Literatura na quarentena: Homens e Não

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Comentários sobre o livro do escritor italiano Elio Vittorini

Por Jan Cenek*

Os homens podiam se perder por toda parte e por toda parte resistir. Não podiam se perder por toda parte e por toda parte resistir? (Elio Vittorini, Homens e Não)

Na capa espessa duas palavras se destacam: “homens” e “não”, entre elas, há um “e” cortado, que parece um “i” sem o pingo. O nome do autor, Elio Vittorini, praticamente não aparece. Quase se lê Homens Não. Mas o título é Homens e Não. Na contracapa, em tons de cinza, se vê uma cidade bombardeada. As orelhas informam se tratar de um romance publicado no final da Segunda Guerra Mundial, que fala da resistência italiana e de homens partidos, como a Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade. Comprei sem hesitar. Atraiu-me, sobretudo, o “não” estampado na capa.     

Cresci entre imigrantes italianos que chegaram ao Brasil na metade do século XX. Trinta anos depois, ouvia-se uma espécie de “brasiliano” nas ruas, calçadas e quintais que frequentei. Era um idioma paralelo, gesticulado, viril e de difícil compreensão para quem não fosse dali. Acredito que, naqueles anos, na primeira infância, comecei a desconfiar da vida, como se houvesse uma ambiguidade fundamental e inescapável na existência, que se descortinava ali e que, posteriormente, me empurraria para a esquerda e para a literatura. Havia entre aqueles homens uma profunda desconfiança na polícia e no Estado, desconfiança nem sempre explicitada, mas sempre presente. Eu ouvia histórias da “guerra contra Alemanha”, exatamente o contrário do que ensinavam na escola, onde se aprende que italianos e alemães lutaram lado a lado. Lembro de ouvir um daqueles homens contando que, cercado pelos alemães e para não ser morto, se refugiou no esgoto por dois dias. Desconfio que aquela história me causou certo pânico de cercos policiais, fazendo-me torcer pela fuga quase sempre impossível. Imaginava aquele homem percorrendo as tubulações, espremido entre os ratos e a sujeira da cidade, por baixo dos soldados inimigos. Era difícil conciliar o que ouvia nas ruas, calçadas e quintais com as lições ensinadas na escola. Talvez daí certa tendência a não levar as coisas a sério. Como escreveu Milan Kundera: “quem começa duvidando de detalhes acaba duvidando da própria vida.”1

Tempos depois, cheguei a pensar que posso ter crescido junto com homens e mulheres da resistência italiana, o que explicaria a “guerra contra os alemães” e não ao lado deles. Mas, mesmo podendo fazê-lo, nunca indaguei nenhuma daquelas pessoas sobre o passado político delas. Era desnecessário. Sentia-me um deles. Bastava. A pergunta talvez violasse a nossa cumplicidade, poderia ressuscitar fantasmas do passado.

Elio Vittorini integrou a resistência na vida real. No romance, a ação ocorre em Milão, à época ocupada pelos nazistas, no final da Segunda Guerra Mundial. A história é contada em diálogos duros, completados por descrições breves e comentários do autor. Os personagens se tratam por codinomes. Bicicletas cortam as ruas, como no cinema italiano. As fugas são por becos e telhados, e não pelo esgoto, como na história que ouvi quando criança. Ocorre um cerco que me fez parar a leitura e respirar fundo, além de torcer pela fuga. Há amores interrompidos, apressados, por fazer. Em um dos trechos mais pesados do romance, uma passagem com um cão de caça remete ao capítulo A Revolta, dos Irmãos Karamazov, de Dostoievski.

Refletindo sobre a batalha de Stalingrado, Drummond escreveu que o homem é “uma criatura que não quer morrer e combate, contra o céu, a água, o metal, a criatura combate, contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate, contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate”. Refletindo sobre a resistência italiana, Vittorini completaria: “Não havia somente luta e sobrevivência. Havia também lutar e se perder.” Impressiona notar que, tanto no poema de Drummond quanto no romance de Vittorini, os homens combatem para viver. A luta é muito mais pela vida presente do que pelo futuro imaginado. Dito de outra maneira: nas obras citadas (Carta a Stalingrado e Homens e Não) não é a utopia que sustenta a resistência, é a resistência que sustenta a utopia. Drummond: “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais. Os telegramas de Moscou repetem Homero.”

