Por VALERIO ARCARY*
Não se deve participar, nem apoiar, incondicionalmente, o governo. Mas não se pode estar, incondicionalmente, contra o governo, diante da ameaça neofascista
“Faz-se caminho ao andar. O caminho mais curto nem sempre é o mais direito” (Provérbio popular português).
Existem três avaliações distintas da situação política brasileira, três avaliações do governo Lula e três táticas. A tática é a escolha de um caminho. O contexto de aferição da relação social de forças estabelece os marcos das diferenças na análise de conjuntura.
A visão majoritária na esquerda moderada é que a situação é quase contrarrevolucionária. A percepção oposta nas alas mais radicais é que é quase pré-revolucionária. Este artigo defende uma terceira opinião: estamos em uma situação ainda reacionária, mas a inversão da conjuntura, em função da vitória de Lula e da mudança na relação política de forças, introduziu elementos transitórios.
Nem tão ruim, nem tão favorável. Não se deve reduzir o cálculo da relação social de forças a avaliação das turbulências dos conflitos entre o governo e o Congresso, menos ainda ao resultado das votações na Câmara dos Deputados. Mas não se pode ignorá-las, considerando as dificuldades da mobilização popular de massas.
Quem tem razão? A discussão só é possível se chegarmos a um acordo sobre a métrica. A métrica remete a uma “régua” de medida das posições respectivas das classes em luta. O que oferece sustentação a este método é a análise dos fatores objetivos e subjetivos. Eles estão sempre interrelacionados o que exige uma “ourivesaria” na sintonia fina. O material são, essencialmente, os desdobramentos dos fatos políticos, como, por exemplo, a repercussão do cerco aos bolsonaristas pelos Tribunais Superiores, ou a intransigência do Banco Central, os embates no terreno da luta de classes, como movimentos, ocupações e greves; as informações disponíveis através das pesquisas de opinião; e aquelas que recolhemos pela intervenção da militância de esquerda.
Se a situação é contrarrevolucionária, ocorreu uma derrota histórica e o que prevalece é uma unidade burguesa sólida, uma maioria nos setores médios que apoia as exigências dos capitalistas, e uma divisão de uma classe trabalhadora ainda desmoralizada. Esta avaliação é um exagero. Não há unidade burguesa. Uma fração capitalista entrou no governo, a massa da burguesia, em especial, o núcleo do agronegócio permanece bolsonarista e na oposição, e há setores com um pé no governo e outro fora. As camadas médias estão, também, divididas, e o estado de ânimo majoritário na classe trabalhadora é de alívio e expectativa. Lula tem uma aprovação elevada, acima de 50%.
Se a situação é pré-revolucionária o que prevalece é uma irremediável fratura da classe dominante, um deslocamento da maioria dos setores médios à esquerda, e uma disposição de luta na classe trabalhadora. Esta visão é também, impressionista. Não houve uma “virada”. As tensões entre os capitalistas são grandes, porque há reservas bolsonaristas importantes, mas aconteceu uma recomposição, e não há perigo “real e imediato” de um novo 8 de janeiro golpista.
Predomina uma posição majoritária fazendo exigências ao governo Lula, pressionando por um alinhamento incondicional com os EUA na guerra da Ucrânia, e pelo respeito à autonomia do Banco Central. As camadas médias não mantêm o mesmo grau de alinhamento com os neofascistas, mas têm desconfiança do governo Lula. E estamos, nas classes populares, ainda longe de um ânimo combativo.
Se, entretanto, temos razão na avaliação de que estamos em uma situação reacionária, mas em uma conjuntura diferente, depois da vitória de Lula, então há que reconhecer que a unidade burguesa que favoreceu Jair Bolsonaro se rompeu, que uma parcela dos setores médios se distanciou dos neofascistas e, mesmo sem confiança, votou em Lula, e que o estado de espirito entre os trabalhadores é de um grande alívio, ainda que a disposição de luta permaneça pequena. Há elementos transitórios, como vimos na mobilização em resposta ao ensaio golpista de 8 de janeiro, ou em greves de categorias como os professores em algumas cidades e metroviários, mas não há uma onda de ascenso. O 1º de maio foi muito fraco.
A avaliação de uma situação contrarrevolucionária busca legitimar a defesa de uma aliança que incorpora Geraldo Alckmin e Gilberto Kassab, Simone Tebet e a União Brasil, e uma negociação permanente com Arthur Lira e Rodrigo Pacheco no Congresso Nacional para neutralizar uma maioria parlamentar hostil. O argumento é que se a situação é contrarrevolucionária não seria possível governar “a quente”. Não seria possível buscar apoio em mobilização social nas ruas, porque as massas não responderiam, mesmo se Lula assumisse o papel da convocação.
