2013: levante de muitos ninguéns

Imagem: Roman Kaiuk🇺🇦
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Por ALEXANDRE MARINHO PIMENTA & PAULO HENRIQUE FLORES*

O legado e o significado principal de 2013 continuam em disputa

No dia 20 de junho de 2013, logo após o anúncio de revogação do aumento da tarifa de transporte de São Paulo, pelos já então parceiros Geraldo Alckmin e Fernando Haddad, uma charge de Angeli foi publicada no jornal Folha de S. Paulo. Da maneira que apenas a arte pode realizar, trata-se de uma síntese impressionante daquele momento. De um lado, três homens minúsculos, todos de terno, fazem uma pergunta: “afinal, quem vocês pensam que são?”. De outro, pessoas enormes, cujos sapatos surrados são do tamanho dos homens. Não há resposta. A grandeza diz por si só.

A charge não capta os rostos dos gigantes. Não são identificáveis. E, além de seus tamanhos desproporcionais, são muitos. Amotinados, formando uma turba. Se pudessem falar, como nos lembra Vladimir Safatle, responderiam como um manifestante a uma jornalista em 2013: “anota aí, eu sou ninguém!”.

Junho de 2013 completa dez anos. Como todo grande evento histórico, mesmo diante de inúmeros esforços de análise, Junho continua a ser, em vários aspectos, uma incógnita. Seus manifestantes, grandes esfinges. Diante das inúmeras e conflituosas interpretações que voltam a circular por conta do decênio, vê-se também que o legado e o significado principal de 2013 continuam em disputa.

A despeito de todas as minúcias históricas, não se pode negar que 2013 foi um levante popular. Uma onda de protestos surgida contra a carestia, depois em repúdio à violência policial, e alimentada pela insatisfação que se difundia junto à desaceleração econômica.

Enquanto levante popular, também não foi nenhuma jabuticaba brasileira: de certa forma, o 2013 brasileiro fecha um ciclo de lutas globais do início da década anterior. As massas em vários cantos do mundo já estavam reagindo contra os efeitos da crise de 2008 e a opressão governamental.

Esse levante de vários ninguéns, das classes dominadas em suas diversas gradações, não foi também um raio em céu azul por aqui. Em 2012 já se registrava um aumento no número de greves no país, desde as revoltas operárias nas construções de usinas hidrelétricas até a histórica greve da rede pública federal de ensino. Em 2013, as greves explodiram e, juntamente com os protestos de rua, continuaram nos anos seguintes em alto patamar.

No entanto, “Junho talvez seja a primeira grande revolta popular na história brasileira a ter sido demonizada pela esquerda —por parte dela, pelo menos” (Marcos Nobre, Folha de S. Paulo, 03.06.2023). Ora, o mais atingido com a revolta foi o governo central do país, à época do PT. E, como de 2013 para frente, o arranjo petista sofreu duros golpes e uma nova extrema-direita se apresentou no país, junto a uma profunda crise econômica e política, a defesa de 2013 enquanto um “ovo da serpente” se tornou comum nos meios desta esquerda.

Na realidade, tal tese diz mais desta dita esquerda do que de 2013. Ao acusarem a óbvia e esperada disputa e infiltração da direita ao longo do levante e seus desdobramentos, ou, ainda mais absurdo, traçarem uma linha reta entre junho de 2013 e a marcha fascista de 08 de janeiro, enquanto expressões da “anti-política”, só podem apontar, ao fim, para sua própria imagem refletida.

É, no mínimo, sintomática a acusação de que no então (e ainda) atual estado de coisas qualquer movimento anti-institucional fosse antidemocrático ou um embrião do autoritarismo. Fazer essa acusação é acusar, na verdade, sua própria posição nos acontecimentos, porque pressupõe que se afirme que o sistema institucional da República de 1988 é o de uma democracia a ser mantida e defendida.

