Por DANIEL AFONSO DA SILVA*
O destino do planeta talvez dependa menos da solução do impasse russo-ucraniano e mais da superação do cinismo norte-americano
A nova fase da tensão russo-ucraniana vai aos poucos se inscrevendo no tempo, no espaço e no imaginário contemporâneos. Europeus educados tipificam-na como guerra e entendem ser uma guerra inédita no espaço europeu desde 1945 porque, verdadeiramente, desde as ruínas da segunda grande guerra do século XX que conflitos regulares de alta intensidade não tinham lugar por ali.
Africanos, euroasiáticos e médio-orientais, ambientados em guerras civis, identitárias, religiosas, sentimentais, econômicas, climáticas, comerciais, emocionais, coloniais e pós-coloniais desde a noite dos tempos, continuam considerando a situação russo-ucraniana como uma tensão, podendo ser, no limite, uma guerra por procuração, mas jamais uma guerra com a gravidade que europeus e afins propõem.
Norte-americanos, notadamente estadunidenses, continuam alimentando o insistente cinismo e a inconsequente irresponsabilidade de cutucar urso com varas curtas para afugentar o panda taciturno no objetivo de negacear que a guerra de verdade segue sendo pela hegemonia sobre o sistema internacional. Latino-americanos (brasileiros inclusos) fazem bem em não saber muito bem do que se trata – se guerra ou tensão – e somente os mais afoitos dizem abertamente se tratar de uma guerra enquanto o presidente Lula da Silva, liderança política e diplomática mais importante da região, sabe melhor que ninguém que, nesses casos de tensão, o melhor a se fazer segue sendo nada se fazer.
Independente da avaliação, posicionamento ou orientação, vai consenso que o prolongamento dessa indisposição em querelas entre Moscou e Kiev já representa o maior turning point do meio internacional contemporâneo. Pela primeira vez após 1945 virou latente a olhos nus que o arranjo multilateral saído da Segunda Guerra Mundial e afirmado após a dissolução do bloco soviético em 1989-1991 perdeu a essência da sua natureza e a densidade da sua legitimidade. Deixou de se ser razoável respeitar tudo que ele passou a representar.
Quando o presidente Richard Nixon insistiu em sair dos acordos de Bretton Woods em 1969-1971, parte importante do Sistema Monetário Internacional entrou numa entropia irrecuperável que geraria a síndrome das “décadas perdidas” em todos os continentes a partir de 1979-1982 e chegando ao seu ápice na crise financeira mundial de 2008 que ainda não foi inteiramente superada.
Quando o presidente George W. Bush insistiu em desrespeitar o veto francês no Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a intervenção no Iraque em 2003, a credibilidade da mais importante instituição da arquitetura internacional sofreu fraturas irremediáveis que continuam forjando a sua erosão.
Quando a bien-pensance do filósofo Bernard-Henri Lévy convenceu o agitado presidente Nicolas Sarkozy a persuadir os seus homólogos na Inglaterra e nos Estados Unidos a promover o regime change na Líbia do coronel Gaddafi, o conceito de “responsabilidade ao proteger” foi usado, abusado e violentado em todas as suas frentes para justificar um dos maiores crimes humanitários de todos os tempos que representa a anomia na Líbia e a transformação do Mediterrâneo no maior cemitério de flagelados a céu aberto do mundo e da história.
Talvez não seja o caso de se rememorar o bate-cabeça da Organização Mundial da Saúde durante a pandemia de Covid-19 no biênio de 2020-2021 tampouco a inutilização da Organização Mundial do Comércio desde bem antes. Mas é de se anotar que quando a nova fase da tensão russo-ucraniana começou em 2022 era o que se faltava para se virar a página do mundo criado por Roosevelt, Churchill, Stálin, De Gaulle e afins e consolidado por Reagan, Gorbatchev, Mitterrand e afins.
A perversidade da coerção e do constrangimento ocidentais sobre o restante do mundo recebeu a sua revanche incontestável quando quase ninguém se permitiu endossar as sanções contra a Rússia do presidente Vladimir Putin idealizadas por norte-americanos, europeus e afins. Essa revanche tem raízes profundas e já distantes no tempo, mas, como foi feita, abriu um caminho sem volta para algo bem diferente do que por agora se conhece.
Os norte-americanos e europeus – ocidentais, portanto – foram golpeados quase de morte e parece estar fazendo estragos como nunca se fez. Em contrário, veja-se.
Ao desmoralizar os acordos de Bretton Woods nos anos de 1970, os norte-americanos e os demais ocidentais provocaram a fúria dos produtores de petróleo, especialmente médio-orientais. Mas não só. Ao implantar o ultraliberalismo como sinais dos tempos nos Estados Unidos do presidente Ronald Reagan e na Inglaterra da primeiro-ministro Margaret Thatcher, em 1979, mesmo com a eleição do presidente socialista François Mitterrand, na França, em 1981, esses ocidentais todos internalizaram uma laissez-faire jamais imaginado. Esse laissez-faire, imantado na famosa “mondialisation heureuse”, permitiu a emergência sorrateira de verdadeiros monstros tipo China, Índia, Brasil, México, Indonésia e afins. Países todos grandes demais para ruir. Fortes demais para continuar sendo intimidados. E valorosos o bastante para renovar a integralidade do sistema internacional saído de 1945.
