Por MÁRIO MAESTRI
A tese do caráter feudal do Brasil nasceu da sobreposição superestrutural forçada de características do feudalismo europeu ao mundo colônia luso-brasileiro
Em “A colonização das Américas em debate”, postado no site A Terra é Redonda, critiquei a tentativa de recuperação da proposta de uma colonização americana capitalista desde praticamente a “Descoberta”, interpretação que conta ainda com algum consenso. Em forma sumária, questionei, igualmente, a defesa da transposição do feudalismo europeu às Américas, em geral, e ao Brasil, em particular, tradicionalmente, oposta à “colonização capitalista”, atualmente em forte descrédito científico. Esse importante debate sobre os modos de produção no passado foi praticamente abandonado com a vitória da maré liberal de fins dos anos 1980, sinalizada pela destruição da URSS e da dita área socialista. [MAESTRI, 2023.]
Em “A formação histórica brasileira em debate”, também postado em A Terra é Redonda, José Ricardo Figueiredo impugnou a minha crítica, que propôs como “revisionista”, empreendendo defesa da tese do passado feudal do Brasil, com resquícios feudais nas décadas posteriores à 1888-1889, segundo ele do ponto de vista do “marxismo ortodoxo”, que propôs representar. O autor, professor aposentado da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp é, no mínimo, muito próximo ao PCdoB, tendo sido membro do conselho diretor da Fundação Maurício Gabrois de São Paulo, em 2013. [GABROIS, 2013.] O que ajuda a compreender essa defesa retardatária.
Figueiredo defende, ainda que não raro em obliquo, o pacote inteiro “ortodoxo” que acompanhou, no passado, aquela formulação, quando se apresentava como interpretação marxista ortodoxa: a “revolução por etapas”, com a participação de setores “desenvolvimentistas da burguesia”, em luta contra o latifúndio e o imperialismo. Programa colaboracionista explicado como devido, segundo ele, a uma proposta fragilidade das “organizações populares”, no Brasil, país de “baixo desenvolvimento industrial e com a dominação coronelista do campesinato”, antes de 1964.
Sugere, assim, o acerto da defesa de reforma agrária, “para o desenvolvimento nacional”, associada à luta anti-imperialista, sem luta pelo socialismo. Ou seja, nos marcos da ordem burguesa e capitalista. Programa então defendido, sem maiores variações, pelo PCB e o PCdoB, que levou ao desastre de 1964. Derrota, sem resistência, de sequelas históricas para a revolução no Brasil e mundial, em um momento em que o mundo do trabalho conhecia um movimento ascendente iniciado nos anos 1950. Fracasso histórico que pagamos até hoje. [MAESTRI, 2019.]
Colagem pragmática
A tese do caráter feudal do Brasil nasceu da sobreposição superestrutural forçada de características do feudalismo europeu ao mundo colônia luso-brasileiro, acomodando-o, assim, a uma cama de Procusto historiográfica, por exigências político-ideológicas. [LACLAU, 1973; LAPA, 1981.] O status acadêmico e científico “marxista” de que essa leitura gozou por décadas deveu-se à chancela que recebeu do dogmatismo stalinista, hegemônico no movimento comunista e operário mundial, até inícios dos anos 1960. A caracterização feudal servia de substrato às políticas colaboracionistas internacionais da burocracia stalinista moscovita, desde sua consolidação na URSS. [BROUÉ, 1964.]
Ao construírem sua interpretação materialista-histórica do devir da humanidade, Marx e Engels desvelaram o suceder-se de modos de produção, fortemente impulsionada pelas oposições de classe. Os fundadores do marxismo centraram suas investigações na evolução histórica da Europa Ocidental, que alcançara o mais elevado estágio civilizatório, a sociedade capitalista, através da sucessão de modos de produção “comunista primitivo”, “escravista”, “feudal” e “capitalista”. O último, base para a luta pela sua superação em direção a um modo de “produção socialista” e, na continuação, “comunista”. Essa leitura já embasou o Manifesto comunista de 1848. [MARX & ENGElS, 1848.] Aqueles modos de produção foram definidos, ao máximo, como fundamentais, e não como universais.
