Por VALERIO ARCARY*
As mobilizações de junho de 2013 foram, essencialmente, caóticas. Foram, politicamente, ambíguas e confusas
“Os camponeses estão votando com os pés” (Vladimir Ilitch Ulianov, aliás, Lênin, quando informado que os camponeses estavam desertando em massa do Exército czarista na Primeira Guerra Mundial).
Junho de 2013 ainda nos atormenta e angustia. A esquerda manteve a hegemonia nas ruas no Brasil, durante três décadas e meia, desde o final dos anos 1970. Perdeu esta supremacia nas jornadas de junho. Mas, isso não autoriza a conclusão de que as forças de direita, liberais ou extremistas, lideraram. Junho esteve em disputa e ninguém dirigiu. Junho foi acéfalo.
Uma análise das razões desta explosão em 2013, e não antes nem depois, deve considerar muitos fatores. O país ainda estava distante da recessão que se abriu em 2015, e o desemprego era baixo. A desigualdade pessoal e até funcional da renda estava em queda lenta, mas em queda. Essas e outras variáveis levaram muitos na esquerda a desconsiderar a centralidade das determinações econômico-sociais, e a procurar uma explicação “cultural” ou até mesmo “ideológica” para as Jornadas de Junho. Não é um bom caminho, porque é impossível explicar a dimensão gigantesca da espontaneidade da adesão sem reconhecer que crescimento econômico não é o bastante. As limitadas e lentas reformas progressivas de dez anos de governos liderados pelo PT não foram suficientes para silenciar o protesto.
Mas há um grão de verdade nesta hipótese. O Brasil de 2013 já era muito diferente do Brasil de 1983, na véspera das Diretas-Já, mas não só em função da disseminação de celulares com internet. Junho escancarou uma transição geracional. A juventude mais escolarizada queria mais.
O aumento das tarifas de ônibus foi somente a centelha que acendeu o incêndio. Uma pesquisa do Ibope sobre as razões da participação nas manifestações revela que a grande maioria estava nas ruas em defesa de serviços públicos e gratuitos, e contra a corrupção.[i] Assistimos a uma desconcertante explosão de protesto e euforia. Não devemos nos preocupar demais com o que vimos de inconsistente, irreverente e até um pouco crédulo.
As mobilizações de junho de 2013 foram, essencialmente, caóticas. Foram, politicamente, ambíguas e confusas. Mas tentar desqualificar o seu significado com a caracterização de que seriam, essencialmente, a expressão do mal-estar das camadas médias urbanas mais escolarizadas e hostis ao PT, ou seja, reacionárias, não é razoável.
Foi na sequência de Junho que o movimento LGBT saiu ás ruas com impulso antifascista contra Marcos Feliciano. Foi depois de Junho que ocorreu uma onda de greves que colocou em movimento professores e até bombeiros. Junho deu potência aos movimentos ambientalistas e indígenas. A Mídia Ninja conquistou audiência de massas denunciando a violência da repressão das Polícias Militares. Junho abriu o caminho para a formação de uma nova geração de ativistas de esquerda.
O sentido dominante das Jornadas de Junho, apesar de muito tumultuoso, foi complexo. A esmagadora maioria dos cartazes se restringia aos limites de reivindicações democráticas, mas eram progressivos: “se o povo acordar, eles não dormem! Não adianta atirar, as ideias são à prova de balas! Não é por centavos, é por direitos! Põe a tarifa na conta da Fifa! Verás que um filho teu não foge à luta! Se seu filho adoecer, leve-o ao estádio! Ô fardado, você também é explorado!”
Deslumbrar-se com a força das marchas, e desconhecer suas limitações seria miopia. Enxergar com ceticismo a dimensão destas três semanas de lutas, ou seja, perceber somente suas inconsistências, também. Há três respostas na esquerda brasileira para esta questão crucial. Qual delas se confirmou no “laboratório” da história? A saída do “labirinto” da situação reacionária em que ainda nos encontramos, depois de seis anos e meio desde o impeachment de Dilma Rousseff, quatro de governo Bolsonaro, depende, em alguma medida, de uma resposta correta.
A primeira resposta é aquela que vê nas mobilizações abertas por junho de 2013 o ovo da serpente. Junho seria a semente da saída às ruas da extrema direita, e o momento da inversão desfavorável da relação social de forças. Atribui às jornadas de junho um sentido reacionário porque seria o início da ofensiva da “onda conservadora”, e sua direção não podia ser disputada pela esquerda.
Junho de 2013 seria o “esquenta” das mobilizações dos “amarelinhos” em março/abril de 2015 e 2016, alguns milhões ecoando “nossa bandeira jamais será vermelha”. Mas teoria da conspiração não é bom marxismo. A operação Lava Jato começou quase um ano depois. Junho não foi uma revolução “colorida” manipulada pelo imperialismo norte-americano. Não foi uma operação política liderada pela rede Globo e a mídia burguesa para tentar derrubar o governo Dilma. Mas é verdade que a Globo fez um giro de 180 graus no dia 20 de junho, suspendeu até as novelas e, despudoramente, convocou às ruas.