A estratégia de governar a “frio”, pela via da concertação, obedece à visão de que não há outra governabilidade possível. Nessa perspectiva o programa do governo Lula-3 não pode ir além do denominador comum da Frente Ampla. Denominador é a posição mais conservadora. O governo é liderado pela esquerda, mas não pode ser um governo de esquerda. Esta perspectiva explica o arcabouço fiscal. Um novo regime fiscal com um Teto de Gastos com “descontos” seria o menos ruim possível. O desfecho é uma tática de apoio incondicional ao governo de Frente Ampla.
Há um “grão de verdade” nesta avaliação: ainda é difícil mobilizar as massas. Mas a tese é falsa e a tática errada. A relação de forças nunca poderá melhorar se não tentarmos empolgar os trabalhadores e a juventude na defesa de um programa que corresponda a seus interesses. Terceirizar para os sindicatos e movimentos esta responsabilidade, como se o papel do governo devesse ser de “neutralidade” não é sério. É absurdo.
Aqueles que fazem a avaliação de que estamos em uma situação pré-revolucionária buscam legitimar a ideia que a melhor tática seria uma localização imediata como oposição de esquerda. Em consequência, por exemplo, desconsideram a centralidade da luta pela prisão de Jair Bolsonaro, e agigantam a denúncia de que o governo não suspendeu privatizações, priorizam a denúncia de Fernando Haddad e secundarizam a exigência da demissão de Roberto Campos Neto do Banco Central.
Argumentam que a vitória eleitoral de Lula desmoralizou a extrema direita, que o bolsonarismo não é mais o inimigo principal, que é preciso construir um ponto de apoio para as lutas de massas que virão. A tese que sustenta esta estratégia é que a ausência de uma oposição de esquerda forte e com visibilidade na denúncia dos limites do governo Lula facilitaria a recuperação da influência dos neofascistas.
Existem, portanto, três avaliações distintas sobre o governo Lula-III. A primeira prevalece no PT e PCdoB e defende que é um governo de Frente Ampla, mas teria compromisso com um projeto democrático-popular. O governo Lula articula uma instável aliança das forças políticas que se uniram nas eleições contra Jair Bolsonaro e está em disputa. Evidentemente, tudo que existe na vida tem contradições, e está em disputa.
A questão é saber exatamente o que se quer dizer com a fórmula “em disputa”, porque ela encobre uma incógnita. O que está, realmente, em disputa? Nesta visão o que está em disputa é se o governo irá ou não além dos limites do neoliberalismo. Essa aposta é improvável. O arcabouço fiscal é uma sinalização de respeito à busca de superavit primário, preservando a flutuação do câmbio e um plano de metas para a inflação, o tripé do FMI. Todas as reformas progressivas anunciadas ou por anunciar estão ameaçadas.
A segunda, oposta pelo vértice, é que é um governo burguês normal, porque, ainda que liderado por um dirigente de origem popular, e articulado pelo PT, abraça um projeto de estabilização do capitalismo periférico. Nada está em disputa. Nesta ótica não haveria diferenças de qualidade entre o governo Lula e a herança dos governos de Michel Temer, e mesmo de Jair Bolsonaro, ainda que a estratégia da extrema direita fosse bonapartista.
Todos seriam governo burgueses com um programa de gestão do capitalismo com uma estratégia neoliberal de elevar os patamares de superexploração dos trabalhadores. Mas não se pode lutar ao mesmo tempo contra tudo e todos. A tática nem Lula nem Bolsonaro, ou nem/nem, ignora o maior perigo que nos cerca. Seria como se o relógio da história tivesse girado para trás, e estaríamos em uma situação semelhante à de 2003. Só que não. Estamos em 2023, viemos de uma situação reacionária de longos sete anos, e Jair Bolsonaro não é um cadáver insepulto.
A terceira posição reconhece que o governo Lula-III é de colaboração de classes com a burguesia, mas é um governo burguês anormal, porque não são as lideranças capitalistas que mandam.O governo Lula cultiva aliança com setores que são uma representação orgânica de frações da classe dominante. Há burgueses no governo, mas é um governo de gestão anormal dos negócios, porque tem Lula na liderança e o maior partido é o PT. Essa contradição tem enorme, “mesopotâmica”, importância. A imensa maioria da base social da esquerda acredita e deposita esperança no governo. Essa expectativa é decisiva para a definição de uma tática justa.
Porque a questão estratégica central que permanece indefinida é que o bolsonarismo ainda não foi derrotado. Jair Bolsonaro está na defensiva, mas a extrema direita permanece muito forte. O que está em disputa é saber se o governo Lula será ou não um ponto de apoio para mobilizações que derrotem neofascistas. Impulsionar a Frente Única de Esquerda contra os bolsonaristas continua central. Nesse contexto, não se deve participar, nem apoiar, incondicionalmente, o governo. Mas não se pode estar, incondicionalmente, contra o governo, diante da ameaça neofascista. O caminho da mobilização social é a chave para desbloquear a situação.
*Valerio Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo).
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