Karl Marx jamais universalizou a linha evolutiva da Europa Ocidental, como registrou em forma explícita em suas cartas ao “diretor dos Otiechestviennie Zapiski, em 1877, e à Vera Zassulich, em 1881. Nelas, declarou “taxativamente” “não atribuir caráter universal à linha de evolução da Europa ocidental” que propusera. [GORENDER, 2016: 65.] Marx se referira, igualmente, a um “modo de produção asiático”, desconhecido pela Europa, de formações sociais nas quais as classes dominantes extraiam sobre-produto aos produtores diretos sem deterem os meios de produção. [CERM, 1974; SOFRI, 1978.] Tema que não desenvolveu por se encontrar fora do seu espaço de preocupação – a gênese do capitalismo e sua superação.
Vladímir Lênin abraçou a generalização abusiva da linha de desenvolvimento da Europa Ocidental, com alguma reticência, em sua conferência, “Acerca do Estado”, de 1919, na Universidade Sverdlov, publicada por primeira vez, em 1929, após sua morte, quando da consolidação da burocracia na URSS. Salvo engano, Vladímir Lênin não reapresentou e nem desenvolveu essa interpretação.
Na conferência, propôs: “O desenvolvimento de todas as sociedades humanas ao longo de milhares de anos, em todos os países, sem exceção, revela-nos uma sujeição geral a leis, uma regularidade e consequência; de jeito que temos, primeiro, uma sociedade sem classes […]; a seguir, uma sociedade […] escravista.” [destacamos] “Esta forma foi seguida na história por outra: o feudalismo.” “A história da humanidade conhece dezenas e centenas de países que tenham passado ou estão a passar na atualidade pela escravatura, o feudalismo e o capitalismo.” [LENIN, Germinal, 2019.]
Marxismo dogmático
Essa visão sobre a sucessão universal necessária de modos de produção foi consolidada, com objetivos pragmáticos colaboracionistas, estranhos a Lenin, por Joseph Stalin. Em Sobre o Materialismo Dialético e o Materialismo Histórico, de 1938,ele afirmou: “A história conhece cinco tipos fundamentais de relações de produção [sic]: o comunismo primitivo, a escravidão, o feudalismo, o capitalismo e o socialismo.” E concluiu: Tal é o quadro que o desenvolvimento das relações de produção entre os homens [que se] apresenta no curso da história da humanidade.”[STALIN, 1938.] Confundia “modos de produção” e “relações de produção” fundamentais.
A universalização abusiva da linha evolutiva da Europa Ocidental proposta por Marx e Engels permitiu sua instrumentalização colaboracionista. Definiu-se que todos os países de capitalismo atrasado, semi-coloniais e coloniais, que conheceriam instituições do “tipo feudal” deviam impor ordem capitalista madura, antes de avançar a luta pelo socialismo. E a consolidação do capitalismo se daria em aliança e, mesmo, sob a direção de burguesias definidas como progressistas, desenvolvimentistas, etc., pretensamente interessadas em avançar a maturação da ordem burguesa, em aliança com os trabalhadores. O Brasil se encontraria nesse caso. [PRESTES, 2015.] A essa visão se opunha a defesa da realização das tarefas democrático-burguesas em associação com as socialistas, como ocorrera em 1917 – “revolução permanente”.
O abandono da luta pela revolução socialista mundial, principal bandeira da III Internacional, quando de sua fundação e durante seus primeiros anos, deveu-se à imposição da proposta de construção isolada do socialismo na URSS. A desarticulação da revolução socialista mundial facilitaria que a burocracia soviética, interessada em consolidar e gozar de seus privilégios, estabelecesse relações não conflitiva e de colaboração com governos burgueses, oligárquicos, etc. Mesmo quando a III Internacional radicalizava suas políticas, elas comportavam, sempre, a aliança com as classes burguesas progressistas, como em 1935, quando da quartelada da Aliança Nacional Libertadora. [FRANK, 1979; PRESTES, 2015.]
