Por LUIZ RENATO MARTINS*
Verbetes e notas para um roteiro de lutas e debates
Arte moderna e Baudelaire
Ante a onda conservadora que se ergueu em escala europeia contra os movimentos revolucionários de 1848, a arte moderna, na acepção de Baudelaire, surgiu como resposta derivada dos valores culturais radicais da Revolução Francesa. Daí o sentido fundamental e paradigmático, segundo Charles Baudelaire, das “severas lições da pintura revolucionária” (“sevères leçons de la peinture révolutionnaire”) de Jacques-Louis David (1748-1825), à qual o crítico e poeta atribuiu igualmente a origem “do romantismo, essa expressão da sociedade moderna” (“du romantisme, cette expression de la société moderne”).[i] Em tal sentido e acepção a arte moderna veio na esteira da fúria da plebe e consistiu na erupção simbólica de mestres de ofício e artesões independentes, politizados e radicalizados pelo processo revolucionário.
Vanguarda
Logo, falar em arte de vanguarda sem mais nem menos é simplesmente sucumbir ao mito formalista da arte como autarquia, fenômeno isolado e autorreferido. Nas potências coloniais do Ocidente ou nas economias do G-7 (dá quase no mesmo) a chamada arte de vanguarda não operou propriamente como vanguarda – exceto durante alguns breves episódios revolucionários em tais países –, mas antes disso na retaguarda[ii] e como ação de resistência. Vale dizer, constituiu um modo de luta crítica e simbólica contra o processo de devastação serial deflagrado pelo avanço da modernização capitalista.
Belle époque, formalismo e arte moderna
No campo das artes, o projeto e o acúmulo crítico vislumbrados por Charles Baudelaire sofreram fogo cruzado e permanente dos adeptos da doutrina da “pura visibilidade”, de Konrad Fiedler (1841-1895) e outros. Esta constituiu o núcleo da historiografia formalista da arte moderna e obteve forte disseminação após o massacre da Comuna de Paris (1871).
Assim, na escala internacional, deve-se sua aceitação e ampla difusão ao pronto sincronismo com a modernização capitalista, logo, com a crescente colonização da vida e da cidade, ambas transformadas de alto a baixo pelo processo de troca abstrata e reprodução do valor.
Como doutrina estética, a teoria da pura visibilidade apareceu associada organicamente, na França, ao impressionismo e ao simbolismo pós-impressionista. Combinou-se então aos valores da ideologia “opticalista”, ou, como se dizia à época, da “escola dos olhos (école des yeux)”.[iii] Podemos, pois, inferir que o formalismo constituiu uma corrente ideológica ligada exclusivamente a algumas tendências modernistas, que, descurando de intervir nas coisas do mundo, contribuíram, com sua irreflexão, para positivar a modernização. Assim, com bases tão estreitas e segundo uma perspectivamente unicamente estética, como ser capaz de englobar desigualdades e contradições dos diferentes desenvolvimentos nacionais, cada um às voltas com formas específicas e, de algum modo próprias, de arte moderna?
Totem e tabu
Outro dos pontos cegos da argumentação formalista – cujos princípios supuseram a hipótese idealista e fetichista da obra de arte como ser dotado de razão própria, completude e autossuficiência – residiu no tabu consagrando a concepção da arte como bem precioso ou valor em si. O formalismo mostrou, desse modo, resistência (na acepção psicanalítica) em assimilar a nadificação do valor da obra acabada. Em suma, não logrou refletir acerca da primazia, em boa parte da arte moderna, dos processos produtivos ante os resultados.
Produção, modernização e caducidade
“É preciso ser do seu tempo (Il faut être de son temps)”,[iv] propunha um dito de Diderot (1713-1784). A prioridade à própria época, traduzida na atenção do artista moderno aos modos de trabalho, em detrimento da execução acabada, responde ao processo geral de modernização inerente ao sistema capitalista de produção de mercadorias; processo esse que instaurou a condição transitória ou de perecimento fatal de toda forma e modo social de relação. Vide a passagem emblemática do Manifesto Comunista sobre relações e coisas antes tidas por sólidas, mas que acabam de um modo ou de outro desfeitas no ar.[v]
Produção, modernização e contemplação
Traços inconclusos, de pressa na execução e modelado sumário, incluindo a produção simultânea de várias obras e a multiplicação de variantes de um mesmo processo, apareceram como diferentes modos de estabelecimento da primazia do processo de produção sobre a forma final. Objetivo: antecipar ou prevenir (decerto no campo peculiar da arte e do seu regime especial de temporalidades próprias) o esvaziamento, desgaste ou perecimento dos produtos em geral. Entretanto, o modo da incompletude não caracterizou teor singular ou exclusivo da arte dita moderna, senão pela aceleração que nessa última marcou a fadiga de matérias, modos e técnicas.