A obsessão dos norte-americanos pelos médio-orientais após o 11 de setembro de 2001, permitiu a afirmação de todos esses países no cenário mundial. O ingresso da China na Organização Mundial do Comércio em fins de 2001 promoveu fissuras imensas e irreversíveis em toda a arquitetura de sua cena econômica. Pouco a pouco, o histórico não-alinhamento dos países do G77 foi se modernizando nos formatos IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China – depois África do Sul) e, por fim, o G20 liberado pelos BRICs. Numa velocidade alucinante, esses outrora “países exóticos” projetavam aquinhoar 50% do PIB mundial em poucos anos. Ninguém na Europa nem nos Estados Unidos ficou satisfeito com esse feito.
Seria confiança demasiada em teorias da conspiração acreditar que as crises crônicas vividas em todos esses países do futuro nos anos de 2010 foram produzidas por norte-americanos e europeus para desestabilizá-los. Mas seria inteiramente desbaratado desacreditar completamente nas dimensões concretas dessas considerações.
Lá no início do século, o presidente George W. Bush forjou uma guerra ao terror sob o pretexto de salvar a democracia, o Mundo Livre e o Ocidente. No ano de 2009, o presidente Barack H. Obama, em seu famoso discurso do Cairo, prometeu um “um recomeço” sadio nas relações entre ocidentais, africanos e médio-orientais e, em 2013, ele próprio, Barack H. Obama, estabeleceu uma “red line” para o presidente Bashar al-Assad. Toda a sanha do presidente Donald J. Trump em recuperar os adágios America First e Make America Great Again foi para endossar a democracia, o Mundo Livre e o Ocidente endeusados pelos seus antecessores. O presidente Joe Biden faz o mesmo, mas com tom dissimulado. E todos sabem.
A guerra ao terror do presidente George W. Bush resultou na maior brutalização de relação entre civilizações desde 1914. O discurso do Cairo do presidente Barack H. Obama animou nada menos que a Primavera Árabe que se revelou na maior pantomima de todos os tempos resultando no falacioso regime change na Líbia do coronel Gaddafi, no interminável quebra-queixo no Egito, na insustentabilidade da situação na Tunísia, no Bahrein e na Costa do Marfim, todas as externalidades negativas de escaramuças sem fim vividas no Sahel – notadamente, no Mali – e na verdadeira ausência de graça de uma Síria conflagrada e sem esplendor de Palmira.
O mesmo presidente Barack H. Obama que mandou eliminar Osama Bin Laden no Paquistão em maio de 2011 e prometeu ao mundo inteiro esmagar o presidente Bashar al-Assad, ao levar a função presidencial a um descrédito jamais visto no Ocidente, lançou as bases sustentáveis para a emergência do trumpismo.
Quando o presidente Donald J. Trump tomou conta da situação, ele prometeu não mentir, mas mentiu mais que quaisquer de seus antecessores, e prometeu não malversar a função presidencial, mas só e apenas só isso que ele fez.
Mas cumpre reconhecer que o presidente Donald J. Trump foi menos cínico e dissimulado que seus antecessores e que seu sucessor. A diferença nuclear de sua postura ao encontro da de seus homólogos era que ele dizia de modo bruto e grosseiro o que o presidente Barack H. Obama, presidente George W. Bush ou o presidente Joe Biden diziam e diz de modo educado, sereno e pomposo.
Ninguém nos Washington seguiu valorando a integralidade da relação transatlântica depois que os franceses disseram “não” francês à invasão do Iraque em 2003. Ninguém na Casa Branca nem no Pentágono nutria interesses em seguir protegendo a segurança vital dos europeus via OTAN sem a contrapartida da lealdade irrestrita afiançada no início da interação. Ninguém nos famosos think tanks norte-americanos suportava a presença do Reino Unido na União [desunida] Europeia.
Enquanto o presidente George W. Bush e o presidente Barack H. Obama diziam isso a portas fechadas apenas para constranger ou coagir, o presente Donald J. Trump dizia à luz do dia e para todo mundo ouvir.
Deu no que deu: ele, Donald J. Trump, foi tornado o presidente norte-americano mais detestado entre as “almas boas” do Ocidente na Europa, nos Estados Unidos e afins. Para “salvar” o mundo e lhe suceder, escolheu-se o presidente Joe Biden.
O antigo senador e vice-presidente da presidência Barack H. Obama transita pelo cinismo norte-americano com mais destreza que qualquer locatário da Casa Branca neste século. Uma vez no poder, sua função foi retomar as questões centrais da grand strategy para manter a hegemonia sobre os negócios do mundo. Mesmo que para isso fosse necessário eliminar concorrentes. Como não conseguiram destronar imediatamente a China, continuaram agredindo os insubmissos aliados da China estando a Rússia em primeira posição, pois sabe-se bem quem sabe das coisas que da Rússia e da China se desenham os novos tempos do mundo.
O triste impasse entre Kiev e Moscou inaugurado pela contraofensiva russa em 24 de fevereiro de 2022 permite aos norte-americanos respirar, descansar e meditar. O “compromisso suportável” imaginado pelos europeus para pôr fim à contenda deixou de ter sentido tão logo foi proposto. Muitos ucranianos foram convencidos a virar ocidentais e nenhum russo está disposto a permitir tamanha profanação da cultura eslava. Em suma: guerra sem fim.
To be, or not to be, that is the question.
O destino do planeta talvez dependa menos da solução do impasse russo-ucraniano e mais da superação do cinismo norte-americano que corrói as suas vísceras e a paciência de todos nós.
*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ). [https://amzn.to/3ZJcVdk]
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