Um Brasil com nobres e servos
O autor de “A formação histórica brasileira em debate” descreve e defende a proposta de transposição superestrutural do feudalismo europeu ocidental para ao Brasil colonial: “De fato, as capitanias reproduziam, formalmente, o anfiteatro enfitêutico característico da propriedade territorial feudal européia, em que a propriedade da terra era tripartida entre o rei, o nobre e o camponês.” No Brasil, segundo ele, os donatários recebiam, sobretudo “em retribuição a feitos militares”, grandes feudos, devendo “compromissos econômicos e políticos” ao rei. E, a seguir, eles distribuiriam sesmarias de terra a quem tivesse recursos para explorá-las, financiando as benfeitorias e, sobretudo, adquirindo e explorando “escravos”.
Em seu artigo, José Ricardo Figueiredo concorda comigo na crítica à proposta de uma colonização capitalista desde a origem dos tempos coloniais. Isso porque a intencionalidade dos colonizadores de obter lucro e o capital comercial não eram características do capitalismo, mas realidade habitual na Antiguidade. E, avançaríamos, para o método marxista de interpretação, não importa o que se faz, mas como se faz – ou seja, o desenvolvimento das forças materiais e as relações sociais de produção, que se circunscrevem em modos de produções singulares. E é aí que a porca começa a torcer o rabo para o nosso crítico, já que ele aceita -ou não estranha- que o feudalismo que defende explorasse trabalhadores escravizados. Isso porque, como avancei, o “camponês” foi, por séculos, com destaque para os tempos coloniais, uma categoria marginal no Brasil, dominado pela produção escravista colonial.
Em sua defesa da construção tradicional de um feudalismo imaginário para o Brasil, José Ricardo Figueiredo nega o caráter alodial da propriedade sesmeira por mim proposto. Afirma que a sua concessão exigia a necessária permissão do rei e dos donatários para que ela fosse vendida, doada, legada, herdada etc. E que os novos proprietários passariam a dever as obrigações ao rei e ao capitão-geral a que estavam obrigados os sesmeiros originais. Nenhuma documentação é apresentada para apoiar essa afirmação que contradita os fatos históricos.
Em 1534, a Carta Régia da doação da Capitania do Espírito Santo determinava, como habitual, que os donatários repartissem em sesmarias as terras da capitania, a “quaisquer pessoas de qualquer qualidade”, “livremente sem foro, nem direito algum”, à excepção do “dízimo de Deus”. E os donatários podiam adquirir sesmaria repartida apenas “por título de compra verdadeira”, após a colonização pelos sesmeiros por oito anos. [DOCUMENTOS, 1937.] Gorender lembra que o “dízimo eclesiástico perdeu no Brasil a natureza de tributo feudal e se converteu em imposição meramente fiscal”. [GORENDER, 2016: 410.]
O regime sesmeiro
A documentação é límpida nesse sentido. As doações de sesmarias, sem foros, foram a forma geral de ocupação das colônias luso-brasileiras, mantidas até a Independência. Os donatários eram investidos de variados poderes administrativos, judiciários, etc., recebendo os proventos devidos. A Coroa detinha o monopólio do comércio do pau-brasil e dos escravos; o quinto sobre todos os minerais preciosos; o dízimo eclesiástico, devido à concessão papal do Padroado da Ordem de Cristo aos reis de Portugal, em 1851. [HCPB, 3, p. 167 et passim.] Os arquivos da Colônia e do Império guardam dezenas de milhares de atos de compra, de venda, de partilha, de aluguel, etc. de terras, sem travas além das determinações mercantis de praxe, praticamente não havendo nas vendas diferença entre terrenos urbanos e rurais.
Sobre sesmarias, negociáveis desde sempre, não pesavam sensos em dinheiro, trabalho ou produtos. Estavam, portanto, ao contrário do que ocorria na Península Ibérica, livres de sensos e … despidas de servos. Não se tratava, portanto, de liberalidade da Coroa, já que os sesmeiros deviam, para rentabilizar as suas doações, arcar com a compra de trabalhadores escravizados, que não possuíam qualquer direitos sobre as glebas, nem gozavam a autonomia relativa dos servos. Eram trabalhadores escravizados no sentido estrito do termo, que rendiam tributos aos cofres reais quando, introduzidos nas colônias. Nada, mas nada mesmo, sugere uma ordem feudal, ao se apreender a antiga formação social do Brasil nas suas determinações essenciais a partir da documentação disponível.
