Por FABRÍCIO AUGUSTO MENEGON*
Prefácio do livro organizado por Lauro Mattei
A maior crise sanitária do século XXI, pelo menos até o presente momento, foi a pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, causador da doença que ficou conhecida como Covid-19. A situação global causada mudou nossa rotina, virou a economia global de cabeça para baixo, remodelou nosso modo de viver, de se relacionar, de estudar e de trabalhar. Sem dúvida, o legado da pandemia não será somente sanitário, embora este, provavelmente, seja o mais fácil de lembrarmos.
Quando uma crise global nessas proporções ocorre, a resposta que esperamos das autoridades mundiais é de alinhamento estratégico para a execução de ações globais e locais de enfrentamento. E, de preferência, que estas ações sejam desenvolvidas e capitaneadas pela autoridade sanitária mundial: a Organização Mundial da Saúde (OMS ou World Health Organization). Contudo, mesmo com o esforço da OMS em procurar formas de sensibilizar as autoridades de cada país para a gravidade do problema e as consequências perversas da pandemia, principalmente para os mais vulneráveis, o eco gerado teve diferentes intensidades e foi fortemente prejudicado pelas fake news que apareciam e se disseminavam numa velocidade impressionante.
Dentre os diversos impactos nefastos da pandemia, lembremos dos trabalhadores que permaneceram desempenhando suas funções, ditas “essenciais”, tais como os profissionais de saúde, os trabalhadores do setor de alimentos, as forças de segurança, dentre outros.
Os locais ou situações onde havia grande probabilidade de disseminação do vírus, tais como alguns ambientes de trabalho, foram chamados de “super espalhadores”, ou “super spreaders”, no termo em inglês. Foi o caso da indústria frigorífica e de processamento de carnes, onde diversos surtos ocorreram em cidades brasileiras e em outros países, causados pela necessidade do capital de manter a força de trabalho em atividade.
Para estes trabalhadores, o espectro de desfechos relacionados à pandemia variou entre salvar vidas e perder a vida, passando pelo sofrimento e a angústia causados por presenciar a dor alheia. Inúmeros foram os casos de afastamento do trabalho por Covid-19, outras tantas foram as mortes causadas por terem que permanecer trabalhando. Trabalhadores que saiam de suas casas para trabalhar e não sabiam se voltariam contaminados, com possibilidade de levar a doença para dentro de seus lares. São heróis anônimos que não tiveram a opção da escolha pelo trabalho remoto, pagaram um preço alto por isso e, sequer, têm o reconhecimento e o respeito de seus patrões e de boa parte da sociedade.
Assistimos, muitas vezes consternados, a apatia e negação da pandemia por alguns governantes, ao mesmo tempo em que elogiávamos a adoção de medidas eficazes e alinhadas ao conhecimento científico e à realidade sanitária, por parte de outros. Enquanto isso, muitas pessoas mundo afora padeciam da doença e centenas de milhares perdiam a vida. Só no Brasil, estima-se que cerca de 400.000 óbitos por Covid-19 teriam sido evitados se medidas sanitárias eficazes, incluindo a vacinação, tivessem sido tomadas com rapidez e compromisso com a realidade social.[i]
No cenário mundial, o Brasil se destacou pela demora com que decidiu adquirir vacinas contra a Covid-19, enquanto outros países desenvolvidos, ou em desenvolvimento, compreenderam rapidamente a importância fundamental da vacinação populacional para conter o avanço da pandemia. Em que pese a crítica à lógica mercantilista que assistimos ao longo do processo de compra de vacinas, principalmente nos países mais ricos (o Canadá, por exemplo, comprou quantidade de vacinas suficientes para imunizar nove vezes a sua população),[ii] o Brasil tinha (e tem) potencial de desenvolver vacinas de alta qualidade para suprir a necessidade populacional, além de uma rede de mais de 38.000 salas de vacinação do Sistema Único de Saúde (SUS) espalhadas pelo país.
A consequência da pandemia para o povo brasileiro não foi mais perversa porque nossa política pública de saúde garante o acesso de qualidade para todos. O SUS, a despeito das críticas e das tentativas de aniquilação financeira e estrutural capitaneadas por políticos e empresários sem qualquer compromisso com a sociedade, mostrou mais uma vez sua importância, garantindo o atendimento e o cuidado, nas grandes cidades e nos rincões do Brasil.
Não há como alegar ignorância sobre a situação. Foram inúmeras as vezes que a comunidade científica brasileira se posicionou exigindo uma postura ética e compromissada do governo federal e dos governos estaduais, incluindo o do estado de Santa Catarina.