Mas, pensar que os homens lutam e se perdem ao mesmo tempo, como no romance de Vittorini, chocaria militantes e poetas líricos, como Pablo Neruda.2 Para o poeta chileno, os homens não somente lutam, ao mesmo tempo constroem a vida futura, não se perdem porque resistem. Exemplo. Há uma imagem de Drummond que é tão áspera e desoladora que, inconscientemente ou não, Neruda a reconstruiu. Drummond: “Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas, todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede, mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol, ó minha louca Stalingrado!” Neruda: “Estes livros, em frescas caixas de pinho e cedro, estão reunidos sobre o túmulo dos verdugos mortos: estes teatros feitos nas ruínas cobrem martírio e resistência: livros claros como monumentos: um livro sobre cada herói, sobre cada milímetro da morte, sobre cada pétala desta glória imutável.”  

O personagem principal de Homens e Não, o partigiano Ene 2, luta e se perde ao mesmo tempo. É uma espécie de Mersault, o estrangeiro de Camus, misturado com Bartleby, o escriturário de Melville, Ene 2 combina a indiferença absurda do primeiro com o “preferiria não” do segundo. Vittorini dá vida a outros partigianos. Filho-de-Deus, que amava os cachorros. Coriolano, que levava a família para os esconderijos. Foppa, que gostava de cinema e dos chineses. El Paso, que havia lutado contra os fascistas na Guerra Civil Espanhola. Um operário que aderiu à resistência, mas não matou um soldado inimigo por considerá-lo triste. São homens concretos, de carne e osso, como os que conheci num canto de São Paulo. É o ponto forte do romance.

Um dia recebi notícias sobre um daqueles italianos que conheci. Passava os dias numa poltrona que levava para a calçada. Varria o chão e até cochilava sentado. Os edifícios avançavam sobre as casas do bairro, inclusive a dele. Ele próprio havia recebido mais de uma proposta para trocar a casa por um apartamento. Mas nunca aceitou. Lutava e se perdia? Naquela manhã, um casal passeava com o cachorro, perto da poltrona do italiano. Quando o animal ameaçou sujar a calçada, o homem tentou espantá-lo com a vassoura. Na confusão, os donos protegeram o cachorro e foram atingidos por vassouradas. Eram advogados. Disseram que chamariam a polícia e que processariam o italiano. O homem tinha 98 anos. Imagino a polícia abordando aquele homem quase centenário, na poltrona posicionada na calçada. Ter problemas com a lei, mais um, aos 98 anos, é para poucos.

Escrevo durante a pandemia provocada pelo Covid-19. Aproveitei o período de distanciamento social para reler Homens e Não. Da Itália chegam notícias tristes. No momento, é o país que contabiliza o maior número de mortos. Da Itália também chegam imagens emblemáticas, que emocionam. Homens, mulheres e crianças cantam Bela Ciao nas sacadas dos apartamentos em plena quarentena. Vejo Ene 2, Filho-de-Deus, Coriolano, Foppa, El Paso, o operário partigiano e os italianos que me criaram cantando. Também os vejo lutando e se perdendo nos hospitais, entre os profissionais da saúde, sem condições mínimas de trabalho. 

A Itália é um dos alicerces fundamentais da civilização, basta pensar no Renascimento. Quinhentos anos depois, Italo Calvino escreveu: “a Itália é hoje, em parte, um país moderníssimo, industrializado, com um alto nível de bem-estar; em parte, porém, é um país antiquado, imóvel, paupérrimo […] Temos ao alcance da mão, a um só tempo, Detroit e Calcutá.”3 O melhor da Itália nasce justamente da contradição entre as possibilidades esboçadas pelo Renascimento e os limites impostos pelo capitalismo. Isso ajuda a explicar a força do movimento operário italiano dos anos 1960, por exemplo. É a possibilidade tencionando o limite. É a Itália dos homens que lutam e se perdem, como no romance de Elio Vittorini. É a Itália dos homens e do não. É a Itália que amo.   

*Jan Cenek é militante do Espaço Cultural Mané Garrincha

Notas

1 A sacada de Milan Kundera está no romance A insustentável leveza do ser.

2 Uma análise sobre o diálogo de Neruda com Drummond pode ser lida em: http://antiode.blogspot.com/2013/03/no-canto-do-canto-uma-rosa-nasceu_3.html#links

3 A reflexão de Italo Calvino está no ensaio Diálogo de dois escritores em crise, que foi publicado no livro Assunto encerrado – discursos sobre literatura e sociedade.

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