Práticas neocolonialistas

Imagem: Ricardo Lima
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GERSON ALMEIDA*

O ministro Luís Roberto Barroso e o fetiche da tecnologia

Na sua primeira sessão como presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o ministro Luís Roberto Barroso revelou ter feito uma reunião com representantes da Amazon, da Microsoft e do Google, quando fez três encomendas às “Big Techs”: um programa para o resumo de processos; uma ferramenta semelhante ao ChatGPT para uso exclusivo jurídico; e uma interface única que permita o funcionamento em harmonia dos sistemas judiciais eletrônicos de todos os tribunais. O objetivo, segundo ele, é “fazer o possível para colaborar com os tribunais […] e ajudar cada um de nós a servir, da melhor maneira possível, ao país” e realçou a sua “obsessão de melhorar a qualidade do serviço que prestamos à sociedade brasileira” (https://www.cnj.jus.br).

Para além das boas intenções, a iniciativa expõe o sucesso do discurso amplamente dominante, que autonomiza a tecnologia e suas empresas, cada vez mais monopolistas, de qualquer aspecto político, social, econômico e geopolítico, apesar de todas as evidências mostrarem o contrário. O que tem sido caracterizado por vários autores como o “fetiche da tecnologia”, para realçar que, tal como qualquer mercadoria, ao entrar no circuito do mercado a tecnologia é “uma específica relação social entre os próprios homens, que para eles assume a forma “fantasmagórica de uma relação entre coisas” (MARX, O Capital).

Essa concepção prevalece, mesmo que diariamente recebamos informações sobre os novos passos na escalada da disputa dos EUA para manter a supremacia sobre as tecnologias de ponta dos microchips e semicondutores. O que deveria dissipar qualquer dúvida plausível sobre o papel das “Big Techs” de exércitos avançados de uma disputa acirrada pela supremacia tecnológica e pelo controle de dados, uma indústria que já é considerada mais valiosa do que a do Petróleo e, indubitavelmente, mais estratégica.

Curiosamente, no mesmo dia em que o ministro Barroso informou ao CNJ sobre a sua encomenda, a secretária de Comércio americano, Gina Raimondo, anunciava medidas adicionais do governo americano para impedir “o acesso chinês a semicondutores avançados […] e obriga as empresas a notificar qualquer venda feita para a China (revista Exame, 17/10/23). Medidas que ampliam a submissão do comércio de tecnologias de ponta aos interesses geopolíticos e econômicos dos EUA e atingem todas as empresas no mundo que produzam equipamentos com algo entorno de 25% de tecnologia americana nos seus componentes.

Apenas uma semana depois, o governo chines passou a executar a sua nova lei de proteção de dados pessoais para”protege(r) o cidadão contra entes privados”, regulamentando o que as “Big Techs” podem fazer com as informações de cidadãos chineses e definindo que elas precisam colaborar com as autoridades de Pequim (tudo celular.com.br), quando necessário. Isso já seria suficiente para banir a ingenuidade no tratamento de temas tão sensíveis para o interesse nacional, como são o conjunto dos dados do sistema de justiça brasileiro.

Mas é sempre bom lembrar, que as revelações de Edward Snowden revelaram a prática de espionagem sistemática feita ao redor do mundo pela Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA), por meio de programas capazes de capturar tudo o que o usuário faz na internet, incluindo o conteúdo de e-mails e os sites visitados. Só no Brasil, Snowden revelou que 29 telefones das mais importantes autoridades eram espionados ilegalmente, incluindo os da presidenta Dilma, do Banco Central, de diplomatas, de grandes empresas, etc.

O conhecimento dessas práticas neocolonialistas deveria gerar uma reação positiva e unificada dos dirigentes dos poderes no Brasil em defesa da soberania nacional, com a ampliação de financiamento para a pesquisa e a produção de tecnologias que ajudem a defender os interesses e as riquezas do país, o que significa nos tornarmos menos dependentes e vulneráveis em áreas de conhecimento estratégicas para todas as áreas. Um passo importante nessa direção havia sido dado com a criação, no segundo governo de Lula, em 2008, da única fábrica de semicondutores do Hemisfério Sul, o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), que foi liquidada em 2021, no governo de Bolsonaro. Exatamente no momento em que os especialistas projetavam que a empresa estava próxima de encontrar seu equilíbrio econômico e já contava com profissionais altamente qualificados no desenvolvimento de tecnologia para chips.

Agora, depois do apagão civilizatório e do abandono do sentido de soberania que vivemos no último período (Temer e Bolsonaro), a recente decisão de Lula de reverter o processo de dissolução do Ceitec, assinado no último dia 06 de novembro, abre uma nova janela de oportunidades que não podemos mais desperdiçar.

