A chacina na Vila Cruzeiro

Imagem: Giovanni Ferri
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO*

Essas megaoperações criminosas não têm valor como repressão ao tráfico. São manobras para desviar o foco da sociedade da corrupção, que alimenta integrantes de forças policiais e de aparelhos do Estado no Brasil

Durante os dias 24 e 25 de maio, estávamos encerrados no Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP, em São Paulo, participando da 50ª Sessão do Tribunal Permanente dos Povos. Examinávamos, entre outros temas, os crimes contra a humanidade atingindo a população negra, praticados pelo presidente Bolsonaro e seu governo de extrema direita.

Enquanto isso, lá fora, no Rio de Janeiro, a Polícia Militar, a Polícia Rodoviária Federal e outras forças especiais levavam ao cabo uma operação de doze horas, iniciada na madrugada. Armaram emboscada contra varejistas de drogas, à guisa de conter o narcotráfico, na favela Vila Cruzeiro, na região da Penha, no Norte da cidade. O saldo: 26 execuções, incluídas mortes por bala perdida.

Foram os próprios moradores que recolheram os corpos. Porta-vozes das polícias informaram que a tal “operação” – uma chacina – foi longamente preparada a fim de reprimir traficantes. O que se revelou, no entanto, foi (mais) um arroubo de incompetência das forças públicas, que resultou no extermínio de varejistas do tráfico – cinco com ficha criminal pregressa e o restante suspeito –, em vez de uma verdadeira operação de combate ao crime organizado. Evidentemente, várias mortes foram exibidas como consequência de um confronto “faz de conta”.

As polícias podem dizer o que quiserem sobre como essas mortes ocorreram, pois a cena do crime foi totalmente desfeita, os corpos abandonados na mata pelos policiais. Claro que, pela necropsia, onde a verdade emerge com exame das balas e das armas dos envolvidos, será possível saber mais. Mas a tradição carioca é fazer investigações rigorosíssimas sempre de mentirinha, muitas vezes, como em outras grandes chacinas, conduzidas em segredo, impedindo-se a sociedade civil de ter acesso aos dados da investigação.

Faz tempo que a policiais militares agem, até mesmo como forças de ocupação das favelas no Rio de Janeiro, tendo como alvo a população negra. A organização Favela Não Se Cala até chama esses “campos de extermínio” de “faixas de Gaza brasileiras”. As polícias no Rio, sem controles e sem limites, agem até mesmo com treinamento e armas israelenses, como as forças de ocupação dos territórios palestinos – as quais, segundo o jornalista Gideon Levy escreveu no Haaretz, o respeitadíssimo jornal de Israel, “tornaram-se tropas de assalto (do inglês, storm troops) no sentido mais profundo e carregado desse termo; não há outra maneira de descrevê-las”.

Essas storm troops brasileiras ousam criticar o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, por suas decisões corajosas para conter a sanha de extermínio e de racismo nas operações policiais, desde a pandemia de Covid-19. Decisões que governantes do Rio de Janeiro, em campanha eleitoral, não têm coragem de tomar, por demagogia com a extrema direita bolsonarista.

No passado recente, estava na moda considerar o mau funcionamento das polícias, em conluio com organizações criminosas, narcotraficantes e com as milícias – que hoje controlam a maior parte do território do estado do Rio de Janeiro – como um Estado paralelo. O fato é que nunca houve paralelismo algum. O crime organizado, o narcotráfico e as milícias estão incrustados no funcionamento do Estado, em todas as unidades da federação.

Como disse Pedro Constantine, um dos dirigentes do Favela Não se Cala, em entrevista à TV 247, o aparelho repressivo estatal não tem interesse de enfrentar o tráfico e as milícias para não perder lucros advindos da tolerância às atividades criminosas nas favelas. As armas de uso exclusivo das Forças Armadas, ostentadas pelos criminosos (no atacado e no varejo de drogas) não caem do céu. Muito provavelmente são fornecidas por aqueles que se beneficiam do comércio de drogas.

Está mais do que na hora de deixarmos farsas inúteis. Essa megas operações criminosas que resultam em chacinas não têm valor como repressão ao tráfico. Simplesmente são manobras para desviar o foco da sociedade da corrupção, que alimenta integrantes de forças policiais e de aparelhos do Estado no Brasil.

