Florestan Fernandes – um socialista humanista

Imagem: Andreea Ch
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DIOGO VALENÇA DE AZEVEDO COSTA*

Florestan percebia muito bem as mudanças de rumo em seu pensamento, pois suas ideias eram respostas aos problemas de sua época

Ontem se completaram 28 anos da partida de Florestan Fernandes. Não é fácil ser justo com a sua obra. Muitas interpretações de seu pensamento sociológico parecem primeiro supor o que ele disse ou deveria ter dito para, em seguida, procurar exemplos extraídos de seus textos que comprovam tais “hipóteses” autossustentadas. Esta é uma maneira de proceder pouco justa, que o próprio Florestan Fernandes desaconselhava.

Nascido no século XX, em 22 de julho de 1920, e tendo produzido até os momentos finais de seu falecimento em 10 de agosto de 1995, a obra intelectual e política de Florestan Fernandes se desdobra em diferentes temáticas, fruto de seus trabalhos de investigação sociológica, e assume contornos teóricos e metodológicos diversos, mas sempre marcados pela coerência, consistência e síntese original.

Florestan Fernandes percebia muito bem as mudanças de rumo em seu pensamento, pois suas ideias eram respostas aos problemas de sua época. Ao mesmo tempo, podemos perceber em seu esforço de autoanálise sociológica uma nítida consciência da continuidade e um fio condutor em suas reflexões. Se houve rupturas em seu pensamento, as continuidades são igualmente decisivas, demonstrando que se tratava de um autor que se repensava o tempo todo.

Em 1986, num encontro ocorrido no campus da UNESP de Marília, Barbara Freitag lança a tese do corte epistemológico, dividindo a trajetória de Florestan Fernandes entre uma primeira fase acadêmico-reformista e uma segunda político-revolucionária. O marco de divisão entre as duas etapas foi a aposentadoria compulsória de Florestan Fernandes da Universidade de São Paulo (USP) em 1969. A ditadura empresarial-militar o puniu por conta de sua resistência democrática, impedindo-o de lecionar em qualquer outra universidade brasileira (Freitag, 1987).

A fase acadêmico-reformista seria caracterizada pelo uso do conceitual e dos instrumentos metodológicos da sociologia positivista e funcionalista num horizonte político de corte liberal, fundamentado na concepção mannheimiana do intelectual e da reforma via planejamento experimental e democrático. Já a fase político-revolucionária seria marcada pelo uso de categorias marxistas como modo de produção, formação social e imperialismo para interpretar as condições históricas e concretas do capitalismo dependente. Florestan Fernandes agora estava interessado na revolução socialista.

Essa simplificação excessiva não faz justiça à tese do corte epistemológico, a qual procura relacionar as posições epistemológicas de Florestan Fernandes com sua prática política na esfera educacional em cada um dos dois momentos. No entanto, a exposição recolhe o essencial dos seus argumentos. A tese do corte epistemológico foi depois vulgarizada como uma distinção entre uma fase acadêmica e outra política. Na verdade, ela expressa dois modos distintos de atuação política, um por via das reformas e outro por meio do socialismo revolucionário. A política não estava ausente na primeira fase.

O mérito da tese do corte epistemológico é apontar que houve mudanças significativas na obra de Florestan Fernandes. Porém, essas mudanças não podem ser interpretadas como um corte epistemológico. Também seria errônea a ideia de que Florestan Fernandes alguma vez tenha sido positivista. Se comparamos os textos de sociologia teórica de Florestan Fernandes dos anos 1950 com os da década de 1970, percebemos que ele nunca se sentiu em desacordo com suas soluções metodológicas anteriores.

Um livro como A natureza sociológica da sociologia (Fernandes, 1980) reavalia os limites teóricos de trabalhos como Fundamentos empíricos da explicação sociológica (1959), Ensaios de sociologia geral e aplicada (1960) e Elementos de sociologia teórica (1970), destacando que as tentativas de síntese metodológicas das correntes clássicas e modernas das ciências sociais ali avançadas não seriam possíveis numa sociedade antagônica e irremediavelmente fraturada como a capitalista. Mas em nenhum momento Florestan afirma que esse esforço de síntese seria inútil e desnecessário.

Além disso, em muitas questões teórico-epistemológicas debatidas na década de 1970, como a das relações entre natureza, sociedade e história ou a das subdivisões da Sociologia, Florestan Fernandes não se viu em contradição com ideias que defendeu quando esteve imerso no trabalho acadêmico na USP. Florestan Fernandes não assumia dogmaticamente uma perspectiva metodológica e assim se definia. Fazer uso do estrutural-funcionalismo não o transforma num funcionalista. Nessa mesma época já estava elaborando suas ideias sobre as subdivisões da sociologia e apontava a importância de Karl Marx para a construção de uma sociologia histórica.

Se quisermos avaliar com justiça sua produção acadêmica desse período, devemos questionar o quanto conseguiu avançar em seus esforços de síntese e quais limites ele legou para as novas gerações, que precisariam ser superados num trabalho coletivo. De igual modo, o fato de ter aprofundado e incorporado Karl Mannheim não o transforma numa cópia em miniatura do sociólogo húngaro em terras brasileiras. Num ensaio de 1946 intitulado “A política como ciência em Karl Mannheim”, Florestan Fernandes revela que essa assimilação nunca foi acrítica, questionando a suposição de Karl Mannheim segundo a qual a situação política e histórica europeia possibilitava uma base social para a “síntese de perspectivas” e a implementação do planejamento democrático.[1] Uma sociedade dividida em classes não permitiria a concretização de tal projeto reformista.

Há, de fato, uma reorientação profunda no pensamento de Florestan Fernandes entre fins da década de 1950 e anos 70, mas não como um corte epistemológico. Essa reorientação radical ocorre em meio a uma reelaboração mais consistente das antigas concepções teórico-metodológicas na sociologia. A sua visão de Brasil e América Latina se torna mais historicamente concreta, apreendendo as especificidades do capitalismo dependente e da autocracia burguesa na periferia do sistema mundial. Mas essa rica caracterização sociológica só se fez possível mediante um esforço de síntese original para a qual Florestan Fernandes já vinha se exercitando há mais de 25 anos em suas pesquisas.

O confronto com forças conservadoras e reacionárias na Campanha em Defesa da Escola Pública (1959-1962), o desvelamento das formas racistas subjacentes ao subdesenvolvimento dependente e os embates contra a “reforma universitária” pretendida pela ditadura civil-militar (1967-1968) foram alguns dos acontecimentos históricos decisivos que fizeram Florestan Fernandes abandonar a ideia de que a Revolução Burguesa ainda continha potencialidades progressistas. As transformações “dentro da ordem” passam a ser encaradas como um processo político permanente de aprofundamento da “revolução contra a ordem”. Os tempos histórico das revoluções democrática e socialista se iluminam reciprocamente.

Florestan Fernandes não despreza a “revolução dentro da ordem”, mas a vincula ao projeto socialista de transformações cada vez mais radicais e profundas, avançadas a partir “dos de baixo”. Aliás, suas reflexões sobre o movimento socialista e o partido político revolucionário em fins da década de 1970 levam em conta a exigência de incorporar as massas despossuídas e as classes trabalhadoras num horizonte revolucionário, num fazer histórico que se lança para o futuro. É nesse momento que se revela plenamente o Florestan humanista, mas não o de um humanismo abstrato de corte liberal, voltado para o indivíduo egoísta, atomizado e alienado nas relações reificantes capitalistas.

Há uma afinidade entre Florestan Fernandes e os marxismos críticos do Leste Europeu, atuantes no período da União Soviética, nessa defesa de um socialismo humanista. O retorno ao “jovem Marx”, ao Marx de Os manuscritos parisienses de 1844, detinha o sentido político e ideológico de resistir às estruturas burocráticas e autoritárias legadas pelo Stalinismo como fenômeno histórico e cultural abrangente. No caso brasileiro, a brutalização do ser humano pelas relações capitalistas, colonialistas, racistas e patriarcais tornava premente a recuperação do legado humanista das tradições revolucionárias marxistas. Florestan discordava da tese do corte epistemológico entre o jovem e o velho Marx, sinalizando para a necessidade de se recuperar a perspectiva humanista da crítica da alienação nos caminhos da luta socialista.

Nenhuma forma de exploração, dominação e opressão passaria incólume pelo crivo crítico do socialismo humanista. As formas especificamente capitalistas baseadas na extração de mais-valia relativa, associadas à mais-valia absoluta e à recomposição permanente de processos espoliativos de acumulação primitiva entre centros e periferias, de exploração de classe se combinam a relações colonialistas, sexistas e racistas na divisão social do trabalho. O Estado burguês que emerge de tal panorama histórico cultiva a democracia restrita dos mais iguais como estilo de vida, cooptando as camadas médias como um meio de impedir transformações radicais de baixo para cima.

Na entrevista a Paulo de Tarso Venceslau, publicada em 20/01/1991, Florestan Fernandes defende a tradição humanista no pensamento marxista. Esse humanismo era compreendido como um desenvolvimento multilateral da personalidade e potencialidades humanas numa perspectiva comunitária e autogestionária dos trabalhadores livremente associados.

Trata-se de uma superação do humanismo individualista, burguês, e de todos os humanismos precedentes: “Eu sou socialista, portanto, acredito que nós vamos construir uma sociedade socialista, que deverá começar com uma democracia da maioria, atingir a igualdade com liberdade e desenvolver todos os elementos fundamentais da personalidade humana. Trata-se de um socialismo que defende um humanismo – uma síntese, uma superação de todas as outras formas de humanismo anteriores. (Fernandes, 1991).

O resgate do socialismo humanista em Florestan Fernandes nos ajuda a reinterpretar aspectos de sua trajetória intelectual. As pesquisas anteriores sobre os povos originários, a discriminação racial na sociedade de classes, a educação e os dilemas históricos da periferia e do capitalismo dependente desembocam numa militância socialista que se posiciona contra toda e qualquer forma de opressão, contra o racismo, o colonialismo e a dominação masculina, contra a degradação do meio socioambiental e, por fim, contra tudo o que nos degrada na civilização da barbárie capitalista.

A perspectiva da emancipação humana alimenta as análises sociológicas de Florestan Fernandes e orienta prospectivamente a investigação do presente e passado na transformação do futuro. Esse é o sentido da aproximação entre socialismo e sociologia que Florestan cultiva, a partir dos anos 1970, em sua práxis revolucionária.

Podemos nos perguntar, enfim, como o socialista humanista Florestan Fernandes, ou na feliz expressão de Heloísa Fernandes (2008), o sociólogo-socialista que se funde numa só pessoa, passa a ressignificar o conjunto de toda sua produção teórica anterior. Se o critério para julgarmos um indivíduo for a sua prática efetiva e não o que ele diz de si mesmo, Florestan Fernandes se posicionou à altura de suas tarefas históricas e, como poucos, foi capaz de superar as distâncias entre palavra e ação. A autenticidade é o traço maior de seu pensamento e modo de ser.

*Diogo Valença de Azevedo Costa é professor de sociologia na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Referências


FERNANDES, F. Fundamentos empíricos da investigação sociológica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959.

______. Ensaios de sociologia geral e aplicada. São Paulo: Pioneira, 1960 (https://amzn.to/3YFx8Qq).

______. Elementos de sociologia teórica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970 (https://amzn.to/44hwNVv).

______. A natureza sociológica da sociologia. São Paulo: Ática, 1980 (https://amzn.to/3YwqPi4).

______. Florestan Fernandes, Teoria e Debate, n. 13, jan., 1991. Disponível em: https://teoriaedebate.org.br/1991/01/20/florestan-fernandes/.

Fernandes, Heloísa. Florestan Fernandes, un sociólogo socialista. In: Fernandes, Florestan. Dominación y desigualdad: El dilema social Latinoamericano (Antología). Bogotá: Siglo del Hombre, CLACSO, 2008. p. 9-35 (https://amzn.to/3KFl7on).

FREITAG, B. Democratização, universidade, revolução. In: d’Incao, M. A. (org.). O saber militante: ensaios sobre Florestan Fernandes. Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra/ Unesp, 1987. p. 163-180 (https://amzn.to/47yhACq).

