Pauline Rèage e as armadilhas do visível

Imagem: Colin Fearing
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Por ANDRÉA BORGES LEÃO & MARIANA MONT’ALVERNE BARRETO LIMA*

As alteridades que se revelam na escrita feminina podem ser de longa duração e guardar correspondências com o nosso tempo de excessiva visibilidade e presença autoral

1.

Uma fotografia captura o olhar de quem folheia a edição de número 534 da revista francesa Noir et Blanc, publicada no mês de junho de 1955. Mesmo para uma leitora brasileira em busca de outras informações na Biblioteca Nacional da França, a imagem fixa sua atenção na página 23, provocando vertiginosa curiosidade. Era uma fotografia em preto e branco de pouca definição para quem a via na microfilmagem dos originais.

No centro, uma mulher com a cabeça coberta por um lenço aparece sentada entre dois homens. A iluminação, aparentemente proposital, incidia de forma direta no rosto da mulher, mas também em um livro cuja capa expunha a fotografia. A legenda amenizava o misterioso cenário, permitindo identificar o evento e a personagem principal. Tratava-se da concessão à Pauline Réage, em 1955, do prêmio literário Deux Magots pelo livro Histoire d’O, publicado no ano anterior pela editora Gallimard. A legenda também informava que a autora preferia permanecer desconhecida, com o rosto coberto por um lenço, ainda que a mesma fotografia tivesse sido publicada em outras ocasiões, como, por exemplo, ilustrando a conferência de imprensa organizada, em 1954, pelo editor Jean-Jacques Pauvert na ocasião da apresentação do livro.

A revista Noir et Blanc, criada e editada por Jean Valdeyron (1911-1999), foi lançada em 1945. Com tiragem semanal, expunha fatos e fotos da atualidade, atraindo o leitor com episódios pitorescos, notadamente sobre a vida de artistas, estrelas e celebridades francesas e estrangeiras, carregando nos tons sensacionalistas. A matéria sobre o prêmio concedido à Mme. Réage não traz maiores informações, concentra-se sobre a excêntrica aparição da autora, exotismo ratificado pelo mistério e espetacularização construídos em torno de sua identidade real.

Desde a publicação de Histoire d’O, classificado no gênero literário “romance erótico”, não se sabia ao certo quem era ou qual nome próprio se escondia atrás do nome Pauline Réage. Na fotografia, os guardiões de sua identidade e presença visível são Albert Simonin (1905-1980) (à esq.), cenarista e escritor de romances policiais, e Raymond Queneau (1903-1976), primeiro romancista a receber o prêmio Deux Magots, em 1933, no tradicional Café Parisiense.

Fotografia 1 – Fonte : Noir et Blanc, 1955/06, Nº 534, p. 23. Arquivos da Bibliothèque Nationale de France François-Mitterand, MFILM FOL-Z-1384 – 1955/01 (N514) – 1955/12 (N564).

2.

A fotografia de Mme. Rèage na Noir et Blanc, signo da representação feminina de uma ausência pela presença, levanta questões atualíssimas sobre a fundamentação, intensidade e desdobramentos do conceito de autoria. Provavelmente serviu de peça publicitária em torno de um livro e de uma autora tornados moralmente condenáveis. Um livro que causou escândalo, provocando a ira de todas as ordens de censura, moral, política, intelectual, ao mesmo tempo em que atraía o público pelo mistério da sua autoria.

Histoire d’O conta as experiências de O, mulher enclausurada em um castelo nas proximidades de Paris, Roissy, vivendo as práticas de dominação e fantasias sexuais de René, seu carrasco. Segundo revelou a autora, o romance foi escrito à noite, em segredo, sem tréguas ou rasuras, como se estivesse num sonho”.[1] Nele, uma jovem encontrava na submissão sexual uma forma de liberdade.

Histoire d’O merece atenção, acima de tudo, por reinventar a categoria da libertinagem sob o prisma de uma mulher, na solidão e em contato com o seu próprio corpo, dando asas ao exercício da imaginação, deslocando o desejo feminino comumente apropriado por certa consciência do mal. É importante também por situar a sua autora na genealogia do erótico, inaugurada no século XVIII pelo Marquês de Sade, e por antecipar em algumas décadas o sucesso comercial da trilogia de Erika Leonard James, os 50 tons de cinza.