*Paulo Sérgio Pinheiro é professor aposentado de ciência política na USP; ex-ministro dos Direitos Humanos; relator especial da ONU para a Síria e membro da Comissão Arns. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Paulo Nogueira Batista Jr Thomas Piketty Otaviano Helene Ricardo Fabbrini Marcelo Módolo Francisco Pereira de Farias Celso Favaretto José Costa Júnior Marilia Pacheco Fiorillo José Machado Moita Neto Maria Rita Kehl Luis Felipe Miguel Kátia Gerab Baggio Eduardo Borges Luiz Bernardo Pericás Vanderlei Tenório Eugênio Bucci Ricardo Antunes João Carlos Salles Ronald León Núñez Bento Prado Jr. Lorenzo Vitral Fernando Nogueira da Costa Flávio R. Kothe Ari Marcelo Solon Ronald Rocha Tadeu Valadares Celso Frederico Rodrigo de Faria Valerio Arcary Michel Goulart da Silva Paulo Sérgio Pinheiro Ricardo Abramovay Anselm Jappe Gilberto Maringoni Luís Fernando Vitagliano Elias Jabbour Milton Pinheiro Afrânio Catani Andrew Korybko Lincoln Secco Claudio Katz Henri Acselrad Matheus Silveira de Souza Airton Paschoa Renato Dagnino Walnice Nogueira Galvão Gilberto Lopes Marcos Aurélio da Silva Bruno Fabricio Alcebino da Silva Denilson Cordeiro Alexandre de Freitas Barbosa João Lanari Bo José Dirceu Tarso Genro Sandra Bitencourt José Geraldo Couto Eleutério F. S. Prado Paulo Martins Flávio Aguiar Marcelo Guimarães Lima Leonardo Boff Alexandre de Lima Castro Tranjan Benicio Viero Schmidt José Luís Fiori João Adolfo Hansen Everaldo de Oliveira Andrade Jorge Branco Samuel Kilsztajn Julian Rodrigues Osvaldo Coggiola Leonardo Avritzer Priscila Figueiredo Érico Andrade Carlos Tautz Jean Pierre Chauvin Leonardo Sacramento Gabriel Cohn João Feres Júnior Atilio A. Boron Bernardo Ricupero Ronaldo Tadeu de Souza Marjorie C. Marona Eliziário Andrade Daniel Costa Mariarosaria Fabris André Singer Berenice Bento Eleonora Albano Vladimir Safatle Paulo Fernandes Silveira Luiz Marques Leda Maria Paulani João Sette Whitaker Ferreira Boaventura de Sousa Santos Marcos Silva Marcus Ianoni Luiz Renato Martins Dennis Oliveira Ricardo Musse Liszt Vieira Daniel Brazil Salem Nasser Henry Burnett Luiz Eduardo Soares Antônio Sales Rios Neto Luiz Werneck Vianna Mário Maestri Paulo Capel Narvai Lucas Fiaschetti Estevez Slavoj Žižek Francisco Fernandes Ladeira Fábio Konder Comparato Francisco de Oliveira Barros Júnior Antonio Martins Marilena Chauí Ladislau Dowbor Juarez Guimarães Heraldo Campos Michael Löwy Remy José Fontana Luiz Roberto Alves Luciano Nascimento Rubens Pinto Lyra Armando Boito Rafael R. Ioris Dênis de Moraes José Micaelson Lacerda Morais Luiz Carlos Bresser-Pereira José Raimundo Trindade Alysson Leandro Mascaro Plínio de Arruda Sampaio Jr. Tales Ab'Sáber Yuri Martins-Fontes Manuel Domingos Neto Jorge Luiz Souto Maior Andrés del Río Chico Whitaker Vinício Carrilho Martinez Sergio Amadeu da Silveira Alexandre Aragão de Albuquerque Caio Bugiato Manchetômetro Eugênio Trivinho Chico Alencar Daniel Afonso da Silva Igor Felippe Santos Michael Roberts Carla Teixeira Jean Marc Von Der Weid Fernão Pessoa Ramos Anderson Alves Esteves Antonino Infranca André Márcio Neves Soares João Paulo Ayub Fonseca Gerson Almeida João Carlos Loebens Valerio Arcary Bruno Machado Annateresa Fabris

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada