Recado da Argentina – como ganhar uma eleição

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LISZT VIEIRA*

A Argentina é presa fácil para qualquer demagogo de extrema direita. Já vimos esse filme no Brasil

A Argentina tem a maior inflação do G-20 em 2023. A taxa acumulada de janeiro a outubro foi de 120%. Em 12 meses, atingiu 142,7%. A quantidade de pessoas vivendo na pobreza aumentou e ultrapassou os 40% da população no primeiro semestre de 2023, conforme levantamento do Instituto Nacional de Estatísticas e Censo (Indec), órgão ligado ao Ministério da Economia. Atualmente, 9,3% da população vive abaixo da linha de pobreza, em situação de indigência, quando as pessoas não têm rendimentos suficientes para cobrir os gastos alimentares básicos.

Diante desse quadro, a maioria quer mudança. De nada adianta dizer que a mudança pode ser para pior. A palavra mudança, em geral, traz uma carga valorativa de esperança. Essa carga positiva de valor ajuda a explicar, por exemplo, porque a expressão “mudança climática” nunca assustou ninguém, pelo menos até há pouco. Teria sido melhor usar a palavra “crise” em vez de mudança, mas a psicologia não é o forte dos cientistas climáticos. Nessa situação atual de crise dramática, a Argentina é presa fácil para qualquer demagogo de extrema direita. Já vimos esse filme no Brasil.

O candidato “antissistema” recebeu 55,7% dos votos, ganhou em 21 das 24 províncias. É o presidente melhor eleito desde o retorno da democracia em 1983. A regra de ouro para ganhar a eleição é dizer em alto e bom som que é contra o sistema. A grande maioria da população não sabe bem o que é o “sistema”, mas ela entende que isso significa mudança, e ela quer mudar porque vive mal na atual situação. Assim, o candidato não precisa perder tempo com programa de governo ou projetos elaborados, basta meia dúzia de palavras chaves, a começar pela crítica ao sistema, é claro.

Há muitas explicações para isso. Uma das principais, a meu ver, é a crise da chamada democracia representativa ou, se preferirem, da democracia burguesa. Afinal, o “sistema” aprendeu a manipular as eleições por vários mecanismos, entre eles usando os meios de comunicação de massa e, mais recentemente, dominando as redes sociais na internet com robôs disparando fake news para milhões de pessoas. Com isso, a maioria da população não percebe os prejuízos que sofre com a política neoliberal dominante e enxerga seu inimigo no gasto público do Estado.

A proposta de corte das despesas públicas em nome do “déficit zero” ou “equilíbrio fiscal” visa enfraquecer o Estado, torná-lo Estado Mínimo, para mais facilmente canalizar os recursos públicos para o mercado. Claro que isso não é explicado e dito dessa forma. Mais fácil é atacar os gastos públicos impopulares, como os salários elevados dos parlamentares, dos juízes, ou da corrupção que, em todos os governos, aparece nas licitações públicas. Há muitos outros argumentos com roupagens técnicas, mas no fundo trata-se de reduzir o peso do Estado para mais facilmente destinar os recursos públicos para os bancos e todo o mercado financeiro.

Há muitas décadas atrás, quem fazia o discurso contra o “sistema” era a esquerda, atacando a democracia burguesa. Quando chegou ao poder, a esquerda implantou políticas sociais importantes, mas foi obrigada a fazer acordos em nome da governabilidade. O atual governo Lula é um bom exemplo. Com um Congresso dominado pela direita, faz acordos e nomeia para ocupar altos cargos no aparelho de Estado políticos de direita que, em ano eleitoral, irão apoiar candidatos de direita contra os candidatos apoiados pelo governo que os nomeou.

As concessões não se resumem a nomear políticos fisiológicos do Centrão. O governo, por meio de seu Ministro da Economia, faz concessões à tese neoliberal do déficit zero para agradar o mercado financeiro e a mídia defensora de seus interesses.

Apesar das diferenças entre a Argentina e o nosso país, a vitória de Javier Milei na eleição argentina acendeu o sinal amarelo para o Brasil. Não há dúvida de que se trata de um importante reforço para o avanço da extrema direita no mundo. Orbán na Hungria, Erdogan na Turquia, Bolsonaro no Brasil, Trump nos EUA – que, apesar de processado, já supera Joe Biden nas pesquisas – Modi na Índia, Zelenski na Ucrânia, Meloni na Itália e a extrema direita fora do poder, mas avançando em vários países da Europa, serão pontos de apoio a Javier Milei na Argentina. Talvez até Vladimir Putin, com seu sonho de autocrata czarista.

Na Europa, é preocupante o fortalecimento da ultradireita. No caso da França, por exemplo, o Partido Comunista teve 2% dos votos na última eleição e o Front National, 22%. É sabido que muitos eleitores do PC hoje votam na extrema direita. O mesmo ocorreu com os manifestantes dos “Coletes Amarelos” (Gilets Jaunes): começaram protestando contra a taxa ecológica ao combustível fóssil porque aumentaria o preço da gasolina, terminaram quase todos votando no Front National de extrema direita.

A eleição de Javier Milei se explica em boa parte pelo desgaste do peronismo, e pela crise econômica que não conseguiu debelar. Um engenheiro diria que o peronismo sofreu uma espécie de “fadiga de material”. Apesar das diferenças em relação ao clima político da eleição de Jair Bolsonaro em 2018, o discurso alucinado de Javier Milei tem muitos pontos em comum com o discurso tresloucado de Jair Bolsonaro.

Ambos acusam a esquerda, a democracia e, direta ou indiretamente, apontam para a ditadura como solução. No caso da Argentina, porém, Javier Milei terá mais dificuldades para governar, por ter minoria no Parlamento e também pela inexistência de Centrão ou de bancada evangélica de apoio. Já há analistas políticos vaticinando que, face a uma oposição agressiva, se Javier Milei cumprir o que prometeu e cortar serviços públicos, não vai terminar o mandato.

No caso do Brasil, o enfraquecimento do presidencialismo face ao semiparlamentarismo em ascensão, com a direita ocupando cargos de alto escalão no aparelho de Estado, bem como as concessões ao mercado e sua mídia em termos de déficit zero e equilíbrio fiscal, apontam para um futuro incerto e preocupante. Com Jair Bolsonaro inelegível, o bolsonarismo está procurando um novo líder para ocupar seu espaço político que não deve ficar muito tempo vazio.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Raimundo Trindade Alexandre de Lima Castro Tranjan Luiz Renato Martins Mário Maestri Gilberto Maringoni Julian Rodrigues Marcos Aurélio da Silva Celso Frederico Afrânio Catani Manchetômetro Leda Maria Paulani Marcus Ianoni Gabriel Cohn Vinício Carrilho Martinez João Paulo Ayub Fonseca Érico Andrade Bento Prado Jr. Antonino Infranca Sergio Amadeu da Silveira Otaviano Helene Bruno Fabricio Alcebino da Silva Daniel Afonso da Silva Carlos Tautz Jorge Branco Lincoln Secco Francisco Pereira de Farias João Adolfo Hansen Celso Favaretto Jean Marc Von Der Weid Alysson Leandro Mascaro Lorenzo Vitral Leonardo Avritzer Paulo Fernandes Silveira Francisco de Oliveira Barros Júnior Thomas Piketty Ronaldo Tadeu de Souza Fernando Nogueira da Costa Marcelo Módolo Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Martins Daniel Costa Flávio R. Kothe José Machado Moita Neto Paulo Capel Narvai Henri Acselrad Ronald León Núñez Paulo Sérgio Pinheiro Jorge Luiz Souto Maior Samuel Kilsztajn Anselm Jappe João Carlos Loebens Vladimir Safatle Manuel Domingos Neto Luciano Nascimento Andrew Korybko Flávio Aguiar Alexandre de Freitas Barbosa Denilson Cordeiro Luiz Roberto Alves Walnice Nogueira Galvão Ricardo Antunes Yuri Martins-Fontes Caio Bugiato Bernardo Ricupero Eleonora Albano Luiz Werneck Vianna Remy José Fontana Eduardo Borges Kátia Gerab Baggio Eugênio Bucci André Singer Marcos Silva Matheus Silveira de Souza Tadeu Valadares Slavoj Žižek Andrés del Río Alexandre Aragão de Albuquerque Jean Pierre Chauvin João Sette Whitaker Ferreira Antônio Sales Rios Neto Boaventura de Sousa Santos Sandra Bitencourt Elias Jabbour Luiz Carlos Bresser-Pereira Ricardo Fabbrini Ari Marcelo Solon Ricardo Musse Michael Löwy Claudio Katz Vanderlei Tenório João Lanari Bo Henry Burnett Fábio Konder Comparato Francisco Fernandes Ladeira Rafael R. Ioris Eliziário Andrade Paulo Nogueira Batista Jr Priscila Figueiredo Milton Pinheiro Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marilena Chauí Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Marcelo Guimarães Lima Rubens Pinto Lyra Liszt Vieira Marilia Pacheco Fiorillo Heraldo Campos Carla Teixeira Fernão Pessoa Ramos Michael Roberts Chico Alencar José Micaelson Lacerda Morais José Dirceu Eleutério F. S. Prado Leonardo Boff Mariarosaria Fabris José Luís Fiori Tarso Genro Igor Felippe Santos Salem Nasser José Geraldo Couto Luiz Bernardo Pericás Ronald Rocha Daniel Brazil Luiz Eduardo Soares Tales Ab'Sáber Benicio Viero Schmidt José Costa Júnior Valerio Arcary André Márcio Neves Soares Berenice Bento Luis Felipe Miguel Michel Goulart da Silva Atilio A. Boron Marjorie C. Marona Renato Dagnino Airton Paschoa Gerson Almeida Juarez Guimarães João Carlos Salles Ladislau Dowbor Ricardo Abramovay Armando Boito Chico Whitaker Dennis Oliveira Bruno Machado Osvaldo Coggiola Lucas Fiaschetti Estevez Leonardo Sacramento Eugênio Trivinho Gilberto Lopes João Feres Júnior Alexandre Juliete Rosa Antonio Martins Maria Rita Kehl Luiz Marques Luís Fernando Vitagliano Rodrigo de Faria Dênis de Moraes Annateresa Fabris

NOVAS PUBLICAÇÕES