Por LUIGI BIONDI, TERCIANE ÂNGELA LUCHESE, VALÉRIA DOS SANTOS GUIMARÃES*
Apresentação, pelos organizadores, do livro recém-lançado
Resultado de pesquisas de integrantes do Grupo Transfopress Brasil – Grupo de Estudos da Imprensa em língua estrangeira no Brasil, que por sua vez é parte da rede internacional Transfopress – Transnational network for the study of foreign language press, idealizada e coordenada por Diana Cooper-Richet (CHCSC-UVSQ), esta é a segunda obra sobre o tema e demonstra o fôlego e pertinência de uma cooperação iniciada em 2012. Para o presente volume, colegas se uniram no esforço de desdobrar as primeiras incursões de pesquisa sobre um vasto corpus, até então e em grande parte, mal conhecido e raramente tratado sob tal perspectiva (Luca; Guimarães, 2017).
O leitor encontrará nas páginas a seguir uma série de análises sobre uma das facetas da história da imprensa brasileira: o estudo da imprensa alófona. Mais que outros recortes, a opção pelo trabalho com objeto tão preciso propicia um duplo movimento metodológico: um olhar voltado ao local em que jornais e revistas em língua estrangeira foram publicados (ou seja, a nação brasileira) e uma abordagem que não se restringe a uma história nacional, uma vez que tais veículos de comunicação são, por definição, fruto de empreitada que envolve diferentes referências culturais postas em contato.
A primeira consequência de tal opção é que este não é um livro sobre a história da imprensa imigrante do Brasil. Se o tema da imigração é incontornável, dada a natureza do objeto de pesquisa, restringir o estudo proposto à questão das singularidades étnicas é impreciso e inapropriado. Uma prova disso é que já em 1827 constam jornais publicados em língua estrangeira na Corte, muito antes do período conhecido como a “grande imigração”, na passagem do século XIX para o XX. Com a entrada massiva de estrangeiros, a atividade parodística alófona conheceu um aumento sem precedentes, embora nem sempre tenha se constituído uma consequência direta do número de imigrantes, como o caso espanhol comprova.
Enquanto italianos e alemães publicaram centenas de títulos dos mais variados segmentos e tendências, por exemplo, ou grupos imigrantes minoritários no Brasil como franceses e ingleses mantiveram regularidade na produção de jornais e revistas em seus idiomas, não houve uma expressiva quantidade de jornais ou revistas em castelhano, a despeito de os espanhóis serem, por um largo período de tempo, o terceiro maior grupo imigrante no país, perdendo apenas para italianos e portugueses.
A segunda consequência liga-se, assim, à primeira: o foco não está na comunidade imigrante e suas idiossincrasias, para o que há enorme e competente produção, mas nas interações e conexões entre as pessoas e instituições por meio de uma prolífica produção cultural que encontrou no impresso periódico uma das principais expressões. O ponto de partida para a análise passa a ser esse espaço cultural compartilhado para o que as restrições impostas pelas fronteiras nacionais se tornam menos relevantes em detrimento das interações, apropriações e recusas.
Faz-se, assim, necessário pensar no que Saunier chamou de uma “história numa perspectiva transnacional”. O conceito de transnacional encontra no estudo do impresso periódico alófono objeto privilegiado de observação, uma vez que este se assenta sobre três pilares: a natureza dos periódicos em geral votada à difusão massiva, cuja capacidade foi ampliada com a contínua modernização de técnicas de impressão (ainda que nem sempre isso ocorra, um jornal normalmente é pensado para ter a maior tiragem possível); a vocação globalizante, sobretudo a partir do século XIX, com o incremento dos meios de transporte que propiciou a crescente mobilidade de pessoas, mercadorias e ideias em escala planetária; e, o que torna singular a imprensa alófona, a manutenção dos vínculos internacionais atuando como traço de união entre países e culturas, homens de letras, sua produção intelectual e leitores.
Mas se a ênfase das análises apresentadas no presente livro se dá nas conexões transnacionais propiciadas pelos impressos periódicos alófonos e na sua recepção, o encontro com os vestígios deixados pelas diversas comunidades de migrantes estrangeiros é praticamente inevitável, sobretudo no período dos grandes fluxos migratórios, como na passagem do século XIX para XX. Daí que a perspectiva transnacional também é uma chave de análise das identidades instáveis que se formam em resultado do complexo processo de fixação desses grupos.
