Arena ou sala de aula?

Imagem: Dóra Maurer
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Por JEAN PIERRE CHAUVIN*

“Limitar uma mudança educacional radical às margens corretivas interesseiras do capital significa abandonar de uma só vez, conscientemente ou não, o objetivo de uma transformação social quantitativa”

(István Mészáros. A educação para além do capital).

 

A essa altura da história, seria esperado que os pais e os alunos-clientes, atendidos pelo estabelecimento de ensino, já tivessem aprendido a lição preliminar de quem examina a linguagem: não há discurso desinteressado e apolítico.

 

O professor que atua há algum tempo na sala de aula notará como o senso comum contamina a visão de mundo, o discurso e a postura de seus alunos. Pelo menos desde meados de 1980, as instituições de ensino no país passaram a se alinhar acriticamente às pautas neoliberais, gestadas na América do Norte e na Europa durante as décadas anteriores.

Levando em conta a agenda econômica em vigor no Brasil, é preciso situar o lugar ocupado pelo país no desconcerto internacional, especialmente quando se defende e professa o ensino libertário, ou seja, quando se recorre a um método que pressupõe o diálogo e favorece a formação de seres pensantes e sensíveis, razoáveis e solidários.

Dito isso, todo e qualquer tema pode ser matéria de estudo e reflexão na sala de aula. Somente um sujeito de má-fé (ou muito ingênuo) fingirá acreditar que o professor deve atuar como um robô mal remunerado, capaz de se ater estritamente aos conteúdos do livro didático ou da apostila de ensino. Essa caracterização do educador puramente técnico, apartidário, com discurso neutro e não-ideológico, não passa de quimera. A essa altura da história, seria esperado que os pais e os alunos-clientes, atendidos pelo estabelecimento de ensino, já tivessem aprendido a lição preliminar de quem examina a linguagem: não há discurso desinteressado e apolítico.

Por sinal, foi numa sala de aula, aos quinze anos, que aprendi a esse respeito com a professora Wanda Antunes: o discurso anti-filosófico tem matriz filosófica. Analogamente, pode-se afirmar o mesmo quanto ao suposto combate à ideologia: nada há de mais ideológico que negar a diversidade; ignorar as contradições; minorar as fraturas e desigualdades sociais, culturais e econômicas em que estamos inseridos. Aquele que se contrapõe ao ensino de filosofia inventa disciplinas absolutamente questionáveis, que equiparam “projeto de vida” à reflexão profunda, supondo que formar o aluno cidadão equivale a preparar o estudante para se submeter às violentas regras do mercado.

Como dizia, pode-se discutir de tudo em sala de aula. Num país oficialmente laico desde sua primeira constituição republicana (1891), deveria ser natural comparar as religiões e discutir as diferentes conformações de seus representantes. Isso não implica questionar a fé – que é questão de foro íntimo. Movimento análogo poderia ser reservado a outras instituições sociais, como a origem histórica do casamento e da família, como a conhecemos; situar a propriedade privada e a luta por terras, num país sabidamente desigual como este; conceituar os regimes de Estado e os sistemas de governo; refletir sobre a manutenção do Estado de direito, bem como o teor das leis, regimentos e normas que nos regem; defender a importância da ciência, o papel da internet etc.

Infelizmente, parece haver confusão entre tratar a entidade mercado como tema de aula e enxergar a sala de aula como apêndice mercadológico. A questão é relativamente simples. Se aceitarmos que a classe é fórum reservado ao estudo de teorias, fórmulas, mapas, organismos e astros; se é um dos raros ambientes propícios à análise crítica de discursos e ao exame de dados e situações que favorecem a reflexão sobre práticas antigas ou correntes, ela não pode ser convertida em arena em que alunos e professores aprendam a digladiar segundo as regras da livre-concorrência, em nome da competitividade “saudável”.

Considerando que nossos diálogos cotidianos se dividem basicamente entre Eros e Tanatos, não será razoável defender que a sala de aula seja um reduto que permita discutir contradições inerentes às relações sociais, profissões e empreendimentos? Quando o ambiente se reduz a uma arena do mundinho business, que lugar resta para acolher a formação do conhecimento e estimular a postura crítica – contemplados os variados pontos de vista de alunos e professores?

*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete Falas: ensaios sobre tipologias discursivas.


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