Registra igualmente o caráter não feudal da antiga formação colonial e imperial do Brasil, não ter sua organização produtiva, o escravismo colonial, jamais se servido da importante parafernália produtiva que sustentou a superação do escravismo romano tardio e o desenvolvimento da agricultura feudal. Tema estudado em detalhes por Marc Bloch, morto, há precisamente oitenta anos, pelo nazi-fascismo, em compêndios como Trabalho e técnica na Idade Média [BLOCH, 1984, 1968; MICHAUX, 1970.]. Nem mesmo os arados rústicos do escravismo romano tardio aguentavam os mal-tratos do trabalhador escravizado colonial.
No feudalismo, os servos se desdobravam em cuidados com os instrumentos básicos de trabalho, pois eram de sua propriedade. No Brasil, a grande ferramenta da escravidão colonial, propriedade do escravizador, foi o enxadão, rustico, pesado e resistente, que sofria nas mãos do cativo, não apenas porque era um símbolo de sua exploração desapiedada. E a escravidão colonial desconheceu igualmente a reprodução vegetativa da população servil, vantagem diferencial das relações feudais, em relação ao escravismo romano tardio. No mundo feudal, o filho do servo, ao menos até a idade adulta, trabalhava em parte para seu progenitor. [DOCKÉS, 1979; BLOCH, 1968.] Na escravidão colonial, o filho do escravizado era propriedade do escravizador, assim como toda a sua produção, sendo a reprodução da população feitorizada garantida pelo tráfico transatlântico, até 1850, e pelo inter-provincial, até inícios dos anos 1880. [CONRAD, 1975, 1985.]
Modos escravistas de produção
José Ricardo Figueiredo propõe que, para Jacob Gorender, o “escravismo antigo seria principalmente patriarcal, ou seja, destinado ao serviço da família […], enquanto o escravismo moderno seria principalmente mercantil, destinado ao mercado”. E agrega que o marxista baiano, reconhecendo a “existência de escravidão patriarcal modernamente, e de escravidão mercantil na antiguidade”, ambas em forma subordinadas, da “diferença quantitativa deduz [arbitrariamente] uma diferença qualitativa: um novo modo de produção!” Para o defensor de um passado brasileiro feudal, não haveria diferença entre a escravidão romana e a colonial, sendo a segunda um renascimento da primeira, mil anos após crise como forma de produção dominante.
Jacob Gorender desenvolveu boa parte de sua monumental investigação na clandestinidade, na prisão e, em liberdade, sempre, sob condições precárias de trabalho intelectual. Jamais gozou das benesse acadêmicas. Foi obrigado a um enorme esforço para manter atualizado seu amplíssimo conhecimento empírico e teórico sobre as ciências sociais. Por falta de tempo e condições, jamais empreendeu um estudo detalhado da escravidão no Baixo Império romano, tendo tardiamente entrado em conhecimento com a historiografia italiana sobre a escravidão clássica e as traduções ao italiano de obras magníficas de historiadores soviéticos. [MOLOWIST, 1991; KUZISCIN, 1984; SCHTAIERMAN, & TROFIMOVA, 1975.]
Em o Escravismo colonial, Jacob Gorender se refere, en passant, à proposta de E. M. Schtaierman da existência de “escravismo com relações mercantis ampliadas”, distinto do patriarcal dos primeiros tempos de Roma. Sobre a questão, propôs em forma não peremptória:“Penso que, em ambos os casos, tratou-se de escravismo patriarcal, ainda que em diferentes graus de desenvolvimento. A influência das relações mercantis, mesmo no ápice de sua ramificação, nunca chegou a ser decisiva, a ponto de eliminar a prevalência da economia natural […].” [GORENDER, 2016.] A última afirmação contradiz a realidade histórica.