Pode-se definir, em linhas gerais, o procedimento metodológico: “[…] reconstrução e contextualização das interconexões históricas entre unidades de compreensão histórica, avaliação da linha borrada entre o estrangeiro e o doméstico dentro destas unidades e captura e registo dos processos, atores e eventos que viveram e entre estas unidades”. (Saunier, 2013, p.136)
Isto posto, o que se tem é que as diversas contribuições, que também se movimentam dentro do vasto âmbito do tema das migrações internacionais, abordam, utilizam e estudam os periódicos alófonos por meio de tais dinâmicas, para além de uma interpretação estritamente étnica ou etnonacional.
Desse modo, não se pretende negar ou diminuir a importância das configurações e declinações da etnicidade dos migrantes no complexo processo dialógico e também conflituoso de sua multifacetada construção identitária nacional entre seus países de origem e o Brasil, mas se quer mobilizar as pesquisas para evidenciar como o contexto brasileiro hospedou, interagiu, ressignificou a experiência da escrita jornalística e do fazer-se dos impressos alófonos, que certamente tinham suas bases sociais e culturais de recepção fortemente definidas pelo circuito étnico, ainda que esse operasse numa perspectiva transnacional e global.
Afinal, os e/imigrantes, sobretudo os mediadores elaboradores dos jornais, se pensavam e se relacionavam em diversos lugares ao mesmo tempo, num plano global construído pela intersecção concreta de redes conectadas de forma diferenciada, onde os impressos jogam um papel ativo na sua construção e manutenção.
O jornal era para estes um elemento de fundamental pedagogia identitária nacional, que atravessava as diversas composições sociais dos elaboradores e dos leitores. Pedagogia no sentido de uma atividade de formação cultural tout court veiculada por um conjunto elaborado de valores propostos pelos jornais. Assim, ao lado da grande imprensa alófona, temos a imprensa alófona “de classe”, entendendo aqui a dos trabalhadores imigrantes ligados a grupos políticos e sindicatos que marcaram fortemente o mundo da expressão escrita política no Brasil, apesar das eventuais dificuldades de interação entre militantes de diversas origens nacionais e os locais.
O estudo de “áreas culturais”, das intersecções, evidencia o papel exercido pelos vetores das transferências, os passeurs culturels, no sentido que dá Michel Espagne (2017).
Ao percorrer as páginas do presente livro, o leitor se deparará com a análise de mediações e mediadores em que num sentido restrito se pode pensar numa “difusão instituída de saberes e informações” ou em um sentido amplo como “inventário dos ‘passadores’, dos suportes veiculares e dos fluxos de circulação de conceitos, de ideais e de objetos culturais” (Rioux, 1998, p. 21).
A perspectiva interdisciplinar está presente nas análises, e os mediadores culturais são pensados como sujeitos ativos, mobilizados e mobilizadores de transferências culturais, concretizadas por meio da produção, circulação, distribuição e na recepção dos jornais, entendidos como produtos ou bens culturais. Tais agentes desempenham um papel crucial no processo de adaptação de saberes, elaboração de repertórios e trocas culturais. Medeiam informações, disseminam modos de vida, ideias e saberes contextualizados, constituem redes e trocas.
É na perspectiva transnacional, promovendo trocas e negociações que os migrantes empreendem, em diferentes condições e por motivações distintas, a fundação de um periódico. Os periódicos são marcados pela cultura (para além da língua) dos lugares de origens de seus editores e responsáveis pela sua produção, mas justamente por serem publicados no Brasil e aqui circularem e serem consumidos (Certeau, 1994), são apropriados pelo entorno e negociam sentidos e significados.
Porque permite uma construção complexa da informação que garante, por sua vez, a circulação e, portanto, sua possível atualização, o impresso dá às sociedades ocidentais que o dominam uma ferramenta decisiva para se impor ao nível mundial; sua capacidade se mede em termos de construção de conhecimento, de representações e, em última instância, de poder (Barbier, 2015). Daí sua importância e centralidade como órgãos de representação sobretudo no período em que a mídia impressa predominava.