Afinal, o que pode ser uma autora no domínio do erótico? Para responder à pergunta, propomos uma breve reflexão sobre os limites impostos à literatura por uma imaginação ortopédica de meados do século XX. As restrições morais, lembra Roger Chartier (2012: 25), limitam as condições de composição e circulação das obras, “sejam elas quais forem”.

Para Michel Foucault (1992), o autor nasce de um constrangimento. É aquele ou aquela que se deixa pegar nas armadilhas do visível, na maioria das vezes pela publicação de um retrato, dedicatória a um príncipe, a quem funcione como patronato ou clientela, ou pela assinatura do nome próprio. Esses dispositivos são partes da obra. Com isso, o autor pode ser identificado, vigiado, julgado e punido. Da antiguidade até o fim da idade média, prossegue Michel Foucault (1992), as obras circulavam livremente.

A identidade autoral apenas se prefigurava. Na transição para a modernidade, pouco a pouco, a identidade do autor vai se delineando e os copistas de motivos eróticos são os primeiros apontados pela censura a responder por suas ilustrações, obrigados a mostrar suas caras e a responder processos penais. A autoria é uma categoria que só pode ser definida na mobilidade das obras. Passa e continua passando por mutações de uma época a outra, de um espaço social a outro.

Apontada como inventora invisível do romance, tudo indica que Mme. Réage ameaçava os laços sociais de jovens leitoras francesas, sedentas de novidades, deslocando-as para a consciência do mal. Seu maior risco seria o de absorvê-las na identificação com o prazer sexual feminino, em especial com o desejo por mulheres. O questionamento sobre o “sexo” de quem urdiu a trama de Histoire d’O, a curiosidade sobre o gênero do autor ou da autora, revelaria o mesmo risco de separação do convívio social.

O livro fere a concepção romântica do feminino e designa a sua autora pela imagem de um rosto coberto por um lenço. Com isso, inaugura uma função autora, aquela que nos fala sobre como o texto aponta para uma figura que lhe é exterior e anterior, caracterizando o funcionamento social de um discurso. Essa função, variável no tempo e no espaço, mostra toda a sua eficácia ao ligar a coerência interna de um discurso – textos escritos, imagens, relatos orais – a um dado sujeito (Chartier, 2001, 2012).

3.

Pauline Réage era o pseudônimo de Anne Cécile Desclos (1907-1998), escritora que adotou ao longo de sua carreira literária também o nome de Dominique Aury. As figuras de Pauline Réage e Dominique Aury se converteram em formas de clandestinidade encontradas pela jovem, licenciada em inglês pela Sorbonne, para escrever com relativa autonomia, escapando ainda da dominação “violenta e tirânica”[2] de seu marido. Filha de pai inglês, fez traduções francesas de importantes autores ingleses modernos. Dedicou-se ainda à crítica literária, feitura de ensaios, prefácios, poemas, secretariou e dirigiu coleções e edições de notáveis publicações literárias, formas práticas encontradas para afirmar-se num campo intelectual hegemonicamente masculino.

Na época do lançamento de Histoire d’O, Cécile Desclos trabalhava no Comitê de Leitura da editora Gallimard, além de atuar na prestigiosa NRF, a Nouvelle Revue Française. Trabalhava na produção de sua própria obra, enfrentando as armadilhas da visibilidade e, portanto, não se restringindo ao exclusivo universo da escrita. Uma conduta provavelmente ajustada às circunstâncias. Ou melhor, uma estratégia de autora elaborada por Anne Cécile Desclos, sob as peles de Pauline Réage e Dominique Aury, cuja matriz heurística pode ser conhecida no estudo das disposições internalizadas no curso da existência, seja por herança familiar ou aquisição social (Sapiro, 2014: 81).

Fotografia 2 – Anne Cécile Desclos/Dominique Aury/Pauline Réage, Novembro de 1994. Fonte : © Getty – Frederic REGLAIN/Gamma-Rapho via Getty Images.

Na divisão sexual do trabalho intelectual, sua produção, quando realizada, seguramente foi considerada menos legítima (Charron, 2013). Hoje, reconhecida sua notoriedade, reafirma-se sua originalidade não só como criadora de um novo gênero literário, uma “literatura libertina feminina”, mas notadamente como expoente das letras e literatura francesas. Seu trabalho sobre o estilo produziu uma marca forte, mesmo sem a assinatura de um nome próprio, e, sobretudo, produziu uma distinção na perspectiva literária, conquistando legitimidade de crítica. E impondo a sua estratégia de escritora intencionalmente elaborada na obra escrita e na fotografia que associa um rosto coberto iluminado por um livro ao romance Histoire d’O.

