A sina do economista

Imagem: Mike Bird
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ESTEVAM PEIXOTO*

A linguagem econômica é um contínuo processo de morte que mata primeiro seu hospedeiro e em seguida se alastra por onde encontra espaço

Decidi ser economista quando tinha ainda uns quatro anos, a partir de um acontecimento fulminante. Era uma tarde no início dos anos 2000, estávamos eu e minha mãe no carro, parados no sinal em alguma avenida belo-horizontina, quando observei, através da janela, o aparecimento de outra criança, mais ou menos da minha idade, “pedindo esmola”.

Achei aquilo engraçado. Curioso. E, como uma legítima criança, aluguei o adulto do recinto – minha mãe – com perguntas: “afinal, o que era ‘pedir esmola’? Algum tipo de brincadeira?”, ao que me foi explicado que não se tratava de brincadeira alguma, o que o menino queria era dinheiro porque era pobre; “mas então onde estavam o pai e a mãe dele? Ele estava sozinho na rua?”, de acordo com minha mãe, era possível que sim, porém também poderia haver outras crianças pedintes em sua companhia; “e como ele voltaria para casa?”, eis que Dona Rosana me revelou que talvez aquele menino dormisse na rua, por morar longe, ou que talvez nem casa tivesse!

Essa certamente foi a história de terror mais pesada da minha infância. Eu, que já me desesperava ao me perder de minha mãe no supermercado por instantes, descobria ali que havia crianças cujas vidas eram esse eterno e aflitivo desamparo. A essa altura do campeonato, já era tarde demais. A janela do carro e a proteção materna até podiam tentar separar o meu mundo e o da outra criança, mas essas divisórias não eram à prova de angústia. Não foram capazes de blindar a angústia profunda, o incômodo visceral, que me tomaram e que passaram a me constituir desde então.

É verdade que com quatro anos eu ainda não sabia o que era economia (muito menos economista), porém, à medida em que envelhecia, familiarizava-me com linguagens, termos e conceitos tais como desigualdade social, justiça, ética, filosofia e… economia, que davam conta, de alguma forma, dessa inquietude que se apoderara de mim. Assim, aos quatorze anos já me era claro que eu acabaria no curso de ciências econômicas, ciências sociais, filosofia ou história.

A impaciência desse meu desassossego, que em raros momentos dava trégua, me obrigou a escolher o curso de economia. O senso de urgência em buscar resolver essa angústia que, apesar de parecer minha, constituía todos os espaços em que havia gente (era objetivamente social), ansiava por explicações e soluções concretas, imediatas, de tal modo que ser admitido no mundo das nobres ciências econômicas me parecia a forma mais eficiente de desferir golpe fatal na causa originária de minha angústia, as condições que tornavam, não só possível, mas necessária, a existência de crianças pobres, ou melhor, a existência da própria pobreza.

Afinal, os economistas são poderosos, não são? Homens pomposos de terno, que conseguem entender os humores e vontades do deus Dinheiro, a única divindade a qual todos são fiéis, e, através dessa conexão transcendental, expressam seus mandamentos em língua indecifrável aos mortais. Gráficos bonitos, equações feias e uma autoridade política que daria inveja aos bispos medievais. Esse era o poder do economista que eu queria, para usar para o bem.

O que demorei um tempo para descobrir, no entanto, foi que, apesar de poderosos, os economistas detêm um poder maldito. A “ciência econômica” (é assim que ela gosta de ser chamada) é uma maldição. A linguagem econômica é um contínuo processo de morte que mata primeiro seu hospedeiro, o próprio economista, e em seguida se alastra por onde encontra espaço, de tal maneira que, em determinado momento, sem nos darmos conta, estamos todos falando e pensando em economês, pouco importando se entendemos de fato sobre “economia”.

Mergulhar no mundo da “ciência econômica” e buscar o domínio de sua linguagem foi, na verdade, o caminho mais angustiante possível. Aprendi que não dominamos a linguagem econômica, é ela que nos domina. Aprendi que, via de regra, não se estuda “ciência econômica” para encontrar a liberdade nesse mundo caótico e brutal, pelo contrário, estudamos para nos tornarmos seus servos mais bem comportados, para nos adaptarmos a essa brutalidade e enganarmos nós mesmos e os outros, tentando convencer que não há caos algum, há, no máximo, algumas peças fora do lugar. O economista é, no final das contas, um enganador profissional.

O jovem que entrou no curso de economia porque queria ser rico, o sujeito que entrou no curso porque queria sepultar (ou pelo menos civilizar) a miséria – o meu caso e o deslumbrado que escolheu o curso simplesmente porque se encantou pela eloquência dos engravatados “do mercado” que habitam a mídia, armados com seus gráficos e números mirabolantes, todos convergem pelo mesmo destino trágico, de uma vida cinza, infensa a tudo que é verdadeiramente vivo.