É nessa perspectiva, entre os cruzamentos multidisciplinares de uma história social e cultural, que os autores mobilizaram um arsenal de referências provenientes dos desdobramentos da história comparada e da história global lançando mão de conceitos como transnacional, trocas culturais, conexões, olhares cruzados, transferências culturais e mediação, entre outros.
A divisão do livro corresponde a tais orientações. Amadurecida a proposta da primeira fase do projeto, os resultados das pesquisas do segundo triênio de seu desenvolvimento são articulados em torno de amplas áreas temáticas em lugar de recortes linguísticos ou cronológicos: cultura transmidiática, mediações políticas, olhares cruzados, processos identitários e educação.
A primeira seção é composta pelas duas primeiras partes. Na Parte I – Narrativas Transmidiáticas: imprensa e cultura, são analisados periódicos franceses e italianos em seu diálogo com outras mídias e linguagens, como o teatro, a literatura e as artes plásticas. A “civilização do jornal” (Kalifa; Régnier; Thérenty; Vaillant, 2011) que emerge no século XIX foi marcada pela indefinição e deslizamento de gêneros e temas. Na imprensa alófona publicada no Brasil não foi diferente. A intensa circulação de matrizes e modelos, a despeito dos descompassos técnicos, era ainda mais notável nos veículos publicados por grupos de imigrantes.
Estes se mantinham muito articulados com os grupos da imprensa local, não raro saídos dos proeminentes quadros intelectuais e políticos nacionais. Ao mesmo tempo, o savoir-faire e referências que trouxeram de seus países de origem, bem como o diálogo constante com conterrâneos, são fatores que acentuaram a adoção de estilos forâneos, o que teve impacto direto no desenvolvimento da atividade periodística nacional como um todo.
Monica Pimenta Velloso explora em seu texto “Figaro-Chroniqueur (1859): migrações transmidiáticas de um personagem” justamente esse aspecto lúdico e literário da petite presse franco-brasileira do século XIX por meio da análise do satírico Figaro-Chroniqueur, redigido provavelmente pelo francês Altève Aumont sob o pseudônimo de Arthur du Mouton. Como a autora destaca, a dimensão satírica da narrativa do jornal é tocada pela tradição oral do riso e da ironia, da linguagem das ruas, do cabaré e do teatro, estabelecendo uma sintonia com o público leitor e fazendo do jornal um suporte privilegiado para tais deslocamentos de gêneros da escrita. Além disso, o Figaro-Chroniqueur é um bom exemplo de órgão que não se resume à mera representação de um grupo étnico, o que corrobora algumas das questões acima expostas.
Nesse sentido, o texto de Valéria dos Santos Guimarães “Imprensa franco-brasileira e redes intelectuais no entreguerras: o caso da Revue Française du Brésil (RJ, 1932-1939)” também defende que, mais que uma publicação de representação de uma comunidade estrangeira, a Revue Fraçaise du Brésil foi um espaço aberto para a intelectualidade brasileira proveniente dos quadros conservadores, como Alceu Amoroso Lima. A hipótese é que tal associação se deu pela necessidade de sobrevivência da publicação em meio às investidas do governo autoritário. Escreviam professores e intelectuais brasileiros e estrangeiros residentes ou não no Brasil, bem como intelectuais vinculados à Academia Brasileira de Letras e outras instituições formais que mantinham contatos na França, constituindo redes transnacionais de intelectuais tanto do jornalismo quanto das letras e belas-artes.
O tema das intersecções entre o mundo das letras e da crescente cultura midiática é retomado por Yuri Cerqueira do Anjos em “Entre vínculo e disjunção: literatura e contexto no Courrier du Brésil (RJ, 1854-1862)”. Ele bem demonstra como o jornal em questão, editado por um grupo de proscritos, os quarante-huitards, e em constante polêmica tanto com brasileiros como com outros núcleos de franceses devido à defesa de ideais republicanos em pleno Segundo Império brasileiro, se utiliza de recursos da ficção em diversas narrativas, de efemérides a denúncias sociais, passando por querelas políticas.