O papel desempenhado pelo Núcleo de Estudos de Economia Catarinense (Necat/UFSC) na elaboração sistemática de boletins com alto grau analítico sobre o desenvolvimento da pandemia e suas consequências fundamentou por inúmeras vezes a pauta da mídia catarinense e brasileira. Da mesma forma, pesquisadores do Departamento de Saúde Pública da UFSC atuavam na produção e análise de dados, emitiam cartas e manifestos e figuravam na mídia como interlocutores qualificados para informar a sociedade e os governos, com conhecimento de base científica, acerca da crise sanitária imposta pela pandemia e as prováveis consequências que já eram previstas.
Nossos apelos foram sumariamente ignorados, ou respondidos de forma genérica e com tons de desresponsabilização. “Se fechar tudo, a economia vai quebrar”, “estamos fazendo o que é possível”, “nossas ações seguem uma estratégia baseada nas melhores práticas”, “os gestores municipais têm autonomia para atuar…”, são frases que ouvimos muitas vezes e que revelam a tentativa de polarizar o debate em “ou salvamos a economia, ou salvamos a saúde”. A história nos mostra que o desenvolvimento social depende, fundamentalmente, da interrelação positiva entre os aspectos econômicos, sociais e sanitários. Polarizá-los é um equívoco de quem compreende a sociedade de forma rasa, ou deliberadamente o faz com interesses alheios as reais demandas sociais.
O cenário sanitário atual não é mais assustador como vimos nos anos de 2020 e 2021. A vacinação da população trouxe alento e arrefeceu a força da Covid-19. Evidentemente, vivemos à espreita das novas variantes que surgem de tempos em tempos e nos trazem o receio da possibilidade de um escape vacinal que possa recrudescer o problema. Não parece ser este o maior problema, até este momento. Mas, a cada nova onda, mais casos surgem, mais pessoas morrem, mais pressão ocorre sobre o sistema de saúde e demorada continua sendo a resposta efetiva das autoridades.
Até o momento em que este prefácio era escrito, o Brasil não tinha um plano nacional de enfrentamento da pandemia de Covid-19. Uma proposta consistente de plano foi entregue ao Ministério da Saúde em julho de 2020 pela Frente pela Vida, representação que conta com entidades científicas, de bioética e o Conselho Nacional de Saúde.[iii] Novamente, sequer foi considerada e debatida pela autoridade sanitária nacional. Enquanto isso, ostentamos envergonhados a classificação de líder mundial em óbitos de Covid-19 por milhão de habitantes[iv] e acompanhamos estupefatos o fato de que ainda não há previsão de calendário vacinal contra a Covid-19 para o ano de 2023 (estamos no final de novembro de 2022).
Urge a necessidade de uma mudança que nos reposicione no cenário mundial como protagonista e exemplo de política pública de saúde. É imperativo resgatar a potência, o legado e a estrutura do Programa Nacional de Imunizações (PNI) brasileiro que já foi referência mundial. Exigimos do poder público que cumpra o seu papel.
Viva o SUS! Viva o povo brasileiro! Viva a democracia!
*Fabrício Augusto Menegon é professor do Departamento de Saúde Pública e do programa de pós-graduação em Saúde Coletiva da UFSC.
Referência
Lauro Mattei (org.). O legado econômico e social da COVID-19 no Brasil e em Santa Catarina. Florianópolis, Editora Insular, 2022, 400 págs.
Notas
[i] Pesquisas apontam que 400 mil mortes poderiam ser evitadas; governistas questionam.
Fonte: Agência Senado. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/06/24/pesquisas-apontam-que-400-mil-mortes-poderiam-ser-evitadas-governistas-questionam.
[ii] Mullard, A. How COVID vaccines are being divvied up around the world: Canada leads the pack in terms of doses secured per capita. Nature. News section. 30/11/2020. Disponível em https://www.nature.com/articles/d41586-020-03370-6.
[iii] Entidades apresentam Plano Nacional de Enfrentamento à Covid-19 ao Ministério da Saúde e ao Conass. Associação Brasileira de Saúde Coletiva, notícias. Comunicação Abrasco com informações do Conselho Nacional de Saúde. 24/07/2020. Disponível em https://www.abrasco.org.br/site/noticias/especial-coronavirus/entidades-apresentam-plano-nacional-de-enfrentamento-a-covid-19-ao-ministerio-da-saude-e-ao-conass/50587/..
[iv] Our World in Data. Cumulative confirmed COVID-19 deaths per million people. Disponível em https://ourworldindata.org/covid-deaths.
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