A segunda hipótese é oposta pela raiz, porque identifica uma dinâmica progressiva quase ininterrupta no processo aberto em junho de 2013. Atribui a Junho o sentido de uma revolta contra o regime político que saiu da transição negociada pelo alto, no Colégio eleitoral, ao final da ditadura, e que assumiu a forma da Nova República, ou presidencialismo de coalizão. Diminui a natureza contraditória do impulso social, oculta a disputa que aconteceu nas ruas com as forças de direita, e desconhece que ocorreu uma derrota.
A terceira é a mais complexa, porque reconhece o caráter progressivo de algumas reivindicações, mas constata, também, a presença de um núcleo reacionário com audiência de massas, e observa que a acefalia política deixou a dinâmica das mobilizações à deriva. Tudo estava em disputa.
Se em Junho apareceu o que existe de mais generoso e solidário no coração da juventude, surgiu, também, o que existe de ingênuo, confuso e até reacionário, como em todos os processos históricos, quando as mobilizações são ainda policlassistas, e o peso social da classe trabalhadora não se impôs. As massas populares não foram protagonistas principais em Junho 2013.
Provocadores embriagados de nacionalismo exaltado, embrulhados na bandeira nacional, atacaram as colunas da esquerda. Os episódios de choques com quadrilhas neofascistas que queriam derrubar as bandeiras vermelhas foram dramáticos. Embora graves, estes conflitos não foram o mais importante, ainda que tenham sido o mais triste. Os extremistas de direita eram uma minoria. A imensa maioria dos que saíram às ruas desenharam os seus próprios cartazes. “Sem bandeiras” foi a forma que assumiu a desconfiança e o temor de uma massa que não queria ser manipulada por qualquer partido.
Junho de 2013 foi uma desconcertante explosão de protesto e euforia. Em qualquer análise, respeitar o sentido das proporções é indispensável. Não devemos nos impressionar com o que aconteceu de irreverente e crédulo, ou até perigoso e reacionário. Quando da interpretação de grandes acontecimentos existe sempre o duplo perigo de subestimação ou de sobre-estimação.
Uma sequência de quatro protestos de rua contra o aumento das passagens de ônibus, em São Paulo, com alguns milhares de jovens das camadas populares, foi uma faísca. Reprimidos pela polícia com uma violência selvagem e inusitada, fora das periferias, detonaram uma explosão social surpreendente. Um conflito que parecia marginal deflagrou uma onda nacional de mobilizações que o país não conhecia desde o Fora Collor, vinte e um anos antes. A partir do dia 17 de junho uma geração de juventude das camadas médias tomou as ruas pela primeira vez.
A iniciativa do MPL (Movimento Passe Livre), um núcleo de ativistas de inspiração autonomista, sem que qualquer direção política mais importante estivesse comprometida com a convocação, abriu o processo. Os próprios manifestantes declararam, espontaneamente, aos milhares, ao que vieram: “não é por centavos!”.
Nas jornadas de junho centenas de milhares de jovens invadiram as ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Na dimensão nacional algo próximo a dois milhões de pessoas saíram às ruas em quatrocentas cidades em poucas semanas. Essa onda se estendeu de variadas formas no segundo semestre. Por um lado, a campanha “Aonde está Amarildo?” comoveu o país. Por outro, grupos de black blocs, alguns com infiltrações policiais, multiplicaram ações simbólicas violentas. Mas a onda se esgotou em fevereiro de 2014, depois da morte trágica do cinegrafista da Band diante da Central do Brasil.
Prevalece ainda em uma parcela da esquerda a percepção de que é possível discernir uma causalidade entre Junho de 2013, e o golpe institucional que derrubou o governo Dilma Rousseff em 2016, e tudo que veio depois: a posse de Michel Temer, o apogeu da operação Lava Jato, a prisão de Lula e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Uma dinâmica de derrotas. Mas esta interpretação é unilateral. Afinal, quais foram as conexões entre junho de 2013 e o impeachment, lembrando que Dilma Rousseff venceu o segundo turno contra Aécio Neves no final de 2014?
Esta luta por transportes, educação e saúde pública gratuita e de qualidade chocou, frontalmente, com o PT de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo e o PSDB de Geraldo Alckmin. Sérgio Cabral e Eduardo Paes do PMDB nos governos do Rio não foram poupados. Em Recife o PSB de Eduardo Campos foi, igualmente, atingido. Depois a avalanche de mobilizações se alastrou na forma de um tsunami nacional. Muitas cidades viram as maiores passeatas de sua história. Em não poucas delas, mobilizações maiores que as que conheceram quando das Diretas em 1984.
O apoio ao governo Dilma, que era amplamente majoritário – mais de 65% – em menos de um mês, passou a ser minoritário: menos de 30%. A força social de choque destas mobilizações deixou as instituições do Estado, por quase uma semana, semiparalisadas. A classe dominante se dividia entre os que exigiam mais repressão, e aqueles que temiam uma completa desmoralização política dos governos, caso a fúria policial descontrolada provocasse um ou mais mortos. O recuo no aumento das passagens não foi o bastante para retirar as massas das ruas durante alguns meses. Uma maioria dos setores médios deslocou-se para o apoio aos manifestantes.
Mas, apesar da vitória eleitoral de 2014, tudo evoluiu muito mal na sequência. O que significa que muitos erros foram cometidos. Temos, portanto, muito que aprender.
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo).
Nota
[i] http://especial.g1.globo.com/fantastico/pesquisa-de-opiniao-publica-sobre os-manifestantes
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