Para onde vai a social-democracia?

Imagem: Kelly
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TARSO GENRO*

Como fundir o Estado social com liberdades políticas, segurança continental com soberania popular, República com liberdades políticas irrevogáveis

Entre 11 e 13 de agosto em São Paulo ocorreu mais uma reunião do programa Reconstruindo o Estado de Bem-estar nas Américas, lançado pelo PNUD\ONU em 1996 e hoje coordenado por Jorge Castañeda, Gaspard Estrada e Carlos Ominami. À época, sob a direção de Roberto Mangabeira Unger, seus primeiros integrantes se reuniram “impulsionados por uma intuição comum”: buscar saídas para a afirmação democrática do Continente latino.

Sua continuidade, hoje, com a presença de novas lideranças democráticas das esquerdas jovens recentemente surgidas, foi adquirindo mais amplitude e, ao mesmo tempo, mais precisão de propósitos nos novos encontros. O Programa começara chamando à discussão líderes democráticos de esquerda, da centro esquerda e mesmo da centro-direita da América Latina, que teriam a capacidade de influenciar nos seus respectivos países os destinos das políticas de transição das ditaduras dos anos 1970, para assentar suas respectivas nações na estrutura liberal-democrática em recomposição, então destruída pelos golpes militares que assolaram uma grande parte da América Central e do Sul.

Participante da primeira reunião que ocorreu no Chile, acompanhei várias edições do Programa, com Lula, José Dirceu, Marco Aurélio Garcia, Brizola, ao lado de eminentes economistas, como Dante Caputo, quadros “de partido” do campo democrático, como Ricardo Lagos, Michelle Bachelet, Vicente Fox, López Obrador, Fernando de La Rua e tantas outras personalidades, que tomaram caminhos diversos, nas suas escolhas e definições políticas.

Esgotada a safra dos presidentes eleitos na restauração democrática, os debates se encaminharam para a busca de saídas consensuais num quadro econômico desolador, internamente na América Latina, e externamente nos núcleos centrais do sistema-mundo. Estava em curso um rearranjo estrutural que vinha mudando os padrões de acumulação, reestruturando em profundidade as formas de prestação de trabalho e serviços em todos os setores da economia, com um pesado impacto das novas tecnologias na vida comum de milhões de pessoas.

A divisão que ocorreu dentro do projeto foi natural, já que começaram a aparecer, depois do vencimento dos regimes militares, alternativas neoliberais “sedutoras”, que além de prometer uma transição “protegida” pelo capital financeiro, para os Estados que se comportassem bem para pagar os seus compromissos com as respectivas dívidas públicas que tinham adquirido no período das ditaduras. A hegemonia dos pactos de dominação em alta, em torno do “único caminho”, que parecia fortalecido dogmaticamente nas “classes altas” absorveu uma boa parte da direita democrática que participava dos debates, já que a esquerda teve imensas dificuldades para prover alternativas novas: venceu, numa parte dos primeiros debatedores, o espírito do Consenso de Washington, através da ilusão neoliberal.

Em alguns países se repetiram governos reformistas tímidos e no campo da esquerda mais “realista”, por falta de maiorias estáveis para governar e pela incompreensão de que, dali para diante, as reformas seriam diferentes daquelas do século passado, para darem conta do atraso e do subdesenvolvimento. O reformismo democrático de centro-esquerda que governou diversos países, ainda que tenha obtido escassos resultados sociais – significativos evidentemente em comparação aos governos “liberais” anteriores – deixaram uma prova importante de apreço à democracia e respeito mínimo às instituições da República.