O recurso à clandestinidade não foi suficiente para romper as predisposições guardadas à orientação de seu destino social. Filha única, criada pela avó paterna, numa família católica empobrecida, casou-se aos 22 anos com o jornalista de origem catalã Raymond d’Argila. Encontrou em seu diploma pela Sorbonne, consequentemente no trabalho fora do lar, formas de viver o malogrado casamento e escapar à condição de “femme au foyer” (Aury, 1988).

A propósito, o casamento, ainda que de curta duração, em alguma medida aplacou socialmente as desconfianças sobre sua sexualidade, sem aparentemente arrefecer seu desejo pelas mulheres, ainda que tenha tido um intenso relacionamento com o escritor e editor Jean Paulhan, subscritor do prefácio de Histoire d’O desde sua primeira edição. Sobretudo para escritoras que enfrentam o trabalho de dominação simbólica com o próprio erótico, segredos e narrativas da intimidade.

Isto é somente parte daquilo que enfrentou em sua longa existência. Tendo atravessado todo o século XX, as duas grandes guerras mundiais, circulado pelos meios intelectuais e políticos dos mais conservadores aos mais progressistas, a vida profissional de Cécile Desclos expressa as condições sociais de produção dos diferentes tipos de dominação suportados. Sem o risco de cometer anacronismos, sua disposição para deixar-se insolitamente fotografar com rosto coberto, colocando em xeque a autoria da própria obra, parece denotar, para além da controvérsia socialmente criada em torno de sua identidade, uma crise identitária experimentada por ela mesma frente às restrições impostas a ela e à sua obra, assim como à legítima circulação enquanto autora em diferentes espaços públicos.

4.

Antes da denúncia ligeira, tomar como objeto de estudo a trajetória de uma autora que se consagra nestes termos, é dedicar-se ao exame dos modos sutis, e dos mais ríspidos também, de construção das autolimitações das ambições intelectuais e profissionais suportados pelas mulheres que, tendo incorporado o preconceito desfavorável ao seu lugar, enfrentaram silenciosamente (clandestinamente) sua exclusão. A atenção, por mais breve que seja, dedicada à vida de Cécile Desclos se faz sem heroísmos ou miserabilismos que possam, por ventura, separá-la dos homens e mulheres de seu tempo.

Uma das autoras desse post é a leitora brasileira que fixou o olhar na página 23 do número 534 da revista francesa Noir et Blanc. A outra usou de estratégias da escrita sociológica para organizar as ideias do texto. Não foi pouco o cuidado da dupla com os riscos de exotismo cultural dos que tratam anacronicamente os documentos da história como excentricidades dignas dos furos de reportagem. Para as duas sociólogas, as alteridades que se revelam na escrita feminina podem ser de longa duração e guardar correspondências com o nosso tempo de excessiva visibilidade e presença autoral.

*Andréa Borges Leão é professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC). Autora de Norbert Elias & a Educação (Autêntica).

*Mariana Mont’Alverne Barreto Lima é professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Publicado originalmente no blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social.

Referências


AURY, Dominique. (1988). Vocation clandestine: Entretiens avec Nicole Grenier. L’Infini. Paris: Gallimard.

CHARRON, Hélène. (2013). Les formes de l’illégitimité intellectuelle – Les femmes dans les sciences sociales françaises 1890-1940. Paris: CNRS Éditions.

CHARTIER, Roger. (2001). Escribir las práticas. Foucault, De Certeau, Marin. Buenos Aires: Matial.

CHARTIER, Roger. (2012). O que é um autor? Revisão de uma genealogia. São Carlos: Edufscar.

FOUCAULT, Michel. (1992). O que é um autor? Editora Nova Vega.

SAPIRO, Gisèle. (2014). La sociologie de la littérature.Paris: La Découverte.

Notas


[1] Radio France. Dominique Aury (1907-1998), “Histoire d’O”, Série “Un parfum de scandale”, 14/08/2020.

[2] Id. Ibidem.


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