O que talvez sirva de consolo aos economistas é saber que a “ciência econômica” é cada dia mais bem sucedida na sua missão, de tal modo que é seguro afirmar que, hoje em dia, a sina do economista já não é só sua, é a sina de todos e todas nós, cidadãos do império do cinismo, onde crianças miseráveis vagando pelas ruas são tão naturais quanto a lei da oferta e demanda – ou a lei da inércia.

*Estevam Peixoto é graduando em economia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Caio Bugiato Bernardo Ricupero Plínio de Arruda Sampaio Jr. Luciano Nascimento André Márcio Neves Soares Vladimir Safatle Rubens Pinto Lyra Jean Marc Von Der Weid Mário Maestri Fernão Pessoa Ramos Rafael R. Ioris Otaviano Helene Bruno Machado Ronaldo Tadeu de Souza Atilio A. Boron Alexandre de Freitas Barbosa Juarez Guimarães Michel Goulart da Silva Salem Nasser Leda Maria Paulani José Micaelson Lacerda Morais Luiz Roberto Alves José Geraldo Couto Andrew Korybko Ricardo Fabbrini Annateresa Fabris Carlos Tautz Osvaldo Coggiola Jorge Branco Ronald León Núñez José Machado Moita Neto Manuel Domingos Neto Francisco Pereira de Farias Denilson Cordeiro Gabriel Cohn Chico Alencar Ricardo Musse Marilena Chauí Thomas Piketty Tadeu Valadares Alexandre de Lima Castro Tranjan Valerio Arcary Ladislau Dowbor Leonardo Sacramento Liszt Vieira Ronald Rocha Bruno Fabricio Alcebino da Silva Ari Marcelo Solon Sergio Amadeu da Silveira Renato Dagnino Henry Burnett Eduardo Borges João Adolfo Hansen Luiz Eduardo Soares Marcos Aurélio da Silva João Carlos Salles Andrés del Río Rodrigo de Faria João Lanari Bo Antonino Infranca Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Paulo Fernandes Silveira Tarso Genro Paulo Martins Alysson Leandro Mascaro Antônio Sales Rios Neto Afrânio Catani Remy José Fontana Anselm Jappe Celso Favaretto Luis Felipe Miguel Marcelo Guimarães Lima Armando Boito Marjorie C. Marona Slavoj Žižek Boaventura de Sousa Santos Henri Acselrad Gilberto Lopes Francisco Fernandes Ladeira Marcos Silva Sandra Bitencourt Daniel Brazil Priscila Figueiredo Everaldo de Oliveira Andrade Eliziário Andrade Jean Pierre Chauvin Alexandre Aragão de Albuquerque Luiz Werneck Vianna Matheus Silveira de Souza Leonardo Boff Marcus Ianoni Manchetômetro Dennis Oliveira Flávio R. Kothe José Luís Fiori Tales Ab'Sáber Walnice Nogueira Galvão Anderson Alves Esteves Luiz Bernardo Pericás Luiz Marques Vanderlei Tenório Claudio Katz Eugênio Bucci Elias Jabbour Milton Pinheiro Vinício Carrilho Martinez João Paulo Ayub Fonseca Samuel Kilsztajn Maria Rita Kehl Chico Whitaker Luís Fernando Vitagliano Michael Löwy Daniel Afonso da Silva Paulo Sérgio Pinheiro Carla Teixeira José Costa Júnior Paulo Nogueira Batista Jr Ricardo Abramovay Kátia Gerab Baggio Bento Prado Jr. Julian Rodrigues Mariarosaria Fabris Eugênio Trivinho Antonio Martins Paulo Capel Narvai João Carlos Loebens Ricardo Antunes Eleonora Albano Daniel Costa José Raimundo Trindade Jorge Luiz Souto Maior Heraldo Campos Leonardo Avritzer José Dirceu Airton Paschoa Dênis de Moraes Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Renato Martins Gerson Almeida Flávio Aguiar Eleutério F. S. Prado Marilia Pacheco Fiorillo Igor Felippe Santos Fernando Nogueira da Costa Lucas Fiaschetti Estevez João Sette Whitaker Ferreira André Singer Érico Andrade João Feres Júnior Benicio Viero Schmidt Francisco de Oliveira Barros Júnior Berenice Bento Celso Frederico Marcelo Módolo Yuri Martins-Fontes Lincoln Secco Gilberto Maringoni Lorenzo Vitral Michael Roberts Fábio Konder Comparato

NOVAS PUBLICAÇÕES