Agora é hora de instaurar uma conexão de princípios entre as novas esquerdas que se organizaram nos últimos 15 anos, principalmente para que possamos fundir as velhas e decisivas demandas sociais com as novas demandas culturais, de novos modos de vida, de combate sem tréguas ao racismo e a todas as formas de discriminação, reproduzidas de forma incessante pelo conservadorismo reacionário de tradição escravagista. Essa é uma necessidade histórica de uma nova e forte unidade popular e democrática já colocada para este século

Vários dos participantes daqueles encontros se transformaram em presidentes, por distintos caminhos políticos – no campo da democracia liberal – ou se tornaram ministros, presidentes de partidos e quadros de Estado, em várias funções de responsabilidade estatal. De lá para cá, todavia – nos dias de hoje –- as questões ficaram ainda mais complexas, colocando-nos outras realidades para serem desvendadas, tais como o novo sistema de alianças para governar, compatíveis para formar maiorias políticas, de um lado, e – de outro – a surpresa do surgimento de uma “nova esquerda”, jovem, generosa e brilhante – embora fragmentária pelos seus pleitos identitários mal resolvidos, que aparecem tanto como desligadas das experiências revolucionária ou reformistas-democráticas na América, como também sem base popular com a capacidade de resistência análoga a dos velhos tempos.

Vicente Navarro, um dos grandes estudiosos do percurso social-democrata e da evolução das disputas em torno do Estado e Bem-Estar mostrou, ao longo do seu percurso intelectual, que as alternativas dos Estados Unidos na era Reagan – por exemplo – não se configuraram como uma disputa entre “keynesianismo social” X “estratégias neoliberais”, mas sim uma disputa entre um “keynesianismo militar” X “keynesianismo social” (base histórica da concepção social democrata do século passado), ambas políticas fundadas na intervenção do Estado na economia.

Mas as políticas de Ronald Reagan “tinham ido mais além do keynesiano clássico”, pois as suas políticas bélicas de gendarmeria mundial fortaleceram pesadamente a intervenção estatal, principalmente na indústria militar, procedendo uma forte intervenção do Estado na economia, afastando-se de um governo liberal em sentido clássico para fazer um governo “intervencionista”, modernizando (pela mão direita) o keynesianismo e aumentando as tensões das guerras imperiais.

Geoff Eley no seu clássico Forjando a democracia mostra que antes de 1914 a base militante da social-democracia na Europa tinha aproximadamente dois milhões de militantes, sendo que somente na Alemanha tinha um milhão de adeptos, predominantemente entre os pobres, desempregados, operários, estudantes e na intelectualidade. Com o início do falecimento da II Internacional, iniciada na Conferência de Zimmerwald em setembro de 1915 – em função das divergências de princípio sobre a atitude da socialdemocracia sobre a Guerra Mundial inter imperialista – a vitória da Revolução na Rússia em 1917 e a transformação do Partido Operário Social-Democrata Russo em Partido Comunista, a socialdemocracia e os movimentos comunistas iniciam os seus caminhos, separados na história.

Nos tempos presentes – marcados pelas derrotas e sucessos relativos de ambas as experiências – surge um novo desafio civilizatório: num tempo de bloqueio, tanto da democracia como de uma revolução, com a perda da força moral e política da social democracia diante do avanço neoliberal e do desastre da experiência burocrática soviética, junto com a emergência dos novos polos de poder geopolítico do mundo e o avanço do fascismo.

Como fundir – num amplo movimento em torno do desejo do bem-estar, da paz e da regeneração da política como instrumento de luta pela igualdade e pela dignidade humana – o Estado social com liberdades políticas, segurança continental com soberania popular, República com liberdades políticas irrevogáveis? A resposta é a tarefa de “casa” que este Projeto PNUD\ONU se associa com outros pontos de apoio, públicos e privados, que existem em todo mundo, que não dissociam a democracia do progresso social e que jamais aceitarão o fascismo e a guerra como solução para os problemas da humanidade.