Nesse sentido vários dos estudos de Giulio Carlo Argan (1909-1992) destacaram estrategicamente a importância do maneirismo do final do século XVI – bem como dos non-finiti (inacabados) de Michelangelo (1475-1564), e ainda certos trabalhos dos mestres venezianos, contemporâneos dos primeiros. Tais estudos realçaram o momento inicial da primazia simbólica do modo produtivo em detrimento do valor de perfeição ou da forma final da obra acabada.
Nesse sentido, a crítica de Giulio Carlo Argan se situou estrategicamente à contracorrente, contrapondo-se ao apreço usual pelo culto da perfeição e da maestria, de hábito reinantes na historiografia italiana. Culto do virtuosismo que, mais cedo, no classicismo renascentista e em função do prestígio da metafísica de Plotino (ca. 204-270), fora exaltado como prova de sumo saber fundado na completude do sistema neoplatônico. Em síntese, diante do novo estatuto simbólico adquirido pela práxis artística dita maneirista e sentimentos correlatos, Argan detectou sinais da concorrência nascente entre modos e esquemas produtivos (por sinal, Brecht [1898-1956], antes de Giulio Carlo Argan, já assinalara elementos análogos ao elaborar o contexto histórico de A Vida de Galileu (Leben des Galilei) [1937-39]).
Em conexão com a valorização poética e crítica do processo de produção – em face daquele de contemplação –, os estudos de Giulio Carlo Argan em L’Europa delle Capitali (1964),[vi] como noutros ensaios, assinalaram o caráter planejado e abertamente “interessado” da produção visual (urbanística e arquitetônica bem como artística) a partir do século XVII, ou seja, em concomitância com a expansão do processo colonial e mercantil. Assim, tais estudos efetuaram a desconstrução crítica do discurso estético, entendido como disciplina ou ciência da “contemplação do belo”, desvelando, et pour cause, seu teor ideológico.
Em suma, tais estudos mapearam e desvelaram a estratégia, claramente mercantil, de fetichização das qualidades do produto; tendência essa que tinha e mantém a diretriz retrógrada – no campo da arte assim como nos demais – de consolidar, independentemente das questões do trabalho, os critérios da contemplação ou da consideração exclusiva da forma (ou seja, no fim das contas – da moeda –, para tudo resumir numa só palavra).
Narrativa hegemônica e primeiras medidas contra-hegemônicas
Para um exame efetivo da produção material da arte e a construção de um sistema crítico que lhe seja correlato, decerto é necessário não descurar da confrontação com juízos e premissas da corrente historiográfica formalista e da doutrina da “pura visibilidade”, a ela entremeada. Ambas, doutrina estética e historiografia, orbitando posturas de contemplação, elaboraram a narrativa hegemônica da arte moderna.
A doutrina visual formalista, originalmente de expressão germânica, enraizou-se no campo culturalista, por sua vez, delimitado pelo neokantismo positivista e apoiado em bases históricas constituídas no curso do processo de unificação nacional e de constituição do império alemão. Ganhando terreno na França após o massacre da Comuna (1871), a corrente formalista conquistou em seguida apoios no seio do grupo londrino de Bloomsbury (matriz da doutrina crítica de Roger Fry [1866-1934]), e se implantou noutros países. Desse modo, consolidou-se também como doutrina principal da museologia anglo-americana – pautando a aquisição dos acervos do Metropolitan Museum, por Fry, e do Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, por Alfred Barr Jr. (1902-81), discípulo, pode-se dizer, do último.
Em suma, considerada no contexto mais amplo que circundou o seu processo de difusão internacional, a doutrina formalista pertence, guardada a sua especificidade metódica e requintada, ao triunfo da industrialização e à cultura da dita belle époque. Herdeira, de algum modo, da contrarrevolução de 1848, a corrente, também dita da “visibilidade pura”, testemunha, incólume e sem pestanejar, a aniquilação sangrenta da Comuna, em 1871, bem como a expansão global do imperialismo.