De acordo com a hipótese do autor, além de se constituir um fenômeno comum na imprensa do século XIX – e, pode-se dizer, que em muitos casos também no século XX –, o deslizamento entre os gêneros narrativos operava a dupla função de ampliar o alcance da mensagem e legitimar a discussão que ocorria nas primeiras páginas, onde o conteúdo político prevalecia.
No capítulo de Vera Maria Chalmers, “Gigi Damiani: um autor de folhetim ficcional anarquista”, a estudiosa também analisa uma narrativa ficcional, o romance folhetim L’Ultimo Sciopero. Seu autor, Gigi Damiani, não se tratava propriamente de um literato. O conhecido italiano que animava os grupos anarquistas de Curitiba e São Paulo e que, anos depois, se tornou um dos protagonistas da greve geral paulista de 1917 era um ativista político e jornalista. Seu folhetim se inseria na tradição da literatura política e do romance social, gênero formador e amplamente difuso no meio militante operário desde o clássico de Zola, Germinal.
A autora explora de forma original o topos narrativo do judeu errante, evidenciando as contaminações dialógicas advindas da circulação de leituras, mediadas pelas experiências transnacionais de formação política dos militantes libertários entre o fim dos Oitocentos e o começo dos Novecentos.
Na Parte II – Mediações políticas: redes transnacionais e conflitos, articulam-se textos que destacam as tensões políticas subjacentes a determinadas discussões que extrapolam as fronteiras dos países de origem para serem reapropriadas e redimensionadas no contexto de recepção.
Angelo Trento, em “As redações na trincheira: a imprensa italiana no Brasil na Primeira Guerra Mundial”, apresenta um panorama aprofundado da imprensa de língua italiana no Brasil com um olhar apurado sobre as fissuras internas da numerosa coletividade italiana espalhada no país durante o primeiro conflito mundial. A imprensa periódica arregimenta grupos diversos, sujeitos ativos da articulação e veiculação de seus debates, propostas e mobilizações em um momento crítico do processo de integração dos italianos na sociedade brasileira, quando muitos imigrantes haviam fixado raízes, mas ainda estavam sujeitos à forte influência acerca dos posicionamentos tomados pela Itália, inclusive em relação à guerra.
Nacionalismo e internacionalismo, pacifismo e belicismo, monarquismo e republicanismo são analisados dentro do embate específico do neutralismo versus intervencionismo, que ecoa no Brasil por meio da circulação de ideias propiciadas pela imprensa alófona, redimensionando as múltiplas noções identitárias para além dos limites do Reino da Itália.
No capítulo “La Scure – Giornale di Lotta (São Paulo, 1910): imprensa, imigração e circulação de ideias na construção de um sindicalismo transnacional” dedicado ao jornal sindicalista do título, a autora Edilene Toledo empenha-se na abordagem de fenômeno semelhante, mas pela chave das tensões inerentes à luta do movimento operário organizado do começo do século XX.
Ela explora as dinâmicas transnacionais que esse impresso periódico em italiano coloca em curso por meio da mediação cultural e política de seus redatores, possibilitando a efetiva construção do sindicalismo revolucionário como movimento global. Aqui também o jornal é visto como elemento social demiúrgico sem o qual não é possível a circulação de ideias e experiências num plano internacional necessárias para a formação de culturas políticas globais.
Luigi Biondi apresenta na sua contribuição “La Battaglia: jornal, o grupo e as redes étnicas anarquistas (1904-1913)” a trajetória histórica do jornal homônimo, visto a um só tempo como órgão de um grupo político, agregador e coordenador de redes de militância libertária. As trajetórias biográficas dos redatores e sua intersecção com o principal conjunto militante dos leitores e apoiadores do jornal no Brasil, grupo este caracterizado por suas origens regionais italianas comuns, se juntam ao estudo dos temas e campanhas veiculadas pelo semanário com o objetivo de evidenciar criticamente os limites, as tensões, mas também as vantagens do circuito étnico transnacional que possibilitou a excepcional e prolongada experiência desse impresso periódico icônico da história do movimento operário no Brasil.
