Pedro pedreiro

Breon O'Casey, Música, 1997
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ROGÉRIO RUFINO DE OLIVEIRA*

Comentário sobre a canção de Chico Buarque de Holanda

Apesar de não ser conto, ser canção, “Pedro pedreiro”, nas audições, conta como inequívoca canção. Parece que só tem meio, mas, redonda, começa e termina perfeitamente. Exige apenas que seu início-meio-fim se confunda com seu estilo. Júlio Cortázar, sem saber, que eu saiba, gostaria de ter gostado, se tivesse conhecido. “Pedro pedreiro penseiro esperando o trem” contém personagem, ação e contexto de uma só vez, começo com início, meio e fim costurados no primeiro verso; feitio acabado de parte-todo tal qual um sistema, mais social que de filosofia.

O drama, quando começa para quem lê e escuta, tem que trabalhar para sobreviver, já nasce adulto, estabelecido na ficção. Quem espera vê o tempo andar parado, quem o faz aqui no faz de conta labora ritmo, pulso e aliteração.

A narração, essencialmente temporal, dissimula em “Pedro”, na parte que lhe toca o conto, uma falsa fixação sob e sobre seu tempo de vida de canção, coisa de minutos. Em tempo, a música, metade da canção, só existe em ato, não se desmonta, não se estoca, não se guarda. A ideia não realista de que tudo o que não é visto não existe, pois só se materializa diante dos olhos, morre como caricatura e entra pelo ouvido como contradição ondulada desde a objetividade da primeira nota. Ou é ou nada, não, nada de ou: devir, talvez, como a realidade a qual “Pedro” se refere.

“Esperando, esperando, esperando / Esperando o sol / Esperando o trem / Esperando o aumento […]”: o tempo passa, o sonho é que não. A estilização anafórica é conflito com a vida dura que dura feito pedra. Vindo numa linha anterior à leitura do conto, à audição da canção, “Desde o mês passado”, o tempo se faz quando encarna textual, e toca em Pedro parado, e lhe conta um conto, por hora nem um conto, e avisa do porvir, “para o mês que vem”, temporalmente impossível de o aumento de salário ser alcançado dentro de dois minutos e trinta e cinco segundos. O gênero canção é coautor de seus efeitos, e aqui o Brasil se esbalda, às vezes longe, noutras perto de seus Pedros.

A percussão, permanente do início ao fim, representação da continuidade inevitável, acelera seu relógio de som, tripudia seu samba. Reagindo a essa indiferença estão os metais melodramáticos, que só arranjam o que arranjam porque são mais contingenciais, e estão curiosamente alegres, latino-americanos. Há um círculo entre Pedro e pedreiro, ou uma linha não teleológica que usa a estrutura bem-acabada à Chico Buarque como fonte de sua energia virtual.

Aí, como tudo na vida, depende. O trem anuncia “que já vem”, promessa que, por se repetir como ironia crítica no conto, revela que pode estar parada. Ou, por se repetir como onomatopeia na mesma parte derradeira da canção, gerando um efeito dependente da interpretação dada pelo canto em ato consciente e prático, sinaliza que pode ser esperança.

*Rogério Rufino de Oliveira é professor de literatura e doutorando em Letras na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Os espectros da filosofia russaBurlarki cultura 23/11/2024 Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro “Alexandre Kojève and the Specters of Russian Philosophy”, de Trevor Wilson
  • A Terceira Guerra Mundialmíssel atacms 26/11/2024 Por RUBEN BAUER NAVEIRA: A Rússia irá retaliar o uso de mísseis sofisticados da OTAN contra seu território, e os americanos não têm dúvidas quanto a isso
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • Donald Trump e o sistema mundialJosé Luís Fiori 21/11/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Se houver um acordo de paz na Ucrânia, o mais provável é que ele seja ponto de partida de uma nova corrida armamentista dentro da própria Europa e entre os EUA e a Rússia
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Mudanças no modelo de pós-graduaçãobiblioteca universidade 21/11/2024 Por ANTÔNIO DAVID: O doutorado direto não é um demérito, e doutores que realizaram o doutorado direto não são doutores pela metade
  • Fissuras no campo bolsonarista — episódio 2Armando Boito 2024 22/11/2024 Por ARMANDO BOITO: A disputa entre lideranças do campo da extrema direita não deve ser vista meramente como disputa entre egos ou entre camarilhas políticas desprovidas de enraizamento social
  • Freud no século XXIcultura peça transversal 24/07/2024 Por GILSON IANNINI: Trecho do livro recém-lançado
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES