à educação.  Ocorre também que a maior inteligência ativa e transformadora, hoje, está na pesquisa, nos laboratórios, em certos espaços das universidades, em algumas ações empreendedoras, nas artes e na literatura.

Depois da ditadura, que sugou sangue e energia de milhões e de milhares os jogou nas calçadas e túmulos, a redemocratização nos anos de 1980 encontrou o ultraliberalismo de consenso bafejado pelos novos sistemas e armadilhas cibernéticas. E isso não tem nada a ver com o uso agradável do celular e outras ferramentas no dia a dia do processo didático.  A educação tem ficado entre as apostilas das últimas modas dos centros econômicos e a forte marca da pedagogia freireana, que também se foi tornando obscura pela leitura deficitária e pelo terrível jogo de oposições irreconciliáveis, no qual, para lembrar Barthes, o diálogo chega a zero grau de elaboração linguística.

O governo que hoje faz plantão em Brasília assume e quebra a cara diariamente pelo estrabismo e pela mediocridade. Chega a conseguir a proeza de não fazer nada em educação, nada em direitos humanos, nada em questões ambientais e ecológicas e nada em saúde. Um governo nonada, só para brincar com uma palavra do Grande Sertão: Veredas.

No entanto, o país tem mais de 2 milhões de educadores e educadoras, gente indispensável no devir comunitário da educação. Não seria, pois, impossível criar serviços públicos de bem-comum integrados e avaliados em continuidade e rigor.

Mas há exigências para isso. Importa, e muito, negar até o último tostão de contingenciamento; sugerir ao presidente e seus filhos que desistam de se meter no que não conhecem e jamais souberam o que é; no caso, educação. Ato contínuo, cobrar uma relação empática e solidária entre universidade/institutos e educação básica, não exclusivamente por pesquisas e extensão circunstanciais, mas efetivo comprometimento por alguns séculos, continuamente; voltar a 1996 e estimular uma leitura nacional da LDB atualizada (Lei 9394), das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a educação da juventude, criadas e revistas na sequência da LDB até por volta de 2014 e chegar aos documentos que tratam da formação dos educadores e educadoras; cortar gastos militares e usura bancária, bem como voltar atrás no campo armamentista, com aplicação integral desses recursos no saneamento básico público e na reorganização do território para a fixação de escolas bonitas, alegres e com currículo pleno construído comunitariamente; feita a leitura das Diretrizes Curriculares, avançar para pensar a nova BNCC, Base Nacional Curricular Comum (2017-2018) à luz daquelas, que são mais abrangentes e fazem leitura educacional para o país enorme e distinto, com suas nações indígenas, comunidades quilombolas, grupos nômades sob trabalho sazonal, pescadores, seringueiros e outras formas de trabalho que envolvem milhões de crianças e adolescentes.

Deve-se considerar, ainda, que há  uma ilusão no ar pandêmico: aulas sob esquema remoto e EAD. Tais atividades não poderão, jamais, ser mais que auxiliares na educação básica, especialmente pela leitura científica do crescimento humano e suas necessidades psicossociais. A diretoria de Mário de Andrade foi revolucionária no uso das tecnologias da época, mas a serviço da constituição comunitária, do encontro do eu e o do outro. Se necessário, voltar a Piaget.  Ademais, a fala humana não mediatizada sempre será indispensável, não importando a etapa ou nível da educação. Qualquer resposta à pandemia terá de ir muito além dela. Ou, na memória de Drummond, ficaremos à espera da próxima, como flores amarelas e medrosas.

Outra ilusão no ar: fundações, campanhas e movimentos educacionais ficam sempre a esperar que um novo, uma nova dirigente do MEC crie força-tarefa, chame apoios institucionais e respeite a proposta constitucional do regime de trabalho solidário entre as instâncias de governo. Não há erro nisso; ao contrário, é bom. Mas sem uma linha de princípio e um processo de estratégias que considerem a história recente, pós 1996, das Diretrizes à Conae e desta ao Plano Nacional de Educação (2014), isto é,  dos documentos que orientam a educação brasileira, qualquer força-tarefa será uma ação inócua, estímulo para muitos palpites e pouca integração a favor de uma verdadeira política pública para o bem-comum; e o bem-comum mais destacado que temos hoje, depois de um ano e meio de nada, é a educação e suas áreas afins em ação conjunta. O risco maior é o de se empanturrar de tecnologia e BNCC e terminar com o pincel na mão, porém sem escada para pintar mais alto.

Os quase 45 milhões de educandos e educandas (considere-se que há alguns milhões fora das escolas, processo crescente na pandemia) não podem demonstrar toda a sua ira a respeito do nada em educação do governo de plantão. A ira maior, construtiva, tem de ser construída e vivida pelos que educaram e educam. A despeito de essa ira não mover uma palha no governo que se “organiza” entre a autocracia e a plutocracia, da genuflexão diante de Trump aos poderes da “bíblia”, do boi e da bala, quem educa e quem quer educar tem a obrigação de manter a mais rigorosa avaliação, por todas as redes, desse governo do nada. E avançar para construir e fruir a rebeldia. Educar sempre será “conduzir para fora” das imposições e das “novidades”, por respeito à cultura, ao espírito humano e à biologia do ser. Portanto, revolucionar é preciso.

*Luiz Roberto Alves é professor sênior da ECA-USP.

 

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