São utópicos, dirão alguns. Bem, poderemos responder: “nem mais nem menos do que buscar um paraíso comunista ou uma social-democracia perfeita, que pretendia inaugurar uma época de paz e solidariedade humana, baseada principalmente no “bom senso” negocial das elites políticas das classes privilegiadas.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Luís Fiori Tarso Genro Carlos Tautz Celso Frederico Julian Rodrigues Henri Acselrad Gilberto Lopes Alexandre de Lima Castro Tranjan Paulo Capel Narvai Boaventura de Sousa Santos Annateresa Fabris Sergio Amadeu da Silveira Alexandre Juliete Rosa Salem Nasser Francisco de Oliveira Barros Júnior Eugênio Bucci Airton Paschoa João Feres Júnior Sandra Bitencourt Bernardo Ricupero Tales Ab'Sáber Yuri Martins-Fontes Caio Bugiato João Lanari Bo Eugênio Trivinho José Machado Moita Neto Paulo Nogueira Batista Jr João Adolfo Hansen Marilia Pacheco Fiorillo Paulo Martins Milton Pinheiro Fernando Nogueira da Costa Heraldo Campos Paulo Sérgio Pinheiro Antonio Martins Henry Burnett Liszt Vieira João Carlos Loebens Luiz Renato Martins José Raimundo Trindade Eduardo Borges Otaviano Helene Bento Prado Jr. Lincoln Secco Jean Pierre Chauvin João Sette Whitaker Ferreira Jean Marc Von Der Weid Andrew Korybko Ronald León Núñez Antonino Infranca Luiz Marques Ricardo Musse Leonardo Boff Juarez Guimarães Marcos Aurélio da Silva Chico Alencar Ronaldo Tadeu de Souza Alexandre de Freitas Barbosa Luiz Roberto Alves Chico Whitaker Eleonora Albano Celso Favaretto Vanderlei Tenório Marcelo Guimarães Lima Elias Jabbour Kátia Gerab Baggio Tadeu Valadares Andrés del Río Flávio Aguiar Walnice Nogueira Galvão Osvaldo Coggiola Michel Goulart da Silva Matheus Silveira de Souza Everaldo de Oliveira Andrade Alexandre Aragão de Albuquerque Vladimir Safatle Daniel Costa André Márcio Neves Soares Luiz Werneck Vianna José Dirceu Gilberto Maringoni Manchetômetro Ricardo Abramovay Flávio R. Kothe Afrânio Catani Ricardo Antunes Eleutério F. S. Prado Luis Felipe Miguel Marcelo Módolo Luiz Carlos Bresser-Pereira Francisco Fernandes Ladeira Bruno Fabricio Alcebino da Silva Érico Andrade Manuel Domingos Neto Mário Maestri Luciano Nascimento Lucas Fiaschetti Estevez Alysson Leandro Mascaro João Carlos Salles Atilio A. Boron Dênis de Moraes Anselm Jappe Daniel Brazil André Singer Luiz Bernardo Pericás Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Francisco Pereira de Farias Luís Fernando Vitagliano José Geraldo Couto Renato Dagnino Priscila Figueiredo Marcos Silva Fábio Konder Comparato Slavoj Žižek Jorge Branco Ronald Rocha Igor Felippe Santos Rafael R. Ioris Michael Roberts Armando Boito Mariarosaria Fabris Fernão Pessoa Ramos José Costa Júnior Rodrigo de Faria Daniel Afonso da Silva Marjorie C. Marona Marilena Chauí Luiz Eduardo Soares Plínio de Arruda Sampaio Jr. Leonardo Sacramento Leonardo Avritzer Bruno Machado Jorge Luiz Souto Maior Denilson Cordeiro Antônio Sales Rios Neto Ari Marcelo Solon João Paulo Ayub Fonseca Claudio Katz Remy José Fontana Eliziário Andrade Rubens Pinto Lyra Berenice Bento José Micaelson Lacerda Morais Ricardo Fabbrini Paulo Fernandes Silveira Gabriel Cohn Vinício Carrilho Martinez Lorenzo Vitral Benicio Viero Schmidt Leda Maria Paulani Maria Rita Kehl Michael Löwy Samuel Kilsztajn Ladislau Dowbor Marcus Ianoni Gerson Almeida Carla Teixeira Thomas Piketty Dennis Oliveira Valerio Arcary

NOVAS PUBLICAÇÕES