A encomenda do ministro Luís Roberto Barroso às “Big Techs” deve ser submetida ao debate público democrático e revista, para que ao invés de entregarmos graciosamente as informações do sistema de justiça brasileiro para empresas privadas, com amplo histórico de colaboração com o departamento de Estado americano, apostemos na mobilização da inteligência de todos os setores do país, com o firme propósito de superar o período em que autoridades batiam continência para outras bandeiras que não a nacional e abdicaram de qualquer ambição de colocar o país numa posição altiva neste mundo em transformação.

*Gerson Almeida, sociólogo, ex-vereador e ex-secretário do meio-ambiente de Porto Alegre, foi secretário nacional de articulação social no governo Lula 2.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
João Lanari Bo Marcus Ianoni Eugênio Trivinho Francisco Pereira de Farias Antonino Infranca Eliziário Andrade Ricardo Fabbrini Afrânio Catani Gerson Almeida Alexandre de Lima Castro Tranjan Ricardo Antunes Armando Boito Osvaldo Coggiola Heraldo Campos Marilia Pacheco Fiorillo Milton Pinheiro Andrew Korybko Daniel Brazil Leonardo Sacramento Remy José Fontana Gilberto Lopes Marjorie C. Marona Juarez Guimarães José Dirceu Claudio Katz Francisco de Oliveira Barros Júnior Gilberto Maringoni Andrés del Río Chico Alencar João Paulo Ayub Fonseca Alexandre Juliete Rosa Francisco Fernandes Ladeira Kátia Gerab Baggio Celso Favaretto Walnice Nogueira Galvão Bento Prado Jr. Alexandre Aragão de Albuquerque Paulo Sérgio Pinheiro Caio Bugiato João Adolfo Hansen Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Werneck Vianna Celso Frederico Marcelo Guimarães Lima Flávio R. Kothe Yuri Martins-Fontes Boaventura de Sousa Santos Paulo Fernandes Silveira Luiz Eduardo Soares Eugênio Bucci Luiz Carlos Bresser-Pereira Ladislau Dowbor Marcos Silva Carlos Tautz Jean Pierre Chauvin Ronald León Núñez Leda Maria Paulani Leonardo Boff Matheus Silveira de Souza Alysson Leandro Mascaro Lorenzo Vitral Valerio Arcary Jorge Luiz Souto Maior Berenice Bento Érico Andrade Eleonora Albano Tales Ab'Sáber Rafael R. Ioris Gabriel Cohn Henri Acselrad Fernão Pessoa Ramos João Sette Whitaker Ferreira Salem Nasser Dênis de Moraes Lincoln Secco Ronald Rocha Denilson Cordeiro Eleutério F. S. Prado Manuel Domingos Neto Mário Maestri Ricardo Abramovay Bruno Machado Jean Marc Von Der Weid Alexandre de Freitas Barbosa Michael Roberts Luiz Roberto Alves Vanderlei Tenório José Micaelson Lacerda Morais José Luís Fiori Vladimir Safatle Slavoj Žižek Daniel Costa João Feres Júnior Liszt Vieira Julian Rodrigues Paulo Capel Narvai Michel Goulart da Silva Priscila Figueiredo Marcelo Módolo João Carlos Loebens Anselm Jappe Rodrigo de Faria Luiz Bernardo Pericás Renato Dagnino Tadeu Valadares Chico Whitaker Marilena Chauí Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Jorge Branco Michael Löwy André Singer José Costa Júnior Annateresa Fabris Everaldo de Oliveira Andrade Igor Felippe Santos Mariarosaria Fabris Vinício Carrilho Martinez Lucas Fiaschetti Estevez Thomas Piketty Sandra Bitencourt Plínio de Arruda Sampaio Jr. Antônio Sales Rios Neto Maria Rita Kehl Rubens Pinto Lyra Carla Teixeira Bernardo Ricupero Atilio A. Boron José Raimundo Trindade Otaviano Helene Luís Fernando Vitagliano Leonardo Avritzer João Carlos Salles Paulo Nogueira Batista Jr André Márcio Neves Soares Sergio Amadeu da Silveira Elias Jabbour Luciano Nascimento Flávio Aguiar Airton Paschoa Luis Felipe Miguel Fernando Nogueira da Costa Antonio Martins Paulo Martins Samuel Kilsztajn Tarso Genro Fábio Konder Comparato José Machado Moita Neto Ricardo Musse José Geraldo Couto Henry Burnett Dennis Oliveira Eduardo Borges Benicio Viero Schmidt Marcos Aurélio da Silva Daniel Afonso da Silva Ronaldo Tadeu de Souza Luiz Renato Martins Manchetômetro Ari Marcelo Solon Luiz Marques

NOVAS PUBLICAÇÕES