É claro que no campo da arte moderna apareceram, além do positivismo formalista, pesquisas significantes e inovadoras no sentido da história social da arte, assim como contranarrativas empreendidas por estudiosos não formalistas (tais como, além daquelas de Giulio Carlo Argan, de Pierre Francastel (1900-70) e Leo Steinberg (1920-2011) ou, mais recentemente, de Guilbaut (1943), Timothy J. Clark (1943), Michael Leja (1951), Pepe Karmel (1955), bem como de vários outros historiadores principalmente anglo-americanos); ou ainda, antes destas, as narrativas, com componentes liberais historicistas, dos historiadores pertencentes à matriz iconológica ou warburguiana – nesse caso, mais propensos pela sua origem aos estudos de arte antiga ou de corte pré-moderno (à versão pós-moderna desta corrente, já se retornará).
Entretanto, quaisquer que tenham sido os seus méritos e ainda quando exercendo influência, as diferentes alternativas à narração formalista não lograram superar objetivamente o estatuto de estudos pontuais, acerca desse ou daquele autor. Desse modo, nunca ganharam vigor sistêmico, capaz de pôr em risco a hegemonia formalista – que permaneceu aceita como a verdadeira língua franca na esfera internacional de circulação da arte,[vii] até o advento do ecletismo pós-moderno.
Em traços breves, mas a propósito, notemos que o revivalismo que traz – ao sabor do gosto pós-moderno – o dispositivo do Atlas mnêmico de Aby Warburg (1866-1929) – celebrado em cultos expositivos no curso de várias mega-mostras recentes (Madrid, 2011; Berlin, 2020, etc.) e cujo vetor de base multiplicou-se, de um modo ou de outro, globalmente –, não surpreende, mas antes atende aos tempos.
Com efeito, a voga icônica que provamos hoje, de maré montante ou laissez-faire de imagens – contemporânea da hipertrofia financeira –, intensificou, na verdade, aquilo que foi e resta fundamental no sistema acumulativo e eclético, concebido por Warburg. Desse modo, com o objetivo de estabelecer uma vasta cartografia de imagens, a demarcação dos empréstimos, dívidas e derivações, verificados no curso do comércio de imagens, apoia-se sempre numa suposta autonomia das significações iconológicas, quer dizer, na excisão da imagem ante o seu contexto sócio-histórico.
Essa cegueira fundamental – quanto aos laços constitutivos e objetivos que unem os signos e as relações perceptivas, cognitivas, imaginárias e outras tantas, aos conflitos históricos e sociais nos quais estas se constituíram –, não é um fato casual, mas metódico. Gozando de uma circulação similar à da moeda (certificada como autônoma em relação ao trabalho produtor de riqueza), as imagens, assim coletadas, adequam-se às práticas de entesouramento. Logo, não é fortuito, mas antes lógico, que tal dispositivo esteja em voga no ciclo atual, apogeu da financeirização generalizada ou daquilo que Karl Marx denominou de “capital fictício”.
Em conclusão, a hegemonia burguesa é clara na historiografia e na crítica das artes, não menos do que na esfera das finanças. Subestimá-la é ingenuidade. A ascendência formalista, desde logo hibridada pela voga warburguiana, perdura ainda na França e nos Estados Unidos mediante revivificações neoestruturalistas do formalismo germânico. O composto eclético resultante encontra grande aceitação nos Estados Unidos e em suas zonas de influência (Basta ver a aceitação da revista liberal nova-iorquina October, em ateliês e escolas de arte).
Logo, para reabrir de modo radical e efetivo a discussão sobre o processo de formação do modernismo, é indispensável revisar detidamente as teses que constituíram os esteios principais da sistematização formalista sobre a arte moderna, a saber: o capítulo fundamental acerca de Eduard Manet (1832-1883), cuja obra foi posta pela doutrina opticalista como origem da pintura moderna e precursora do impressionismo; as teses simbolistas ou derivadas desse movimento, a propósito de Cézanne (1839-1906), tomado como paradigma “clássico” do modernismo e pedra angular da abstração; e, correlatamente, do cubismo, como estilo fundamentalmente abstrato e não realista. Por certo, tudo isso achando-se ligado à situação e à correlação de forças que precederam a eclosão da I Guerra Mundial, o curso histórico alterou decisivamente o contexto de origem, pondo à vista a inanidade de todo discurso revivalista, intemporal ou normativo quanto ao moderno.