Mas um dos problemas mais importantes que os eventos de junho de 2013 permitiu recolocar foi justamente este: a República de 1988 é uma forma política adequada para a expressão dos interesses e desejos das classes trabalhadoras ou uma República da Propriedade, antipopular e oligárquica? O fato de que a estrutura econômica capitalista neocolonial e o mesmo aparelho repressivo do Estado se mantêm desde a ditadura empresarial-militar de 1964 são índices suficientes para dar uma resposta concreta ao problema.

Acusar os eventos de 2013 de terem produzido a nova direita brasileira é, para bom entendedor, acusar o PT e seus satélites enquanto “partido da ordem”, a temer aqueles que, com sua insatisfação, naquele ciclo de lutas, não se enquadraram na teia da institucionalidade vigente. É perfeitamente legítimo, então, entender que o verdadeiro nome desta esquerda é o de “esquerda da ordem”. Os acontecimentos demonstram que, ao se tornar “sistema”, gestor desse regime de exploração, esse campo político já não pode mais ser bandeira de nenhum levante dos ninguéns – e, como os conservadores de todos os tempos, oferecem apenas repressão e difamação em resposta.

Que se tire a prova real: afinal, onde estavam as forças da direita teológico-política nos dez anos de “calmaria” que precederam 2013? E o latifúndio? Quem afiançou as aventuras dos militares no Haiti, em que assumidamente começaram a programar sua volta à cena política? Questões incômodas, é certo, mas importantes para indicar qual foi a esquerda que de fato alimentou os embriões do fascismo.

2013 marcou, a seu modo, como não poderia deixar de ser, a longa história das rebeliões do país. Àqueles que se colocam do lado dos dominados, cabe, é claro, fazer suas críticas às organizações, forças e movimentos que atravessaram o levante, mas visando sempre o avanço daquela resistência e em nome do direito de viver dignamente para a imensa maioria.

2013 demonstrou que quando os sem nome e sem rosto se levantam, desorganizam o jogo dos homens de terno. Que eles não são tão intocáveis quanto parecem, atrás de seus caveirões e escudos da tropa de choque. Que, como diz Paulo Arantes, podemos revidar.

Porém, sem dúvida, o levante encontrou falhas e foi derrotado. Não porque se ousou lutar mesmo contra aqueles que dizem ser nossos representantes e se perturbou o frágil equilíbrio que permitia uma democracia racionada – sendo o reforço da direita uma espécie de castigo divino por tamanho pecado. Mas porque não se encontrou à época as formas de manter o levante de pé, resistindo aos ataques cada vez mais duros dos homens de terno. E, como consequência de tal fracasso, nossa vida piorou desde então, sem conseguirmos reagir à altura.

Fomos incapazes de gerar saldos políticos e organizativos daquele levante e é exatamente isso o que nos falta ainda hoje. Organização: é o que faz toda diferença em enfrentar altas e baixas, avanços e reveses comuns a toda luta. Nos faltou e ainda nos falta uma institucionalidade outra, sob outra diretriz política – que não esteja amarrada nas mil armadilhas dos aparelhos estatais e privados dos dominantes, nem na fluidez cada vez mais manipulável das redes. Eis uma questão que merece o melhor de nossos esforços teóricos e práticos. A destituição dos dominantes e a constituição autônoma do poder dos dominados impõe a resolução deste problema que 2013 abriu, mas que ainda não resolvemos.

Diferente daqueles que gostariam que 2013 nunca tivesse existido, é preciso dizer, por fim, que não há ilusão mais perigosa do que o desejo por um tempo histórico enquanto uma passagem indolor, gradativa. Esse sim é um ovo que gera muitos monstros. Os acontecimentos de 2013 traçaram, entre nós à esquerda, uma verdadeira linha de demarcação, que a ascensão do fascismo só tornou mais grave. Trabalhar na resolução dos problemas que temos, dos problemas que são nossos, tem como pressuposto analisar e entender essa demarcação. Essa é, talvez, a condição de encontrarmos o fio que nos leva para a saída do labirinto infernal em que estamos.

*Alexandre Marinho Pimenta é doutorando em educação na UnB.

*Paulo Henrique Flores é doutor em filosofia pela PUC-Rio.


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