Em meu artigo “A colonização das Américas em debate”, apresentei sinteticamente as diferenças de qualidade entre o escravismo patriarcal greco-romano, onde dominava a economia de subsistência, com uma esfera mercantil atrofiada, e o escravismo romano que defini como “pequeno-mercantil”, da villa rustica, núcleo produtivo hegemônico nos dois séculos anteriores e posteriores a nossa época, voltado para o mercado de então, com esfera de subsistência subsidiária. [MAESTRI, 1986; CARANDINI, 1979; CATONE, 2015, COLUMELLA, 1977.] A grande diferença entre o escravismo pequeno-mercantil, romano, e o escravismo colonial, americano, deveu-se à extrapolação da orientação mercantil do último, com todas as consequências decorrentes, no contexto da primeira expansão do “mercado mundial”.
Fracasso romano do grande escravismo mercantil
Apesar de tropeçar na universalização do domínio do modo de produção escravista patriarcal na Antiguidade, o que o comunista baiano defendeu e descrevo foi precisamente a superação quantitativa, do escravismo dito clássico, pelo colonial, que, conhecendo salto de qualidade, nos Tempos Modernos, ensejou um modo de produção historicamente novo, apesar das identidades gerais entre as formas de produção escravista. Em verdade, o escravismo pequeno-mercantil, da villa rustica, por séculos forma de produção dominante, se mostrou historicamente incapaz de se transformar, no Império Romano tardio, em grande escravismo mercantil. Salto de qualidade que foi ensaiado e fracassou sobretudo na produção tritícola siciliana. [CICCOTTI,1977.]
Ao contrário do que José Ricardo Figueiredo sugere, Jacob Gorender sempre defendeu que na antiga formação social do Brasil existiria, como modo produção dominante, o escravista colonial, subsistindo igualmente outros modos e formas de produção subordinados, entre eles, uma muito restrita produção camponesa. Produção colonial-camponesa que conheceu núcleos dinâmicos sobretudo no sul do Brasil, com a chegada de camponeses sem terra de língua alemã e italiana sobretudo a partir dos anos 1820. [WIEDERSPAHN, 1979; ROCHE, 1969; MAESTRI, 2000.]
Antes da Abolição da escravatura e dissolução do modo de produção escravista colonial, dominante praticamente de 1530 a 1888, subsistiram no Brasil relações servis diversas, ao lado da escravidão, servidão plena. Formas de servidão múltiplas que assumiram maior importância com a crise e dissolução do escravismo colonial, como no caso dos ditos “filhos de criação”. [DALLA VECCHIA, 2001.] Elas se basearam na coesão econômica, ideológica, física, etc., sem serem heranças ou resquícios de feudalismo inexistente. Karl Marx lembrava que: “[…] acontecimentos notavelmente análogos, que, no entanto, ocorrem em meios históricos diferentes, conduzem a resultados totalmente distintos.” [Apud GORENDER, 2016: 65.]
A adjetivação do novo modo de produção escravista não nasceu do caráter colonial do Brasil pré-1808, mas devido a sua gênese supor o nascimento e desenvolvimento do mercado internacional, o que a designação colonial circunscreve seu caráter econômico e não político. A bem da verdade, o escravismo no Brasil alcançou verdadeiro ímpeto após a Independência, quando o Império do Brasil assumiu status semi-colonial. E a descrição essencial do modo de produção escravista colonial, no tratado de J. Gorender, deu-se a nível de seu desenvolvimento das forças produtivas materiais e das relações sociais de produção, tidos como os elementos determinantes das estruturas jurídicas, políticas, institucionais, ideológicas, etc. decorrentes.
Escravidão pastoril
Que formas de relação de produção semi-servis como o cambão, a meação, a parceria etc. “seriam escravistas para Jacob Gorender” é uma proposta totalmente nova. Ficamos, portanto, esperando que Figueiredo cite onde e quando o marxista baiano fez semelhante afirmação desatinada. Nesse caso, com em geral, Figueiredo não apresenta as referência do que propõe, o que seria de rigor e enriqueceria a discussão. Em verdade, falta ao autor uma maior intimidade com a literatura histórica sobre a escravidão, sobre a qual se pronuncia em forma peremptória. Realidade registrada na sua abordagem aproximativa da escravidão greco-romana patriarcal e mercantil, o que é de certa forma compreensível e desculpável.