Os jornais alófonos do movimento operário são entendidos aqui na sua dupla e paradoxal acepção: de um lado, elementos de difusão de ideias e de fortalecimento organizativo de certos grupos políticos em uma fase inicial de inserção dos imigrantes na nova sociedade, quando ainda a língua local não é familiar e a volta ao país de origem é uma opção aparentemente possível, pelo que é fundamental manter e definir também um determinado espaço étnico; de outro lado, são eles também os veículos impressos mais contundentes na negação do nacionalismo e mais frequentemente da construção identitária nacional realizada no exterior.
A esse tema é dedicada uma parte importante das contribuições do livro, sendo incontornável não somente no campo dos estudos migratórios, mas também no da imprensa alófona em um país marcado por intensas heterogeneidades culturais como o Brasil.
Ainda nessa parte, em “Imprensa ídiche no Brasil durante o século XX: preservação e guarda” de Lucia Chermont, é apresentado um panorama inédito sobre a imprensa em ídiche no Brasil com base nas poucas pesquisas anteriores e em um levantamento minucioso em acervos. Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo são os espaços privilegiados na análise, além de a autora indicar a existência de um periódico em Salvador.
Foram 65 mil judeus que entraram no Brasil no período da grande imigração e em sua imprensa as referências aos conflitos europeus e às tensões dentro da comunidade emigrada são constantes, deixando claro como eram latentes as vicissitudes às quais esses grupos estavam expostos. A vocação transnacional da comunidade judaica em muito se assemelha ao movimento operário e a imprensa é, indubitavelmente, o fator de mediação central a integrar uma população de origem tão diversa espalhada pelas várias partes do mundo.
Na segunda seção, a Parte III – Mediações além das fronteiras: o Brasil sob olhares cruzados inicia com Isabel Lustosa percorrendo as páginas de um dos primeiros jornais publicados em língua estrangeira no Brasil, o francês L’Écho de L’Amérique de Sud, no texto “A honra dos brasileiros ofendida em um jornal francês de 1828”. O olhar francês sobre “os (maus) hábitos das famílias brasileiras abastadas”, o que se daria pela falta de contato com referências de civilização, obviamente identificadas com a cultura hexagonal.
No sentido contrário, a representação que é feita dos franceses em reação às críticas não é mais lisonjeira e instaura-se, assim, uma enérgica polêmica que caracterizava a imprensa pasquineira de então, envolvendo parte da imprensa carioca, inclusive a franco-brasileira. A linguagem ficcional novamente permeia o texto do jornal, ironia e crítica se unem na sátira aos costumes locais e colocam no centro da reflexão da autora a questão desse olhar estrangeiro do qual a imprensa francófona é também suporte.
Tania Regina de Luca, por sua vez, segue a trajetória do editor do jornal Le Gil-Blas em “Émile Deleau: em busca de uma trajetória de vida”. Também parte dos satíricos da petite presse franco-brasileira, Le Gil-Blas era assinado na verdade por Fantasio (pseudônimo de Émile Deleau) que substitui a polêmica folha pelo importante e noticioso Le Messager du Brésil. Essa trajetória garantiu-lhe conhecimento e prestígio nos meios da sociedade carioca, laços consistentes com grupos da Gazeta de Notícias a ponto de, de volta a Paris, Deleau se tornar correspondente desse importante jornal brasileiro lançando mão do fato de ser francês e bem conhecer o Brasil, rendendo uma representação bastante amigável da vida de sua antiga terra de acolhida.
Antonio de Ruggiero e Tamara Zambiasi em “O jornal semanal La Patria Italo-Brasiliana e seus almanaques: a construção de uma identidade coletiva entre os imigrantes italianos do Rio Grande do Sul (1916-1931)”, ao apresentar o percurso do semanário La Patria Italo-Brasiliana de Porto Alegre e de seus almanaques, refletem sobre a construção de uma identidade nacional evidentemente adjetivada pela experiência migratória que representa a proposta específica do jornal ítalo-gaúcho surgido no período conturbado da Primeira Guerra Mundial.