Nota


[1] O ensaio pode ser consultado em Fernandes (1970)


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Jean Marc Von Der Weid Plínio de Arruda Sampaio Jr. Osvaldo Coggiola Heraldo Campos Alexandre de Lima Castro Tranjan Thomas Piketty Marilia Pacheco Fiorillo Flávio Aguiar Michael Löwy Juarez Guimarães Daniel Afonso da Silva Marcelo Guimarães Lima José Geraldo Couto Julian Rodrigues João Lanari Bo Luiz Marques Fernando Nogueira da Costa Elias Jabbour Daniel Brazil Remy José Fontana Chico Whitaker Gilberto Lopes Luciano Nascimento Anselm Jappe Denilson Cordeiro André Singer Otaviano Helene Marjorie C. Marona Manchetômetro Antonio Martins Antônio Sales Rios Neto Vladimir Safatle Luís Fernando Vitagliano Celso Frederico Leonardo Sacramento Vanderlei Tenório Eleonora Albano Paulo Nogueira Batista Jr Tadeu Valadares Milton Pinheiro Samuel Kilsztajn Atilio A. Boron Dênis de Moraes Marilena Chauí Flávio R. Kothe Ladislau Dowbor Luiz Eduardo Soares Chico Alencar André Márcio Neves Soares Vinício Carrilho Martinez José Luís Fiori Claudio Katz Annateresa Fabris Slavoj Žižek Mariarosaria Fabris Antonino Infranca Ricardo Abramovay Rubens Pinto Lyra Everaldo de Oliveira Andrade Andrew Korybko Luiz Renato Martins Ricardo Musse Luis Felipe Miguel Fábio Konder Comparato Igor Felippe Santos Rodrigo de Faria Rafael R. Ioris Henry Burnett Eugênio Trivinho Sandra Bitencourt José Dirceu José Costa Júnior Paulo Fernandes Silveira Salem Nasser Paulo Sérgio Pinheiro Gerson Almeida Eliziário Andrade Lucas Fiaschetti Estevez Bernardo Ricupero Armando Boito Ricardo Fabbrini Walnice Nogueira Galvão Bruno Fabricio Alcebino da Silva Fernão Pessoa Ramos João Carlos Salles Andrés del Río João Feres Júnior Luiz Carlos Bresser-Pereira Bruno Machado Paulo Martins Carla Teixeira Marcelo Módolo Ronald León Núñez Yuri Martins-Fontes Henri Acselrad José Micaelson Lacerda Morais Michel Goulart da Silva Celso Favaretto Eduardo Borges Caio Bugiato Alexandre Aragão de Albuquerque Liszt Vieira Eleutério F. S. Prado Ronald Rocha Alysson Leandro Mascaro Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Leda Maria Paulani Berenice Bento Francisco Pereira de Farias Marcus Ianoni Bento Prado Jr. Tarso Genro Afrânio Catani Jorge Luiz Souto Maior João Carlos Loebens José Raimundo Trindade Matheus Silveira de Souza Mário Maestri João Sette Whitaker Ferreira Leonardo Avritzer Sergio Amadeu da Silveira Benicio Viero Schmidt Eugênio Bucci Gabriel Cohn Luiz Werneck Vianna José Machado Moita Neto Luiz Roberto Alves Luiz Bernardo Pericás Tales Ab'Sáber Boaventura de Sousa Santos Valerio Arcary João Adolfo Hansen Kátia Gerab Baggio Francisco de Oliveira Barros Júnior Gilberto Maringoni Francisco Fernandes Ladeira Marcos Silva Dennis Oliveira Lincoln Secco Érico Andrade Paulo Capel Narvai Daniel Costa João Paulo Ayub Fonseca Jorge Branco Airton Paschoa Lorenzo Vitral Ari Marcelo Solon Renato Dagnino Ricardo Antunes Leonardo Boff Michael Roberts Alexandre Juliete Rosa Ronaldo Tadeu de Souza Priscila Figueiredo Maria Rita Kehl Manuel Domingos Neto Alexandre de Freitas Barbosa Jean Pierre Chauvin Marcos Aurélio da Silva Carlos Tautz

NOVAS PUBLICAÇÕES