Mais problemático para nossa discussão é seu desconhecimento sobre uma historiografia sobre o escravismo colonial já velha de mais de décadas, que uma leitura atenta do Escravismo colonial poderia mitigar. Realidade materializada na sua afirmação que, no “Sul, as relações de trabalho no pastoreio não eram escravistas; a escravidão só foi introduzida na produção do charque para comércio”. O Rio Grande do Sul foi uma das principais capitanias e, sobretudo, províncias escravistas, o que foi devido sobretudo a uma produção pastoril apoiada em forma dominante na escravidão, através da exploração do “cativo campeiro”.
Sobre o escravismo pastoril sul-rio-grandense, dominante, além de uma volumosa documentação primária editada, contamos com uma significativa quantidade de estudos científicos cabais sobre a questão, como, entre tantos outros, os de Beatriz Eifert, Eduardo Palermo, Euzébio Assumpção, Helen Osório, Luiz Farinati, Paulo Xavier, Paulo Zarth, Setembrino dal Bosco. E o fenômeno da escravidão no pastoreio não se restringe ao Extremo-Sul, estendendo-se a Santa Catarina e ao Paraná, como registraram os estudos de, entre outros, Fabiano Teixeira dos Santos e de José Lúcio da Silva Machado. Coordenei investigação financiada pelo CNPq sobre a produção escravista no pastoreiro, centrada no Rio Grande do Sul, no Piauí e no Mato Grosso, publicada em três volumes. [MAESTRI, LIMA, BRAZIL, 2008-2010.]
José Ricardo Figueiredo faz cara emburrada para a proposta de multiplicidade de modos de produção conhecidos pela humanidade, além dos referidos diretamente por Karl Marx. E, nessa linha, impugna minha referência ao modo de produção doméstico, tributário, de linhagem, como exemplos dessa variedade. Referi-me a esses três, pois são aqueles com que tenho maior intimidade, ao estudar a história e a historiografia da África negra pré-colonial. Não podemos, definitivamente, aproximar a produção doméstica aldeã africana, sustentada por uma horticultura e agricultura servindo-se de ferramentas de ferro, ao comunismo primitivo de Marx e Engels, elaboração dependente do reduzido material empírico com que contavam, em meados do século XIX. [MAESTRI, 1988.]
Campo de estudos a ser explorado
Diferenciei a proposta de modo de produção doméstico do de linhagem, devido a ênfase de alguns africanistas na proposta da definição sobre as relações de produção a partir dos laços classificatórios de parentesco, visão que não acompanho, mas que levanta questão importantes. [VANSINA, 1980.] É também impossível aproximar os imponentes Reino de Ghana, Império de Mali, Império de Songhai, etc. às federações de aldeias – cheferias –o, baseadas na produção doméstica. [LOVEJOY, 1983; MEILLASSOUX, 1975, 1977, 1995; MIERS & KOTPYTOTT, 1977; MILLER, 1995; MAESTRI, 1988.] Salvo engano meu, não temos, ainda, estudos do modo de produção das comunidades tupi-guaranis, objeto, até agora, sobretudo de estudos antropológicos e arqueológicos. A simples definição como formações tributárias das sociedades pré-colombianos da África do Sul, Central e do Norte é simplificação empobrecedora, que exige um melhor detalhamento. [MURRA, 1980; SORIANO, 1981.]
O mesmo podemos dizer das diversas modalidades de “repartimentos” e, sobretudo, “encomiendas”, que deram origem, em alguns casos, a formações sociais substancialmente diversas, como no caso da República do Paraguai. [MAESTRI, 2015.] Para não falar que as encomendas mitaya e anacona, também definidas abusivamente como organizações feudais, conheceram relações de produção diversas, sob a cobertura da mesma submissão ao encomendero. Autores se referem a um “modo de produção” “gaúcho”, “pequeno camponês colonial”, “quilombola”, etc. Para não falar de formações asiáticas, pouco conhecidas entre nós. Realidades que apenas começavam a ser abordadas quando da crise dos estudos marxistas, no contexto da vitória histórica da contra-revolução assinalada. [CERM, 1974; SOFRI, 1978.]