Seu editor Vicente Blancato, polígrafo que alçou posição de destaque na sociedade gaúcha, constituiu-se como um mediador lançando mão do prestígio dos italianos então associados aos signos da modernidade. Por meio de seu jornal e almanaque, Blancato concorreu para consolidar a representação de “uma ‘italianidade’ estereotipada”, de cunho nacionalista, em meio à tensão da guerra. O olhar estrangeiro para o país se dá tanto pela afirmação identitária como pela integração.
Em “Intelectuais nipo-brasileiros nos jornais em língua japonesa do pós-guerra (1946-1970)”, de Monica Setuyo Okamoto, o tema da mediação que ressignifica identidades novamente se faz presente na análise por meio da atuação de alguns dos seus mais destacados jornalistas e intelectuais, caso de Hideo Onaga, José Yamashiro e Hiroshi Saito que atuaram nos impressos São Paulo Shimbun (Jornal São Paulo, 1946-2018) e Paulista Shimbun (Jornal Paulista, 1947-1998), entre outros.
Proibidos durante o Estado Novo, os periódicos em língua japonesa voltavam a ser publicados em meio ao tenso clima do pós-guerra em que a polarização entre “vitoristas” (que acreditavam na vitória japonesa na Guerra, representados de forma emblemática pela associação Shindô-Renmei), de um lado, e, de outro, “derrotistas” (que reafirmavam a rendição e eram comprometidos com a informação oficial) expunha os conflitos entre as representações acerca do Japão e dos japoneses fora e dentro do Brasil.
A orientação ultranacionalista e fascista professada na educação japonesa das primeiras gerações foi questionada pelos “derrotistas” em defesa da maior inserção na sociedade de acolhida. Isso expôs o conflito de gerações como fator importante e relacionado à polarização da comunidade e à polêmica do “abrasileiramento” dos mais jovens, nem sempre bem visto. Daí a importância do grupo de jovens nikkeis, descendentes de japoneses, em sua atuação mediadora no redimensionamento da identidade nipo-brasileira não só por meio dos jornais em língua japonesa, mas também pela sua atuação na imprensa brasileira. Eram eles mais adaptados à sociedade e cultura brasileiras, bem formados, uma verdadeira elite erudita, e ajudaram a moldar um imaginário que encontra eco ainda hoje.
E, enfim, encerrando a segunda seção, a Parte IV – Mediações, processos identitários e educação, mostra como a formação de um público leitor se projeta para além dos muros da escola e toma os periódicos como suporte privilegiado da difusão de um projeto cultural. Claudia Panizzolo, em “O jornal Fanfulla e seus mediadores culturais: formar, informar e conformar uma identidade italiana (1893-1910)”, estuda a ação do principal diário em língua italiana do Brasil e da América do Sul, o Fanfulla, publicado em São Paulo, na conexão entre informação e educação, com os mesmos objetivos de construção da identidade nacional fora da Itália empreendida pelo famoso jornal.
Os elementos biográficos de Rotellini, fundador e proprietário do periódico, e dos principias elaboradores do jornal ao longo dos seus primeiros vinte anos de vida, na passagem do século XIX para o XX, suas experiências pregressas, suas redes de relações, são analisados pela autora como o viático inicial para a compreensão da política editorial do jornal sobre as questões identitárias e de como toda formação educativa do imigrante devia ser construída através da manutenção ou difusão da língua italiana padronizada.
Estavam incumbidas dessa tarefa as escolas italianas (quase uma centena nas primeiras décadas do século XX) que aparecem nas páginas do Fanfulla como as responsáveis pela formação da “alma, caráter e fé”, projeto que se revela para além da educação em si, voltada à instauração de um ethos normativo como regulador dessa inserção do imigrante e descendentes. Um mapa detalhando as redes de inserção dos colaboradores da Fanfulla em outros periódicos, inclusive brasileiros, complementa o esforço da autora em demonstrar os mecanismos da construção da representação do “orgulho de ser italiano” e de sua suposta atuação em prol do progresso da sociedade brasileira.
Já com o capítulo de Terciane Ângela Luchese, “Nas páginas do jornal católico La Libertà, Caxias-RS (1909-1910): produção e rastros de mediação cultural”, volta-se a um período em que a imprensa alófona produzida dentro das coletividades imigradas sente de forma muito intensa a questão da construção identitária nacional e tenta responder de forma variada a esse desafio da elaboração de supostos “valores nacionais”.