A desmontagem crítica do sistema historiográfico formalista deve também incluir, como remate, a revisão de um tópico decisivo na história da ascensão da arte norte-americana: a formação e o desenvolvimento da Escola de Nova York. É crucial, nesse sentido, o questionamento da premissa central da narrativa formalista norte-americana, que põe esse movimento como corolário dos assim ditos postulados fundamentais da arte moderna.
Ora, tal concepção (idealista e nacionalista) do desenvolvimento da pintura norte-americana não encontra qualquer confirmação nos fatos, como tampouco na concepção e no testemunho histórico dos próprios artistas. O eixo da narrativa formalista norte-americana, a despeito das alegações culturalistas, tem sua origem exclusivamente na esfera da circulação: galerias de arte, críticos a elas ligados e equipes técnicas de museus – uns e outros, sob a influência de colecionadores e de mecenas privados.
No próprio âmbito da historiografia norte-americana, pesquisas rigorosamente documentadas e estudos de pesquisadores como Serge Guilbaut, Michael Leja, David Craven, Robert Storr, Pepe Karmel, Jeffrey Weiss e Carol Mancusi-Ungaro, entre outros, recolocaram em bases históricas e reenquadraram o fenômeno, para além das lendas e clichês, demonstrando a inanidade da versão greenberguiana sobre a ascensão da pintura nova-iorquina. Versão essa que, entretanto, continua a ser privilegiada, para fins de circulação e mercado.
Contranarrativa
Para a construção de um contra-discurso, não cabe em absoluto, negar a importância decisiva dos trabalhos do movimento nova-iorquino. Tampouco se trata de apenas alargar o espectro de autores e obras, como demanda o multiculturalismo. Mas importa reabrir criticamente a interpretação do panteão e do cânon edificados pelo formalismo, a fim de reinserir tais obras em situações históricas, contextos e entrechoques críticos que circundaram a sua feitura. Noutros termos, é crucial, tanto quanto desvelar a concretude dos embates de origem, revelar a dimensão das manobras de classe e de extração de mais-valia simbólica das operações interpretativas formalistas.
A contrapelo de tal historiografia, a via de investigação praticada na senda da reflexão e da crítica de Argan – ou seja, a do realismo como fio condutor principal da arte moderna – optou por tratar de distinguir sucessivamente nas obras de Manet, Monet (1840-1926), Cézanne, Van Gogh (1853-90), Braque (1882-1963) e Picasso (1881-1973) diferentes práticas produtivas e modos críticos. Logo, o leitmotiv da investigação consistiu, em síntese, pode-se dizer, na atualização do realismo como modo de exposição da fabricação da arte e dos seus processos.[viii]
Porém as experiências decisivas da arte moderna se constituíram não só nos termos de uma reflexão sobre o próprio processo produtivo, mas também de modo antitético ante o processo destrutivo e a estandardização correlata causados pela modernização capitalista (de modo análogo ao que a vanguarda russa buscou fazer ante a opção do regime pelo capitalismo de Estado e a verticalização bonapartista que acometeu a Revolução de Outubro).
Tal foi a dialética proposta por Charles Baudelaire sob denominações variadas (romantismo e satanismo, heroísmo e épica etc.), mas sempre postuladas como antíteses ante a ordem burguesa. Foi contra tal ordem que ele voltou o ataque (anterior a junho de 48), e disparado com um sarcasmo ímpar por ocasião do Salão de 1846: “Aos burgueses. Sois a maioria – número e inteligência –, então tendes a força – que é a justiça. Uns eruditos, os outros proprietários; – um dia radioso virá no qual os eruditos serão proprietários, e os proprietários, eruditos. Então vossa potência será completa, e ninguém protestará contra ela. Esperando tal harmonia suprema…”.[ix]
*Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em Artes Visuais (ECA-USP). Autor, entre outros livros, de The Conspiracy of Modern Art (Haymarket/HMBS). [https://amzn.to/46E7tud]
Primeira parte do cap. 13, “Economia política da arte moderna I”, da versão original (em português) do livro La Conspiration de l’Art Moderne et Autres Essais, édition et introduction par François Albera, traduction par Baptiste Grasset, Paris, éditions Amsterdam (2024, prim. semestre, proc. FAPESP 18/ 26469-9). Agradeço o trabalho de revisão do original por Gustavo Motta.