Jamais houve, como propõe o autor, uma “abolição literária” da tese do feudalismo brasileiro e americano. Houve, sim, a consciência crescente do caráter ideológico dessas propostas, sustentada por décadas por um marxismo castrado pela ditadura stalinista, como visto, que entrou em crise estrutural, com a dissolução da URSS. Uma proposta que, ao bem da verdade, correspondia, igualmente, aos impulsos colaboracionistas de facções sociais pequeno burguesas, burguesas e mesmo de segmentos da aristocracia operária e burocracia sindical, mais inclinados à acomodação do que ao confronto social.
Essa leitura da realidade atraiu e neutralizou intelectuais de indiscutível valor, que produziram trabalhos fundamentais sobre nosso passado, como Octávio Brandão, Alberto Passos Guimarães, Rui Facó, Werneck Sodré, Édison Carneiro, e mesmo Caio Prado Júnior, para citar apenas os mais conhecidos, impedindo que se levantassem como efetivos intelectuais orgânicos das classes oprimidas no Brasil, ao pregarem, no frigir dos ovos, a pacificação social.
Caracterização revolucionária
Jacob Gorender e Ciro Flamarión não inventaram um escravismo colonial, por um ato de vontade ou exibicionismo. Descreveram essencialmente uma realidade social objetiva a partir do estudo meticuloso da informação e da historiografia disponíveis, servindo-se em forma criativa e erudita do método marxista. A definição do caráter escravista colonial da antiga formação social brasileira alicerçou a possibilidade de desenvolver, sobre bases sólidas, a discussão do passado e do presente do Brasil e colocou o mundo do trabalho -os trabalhadores escravizados- no âmago da dinâmica de nossa formação social. Até então, em geral, se escavacava o passado do Brasil colonial e imperial à procura da resistência de um campesinato quase inexistente, desconhecendo-se a diuturna luta do trabalhador feitorizado. Aquela definição avançou portanto em forma substancial o conhecimento de nossa realidade, emperrado pela falsa disjuntiva feudalismo versus capitalismo.
Caminho que José Ricardo Figueiredo se nega a empreender em seu artigo. Sua visão dos modos de produção, ignorando a realidade histórica, social e econômica objetiva, assume um viés escolástico, que confunde com a “ortodoxia” marxista. Ele conclui sua crítica divulgando uma sua publicação, nas suas palavras, construída com uma compilação de citações de autores, por ele escolhidos, que se pronunciaram sobre a realidade brasileira, comentadas em forma mais ou menos ampla. Uma aproximação ao passado histórico através de textos sacralizados, certamente de utilidade e interesses, desde que seja complementada por um estudo sistemático da documentação coeva e dos avanços da historiografia. Tudo submetido a uma aplicação cuidadosa do método marxista, ao menos para aqueles que se reivindicam do materialismo histórico, como José Ricardo Figueiredo e eu. Já encomendei o trabalho do colega, pois não o conhecia.
Em nota conclusiva, José Ricardo Figueiredo assinala orgulhoso que não citou em seu artigo a Stalin, grande responsável pela proposta mecanicista dos cinco estágios necessários e da “revolução por etapas”, aliada à burguesia, como vimos. E esclarece que não o fez por desqualificá-lo. Muito ao contrário, procedeu de tal modo para “mostrar que a defesa da tese ortodoxa sobre modos de produção no Brasil contra o revisionismo não dependem [sic] em absolutamente nada daquele dirigente soviético.” Diria que o autor não precisava se desculpar pela não citação do “Pai dos Povos”, já que ele o acompanhou, silencioso, mas sempre presente, durante todo o desenvolvimento do artigo, referendando-o.
*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Filhos de Cã, filhos do cão. O trabalhador escravizado na historiografia brasileira (FCM Editora).
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