No caso do La Libertà, um jornal de um então centro menor, mas significativo, pois publicado na cidade de Caxias do Sul, majoritariamente composta por italianos, pode- -se entrar em contato com uma das declinações desse processo formativo. O estudo de caso apresentado pela autora enfatiza o empreendimento editorial do jornal de fazer coincidir italianidade e educação católica. O papel de intelectual-mediador passa a ser exercido pelos padres dentro e fora da Igreja, seja Escola, seja nas páginas dos jornais que editavam.
Fenômeno semelhante é analisado no capítulo “A imprensa alemã no Sul do Brasil e a mediação cultural: a prática jornalística e editorial de Wilhelm Rotermund”, de Isabel Cristina Arendt e Marluza Marques Harres, em que apresentam o jornal Deutsche Post, editado em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, de 1880 a 1928. Reconhecido como um periódico importante, considerando a periodicidade, o alcance de leitores e a relativa longevidade, o texto aborda ainda a atuação do fundador e editor, Wilhelm Rotermund.
Pastor luterano, foi editor do jornal, escritor e professor. Ele foi enviado ao Sul do Brasil em 1874 pelo Comitê para os Alemães Protestantes no Sul do Brasil, o qual estava então vinculado à Sociedade Evangélica de Barmen para os Alemães Protestantes na América, com a incumbência de atender à população de alemães evangélico-luteranos no Rio Grande do Sul. As autoras entendem Rotermund como um articulador e mediador cultural atuando em meio à população imigrante ou de descendência alemã, e que permaneceu à frente da edição por vários anos, até passar essa responsabilidade a um de seus filhos, Ernst Rotermund.
No capítulo “O jornal Stella d’Italia: ‘italianità’ e educação (1902-1908)”, Alberto Barausse e Maria Helena Camara Bastos têm preocupações semelhantes na sua indagação sobre a história do Stella d’Italia no começo do século XX em Porto Alegre, um jornal que de certa forma representa um projeto local do mais famoso Fanfulla, porém mais próximo dos setores locais de classe média imigrada, de onde saíram os redatores e apoiadores do jornal.
O conceito de italianidade é compreendido pelos autores como uma elaboração histórica não livre de tensões, um campo dinâmico de disputas, caraterizado pelas configurações do período, do lugar e do conjunto de mediadores envolvidos na experiência da publicação desse periódico em língua italiana do Rio Grande do Sul, em que pese também uma atenção particular para com os processos formativos pedagógicos. Assim, ao também cruzar a análise do percurso e atuação dos mediadores elaboradores do impresso com as propostas e posições educativas do jornal, os dois autores mostram os elementos de conflito intrínseco às dinâmicas de construção identitária, para além de qualquer tentativa de caracterizar de forma homogênea a etnicidade da imprensa egressa das coletividades alófonas.
Trocas culturais em vários níveis, problemáticas e abordagens as mais diversas, e um vasto corpus mobilizado: nada disso seria possível sem os novos recursos tecnológicos que neste século XXI se tornaram cada vez mais sofisticados. Seguramente o acesso às fontes digitalizadas e o aperfeiçoamento das ferramentas de busca impulsionaram a descoberta e o interesse por vastas coleções antes esquecidas ou negligenciadas nos acervos.
E é com a tarefa de continuar explorando essa rica fonte de pesquisa que os pesquisadores do grupo Transfopress Brasil têm se engajado no desafio de melhor entender esse capítulo peculiar da história da imprensa brasileira.
Luigi Biondi é professor de história contemporânea na UNIFESP.
Terciane Ângela Luchese é professora da Universidade de Caxias do Sul.
Valéria dos Santos Guimarães é professora história do Brasil na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Referência
Luigi Biondi, Terciane Ângela Luchese, Valéria dos Santos Guimarães (orgs.). Mediações transnacionais e imprensa estrangeira publicada no Brasil. São Paulo, Unesp, 2022, 524 págs. [https://amzn.to/3Q5zeXh]
Bibliografia
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