Notas
[i] Cf. C. BAUDELAIRE, “Le Musée classique du Bazar Bonne Nouvelle”, in idem,Oeuvres Complètes, texte établi, présenté et annoté par C. Pichois, vol. II, Paris, Pléiade/ Gallimard, 2002, p. 409.
[ii] Deve-se à crítica de Mário Pedrosa (1900-81) o termo “arte da retaguarda”, aplicado por ele em sentido um pouco distinto, porém não contrário ao aqui empregado. Ver M. PEDROSA, “Variações sem tema ou a arte da retaguarda”, in M. PEDROSA, Política das Artes/ Mário Pedrosa: Textos Escolhidos I, Otília Arantes (org. e apres.), São Paulo, Edusp, 1995, pp. 341-7.
[iii] Ligada ao aparecimento dos impressionistas, a denominação deriva de uma observação, não sem ironia, da crítica Marc de Montifaud (pseudônimo de Marie-Amélie Chartroule de Montifaud , 1845-1912): «Se esse pequeno grupo pudesse constituir uma escola, dever-se-ia chamá-lo de a “escola dos olhos (école des yeux)” (Marc de Montifaud, «Exposition du boulevard des Capucines», L’Artiste, 1er mai 1874, pp. 307-313). O epíteto retoma, por sua conta, o comentário do crítico Armand Silvestre a propósito dos impressionistas: “São necessários olhos especiais para essa precisão nas relações de tons, que constitui a sua honra e o seu mérito” (Armand Silvestre, «Chronique des Beaux-Arts», L’Opinion nationale, 22 avril 1874). De outro lado, o equívoco quanto a Manet – que consiste em ver nele o primeiro dos impressionistas – data da geração seguinte. Na sua origem, encontra-se o estudo do crítico e historiador alemão Julius Meier-Graefe (1867-1935), autor de Manet und der Impressionismus [Manet e o impressionismo] (1897-8), retomado em seguida pelo mesmo autor no seu influente estudo sobre a arte moderna, centrado principalmente na arte francesa (Entwicklungsgeschichte der modernen Kunst: Ein Beitrag zur modernen Ästhetik [História do desenvolvimento da arte moderna: uma contribuição para a estética moderna], 3 vol., Stuttgart, 1904). Meier-Graefe, simultaneamente marchand e representante em Paris de algumas galerias de arte alemãs, foi sem dúvida o primeiro historiador a ter aplicado narrativamente a teoria da «pura visibilidade», de Konrad Fiedler (híbrido de esteta de extração neokantiana e de colecionador). Em Nova York, o crítico de arte norte-americano Clement Greenberg (1909-1994) retomou posteriormente, sob a denominação de «opticalism (opticalismo)», as ideias de Meier-Graefe, assim como aquela de uma pintura cujos trunfos seriam de ordem ótica segundo os paradigmas associados ao aparecimento dos impressionistas. Com efeito, o processo em curso, durante a assim chamada belle époque, era o do divórcio, com base em premissas neokantianas, entre a pintura e sua tradição semântica. Ora, Manet em vida, muito mais próximo de Baudelaire (1821-1867) e de Émile Zola (1849-1902) do que dos impressionistas –, jamais menosprezou, ao contrário destes últimos, a dimensão semântica e o poder de intervenção social e histórica da pintura. Sobre o «opticalismo» e o revivalismo do paradigma impressionista, graças à crítica de Greenberg, ver Michael Fried, Manet’s modernism or, the face of painting in the 1860s (Chicago and London, The University of Chicago Press, 1996), pp. 18-19 e também as notas 51-54, pp. 462-463.
[iv] Apud Giulio Carlo Argan, «Manet e la pittura italiana», in Da Hogarth a Picasso. L’Arte Moderna in Europa, Milan, Feltrinelli, 1983, p. 346.
[v] Ver Karl Marx and Frederick ENGELS, The Communist Manifesto, edited by Phil Gasper, Chicago, Haymarket, 2005, p. 44; O Manifesto Comunista, trad. Maria Lucia Como, revisão André Carone, São Paulo, Paz e Terra, 1998, p. 14.
[vi] G. C. ARGAN, L’Europa delle Capitali/ 1600-1700, Milano, Skira Editores, 2004 [ed. br.: “A Europa das Capitais”, in idem, Imagem e Persuasão: Ensaios sobre o Barroco, org. Bruno Contardi, trad. Maurício Santana Dias, revisão técnica e seleção iconográfica Lorenzo Mammì, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, pp. 46-185].
[vii] Decerto a construção crítica e historiográfica elaborada no curso dos debates construtivistas-produtivistas, nos anos seguintes à Revolução de Outubro, constituiu um contraponto vigoroso ao formalismo de expressão germânica, hegemônico na esfera da circulação e da curadoria das grandes coleções, privadas ou não. Assim o legado revolucionário russo, ligado à Frente de Esquerda das Artes (o grupo LEF [1923-1929]), deixou um acervo inestimável de realizações, propostas e constructos críticos, resgatado em parte nos últimos decênios por detalhadas investigações historiográficas (majoritariamente em língua inglesa), mas em larga medida ainda por ser discutido e explorado, do ponto de vista da reflexão estética. Entretanto, no quadro da longa duração e, ainda mais, em face do tenebroso Termidor stalinista que asfixiou a Revolução de Outubro, o esforço contrutivista-produtivista foi liquidado, não obstante terem restado certas conquistas no domínio das artes aplicadas.
[viii] A noção de realismo adotada tanto por Brecht quanto por Argan tem em larga medida os mesmos moldes daquela precisada por Nikolai Tarabúkin (1889-1954) em 1923: “Eu emprego o conceito de realismo no sentido mais amplo, e não o confundo de modo algum com o naturalismo, que não representa senão um aspecto daquele – e, além do mais, o aspecto o mais ingênuo e o mais primitivo quanto à expressão. A consciência estética contemporânea desligou a noção de realismo da categoria do tema para transportá-la para a forma da obra. A reprodução da realidade não é mais o motivo dos esforços realistas (como era o caso para os naturalistas): ao contrário, a realidade deixou de ser, sob qualquer relação que seja, a origem da obra. O artista constitui nas formas da sua arte a sua própria realidade e concebe o realismo como consciência do objeto autêntico, autônomo quanto à sua forma e quanto ao seu conteúdo” (“J’emploie le concept de réalisme au sens le plus large, et ne le confonds nullement avec le naturalisme qui n’en représente qu’un aspect – et de surcroît l’aspect le plus naïf et le plus primitif quant à l’expression. La conscience esthétique contemporaine a arraché la notion de réalisme à la catégorie du sujet pour la transporter dans la forme de l’oeuvre. La copie de la réalité n’est plus motif à efforts réalistes (comme c´était le cas pour les naturalistes) : au contraire, la réalité cesse d’être, sous quelque rapport que ce soit, à l’origine de l’oeuvre. L’artiste constitue dans les formes de son art sa propre réalité et conçoit le réalisme comme conscience de l’objet authentique, autonome quant à sa forme et quant à son contenu) ». N. TARABOUKINE, “3. La voie du réalisme”, in idem, Le Dernier Tableau/ Du Chevalet à la Machine/ Pour une Théorie de la Peinture/ Écrits sur l’art et l’histoire de l’art à l’époque du constructivisme russe, presentés par A. B. Nakov, trad. du russe par Michel Pétris et Andrei B. Nakov, Paris, éditions Champ Libre, 1980, p. 36.
[ix] [«Aux Bourgeois/ Vous êtes la majorité, – nombre et intelligence ; – donc vous êtes la force, – qui est la justice. / Les uns savants, les autres propriétaires; – un jour radieux viendra où les savants seront propriétaires, et les propriétaires savants. Alors votre puissance sera complète, et nul ne protestera contre elle. / En attendant cette harmonie suprême (…)».Cf. Charles BAUDELAIRE, “Salon de 1846”, in idem, Oeuvres Complètes, texte établi, présenté et annoté par C. Pichois, Paris, Pléiade/ Gallimard, 2002, vol. II, p. 415.
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