Os cachorros das quatro praias

Lincoln Seligman, Garrafas de vinho embrulhadas, 2010.
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Por AFRÂNIO CATANI*

Comentário sobre o livro “Perros del diablo”, de Letícia Núñez Almeida

1.

O médico otorrinolaringologista, poeta, contista, memorialista, romancista, ensaísta e dramaturgo Miguel Torga (1907-1995) não é tão conhecido no Brasil, mas o é bastante em Portugal. Escreveu mais de seis dezenas de livros (18 de poesia, 22 de prosa, cinco peças de teatro e 16 volumes de seus diários, que compreendem poesia e prosa) e recebeu muitos prêmios.

Nascido em São Martinho de Anta, Trás-os-Montes, era um português irritadiço, combativo, talentoso que, ao longo de quase toda a vida, imprimia os seus livros em gráficas e os vendia sem se valer do suporte de qualquer casa editorial. Costumava dizer que, se seus livros encalhassem, não daria prejuízo para ninguém. Só tardiamente publicou um ou outro texto sem ser independente e, pouco antes de falecer, aceitou que sua obra completa fosse divulgada por respeitada editora, que comercializa até hoje sua copiosa produção literária.

Em 1940, Miguel Torga publicou Bichos, contendo 14 contos, em que cada um deles tem como personagem principal um animal, interagindo quase sempre em desvantagem com os homens ou com os elementos da natureza. O livro conhece, até hoje, sucessivas edições em português e em vários idiomas (inglês, francês, espanhol, romeno, japonês, alemão, servo-croata) – meu exemplar foi editado pelo autor em janeiro de 1995 na Gráfica de Coimbra Ltda., com uma tiragem de 50 mil exemplares. Nele desfilam os cachorros Nero e Ferrusco, o touro Miura, o pardal Ladino, o corvo Vicente, o galo Tenório, o jerico Morgado, o sapo Bambo, o gato Mago, além de pintassilgos, cigarras, pastores, crianças.

Perros del Diablo, da socióloga Leticia Núñez Almeida (1978), no meu entender, mantém um bom diálogo com os Bichos, de Miguel Torga, e com o maravilhoso cão vira-lata, Mr. Bones, personagem central de Timbuktu (1999), de Paul Auster (1947).

2.

Doutora em sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Letícia é professora na Universidad de la República del Uruguay (UDELAR), em Rivera, e pesquisadora do Sistema Nacional de Investigadores de Uruguay. Escreveu vários livros e artigos em sua área de atuação profissional, destacando-se Tolerância Zero ou Nova Prevenção: a experiência da política de segurança pública no município de Porto Alegre (Rio de janeiro: Lumen, 2015); O estado e os ilegalismos nas margens do Brasil e do Uruguai: um estudo de caso sobre a fronteira de Sant’Ana do livramento e Rivera (Porto Alegre: Editora Fi, 2016); Subsistemas fronteiriços do Brasil: mercados ilegais e violência (Rio de janeiro: Gramma, 2017).

Já este Perros del Diablo é uma ficção bem humorada com simpáticas ilustrações em aquarelas da artista argentina Florencia Valle (1987) que, desde 2018, vive em Punta del Diablo “em uma casa de barro construída por ela e pelo companheiro”. Mora lá com dois filhos, uma cachorra (Pancrácia) e uma gata (Mirtha).

Perros del Diablo compõe-se de 20 pequenas estórias que se passam em Punta del Diablo, pequena cidade piscatória e turística à beira-mar, na costa leste do Uruguai, em 2019. A população que lá vivia era de pouco mais de 800 pessoas e a cidade está composta por quatro praias: Playa de la Viuda, Playa de los Pescadores, Playa del Rivero e Playa Grande. “Por aqui temos de tudo: hippies, tartarugas, italianos, artesãos argentinos, pescadores, lagartos, gatos, ricos fugindo do burnout e muitos, mas muitos cachorros. Se você não gosta de animais, não é um lugar para ti” (p. 19).

Bem, mas acho que antes de prosseguir, é preciso dizer algumas palavras sobre o narrador. Ele se chama Artigas e assim se define: “Sou um gato uruguaio, cinza, muito peludo e com olhos verdes” (p. 19). O gato perspicaz acrescenta que está vivendo em Punta del Diablo, “um povoado da costa do Uruguai – um país cheio de vacas, onde se pode consumir marijuana na rua, as mulheres podem abortar legalmente e de onde se pode cruzar, caminhando ou de barco, para Argentina, Brasil, China e Nigéria” (p. 13).

Artigas é tinhoso, malandro, e revela na página final da narrativa que escreveu sob pseudônimo: seu nome, na verdade, é Theo. “Usei esse pseudônimo nobre para dar seriedade a estes contos de um gato gordo, presunçoso e malcriado” (p. 121).

Nas páginas de Perros del Diablo vão surgindo gatas, gatos, cachorras e cachorros aos montes, das mais variadas raças, bem como moradoras e moradores locais, algumas crianças… Todo esse microcosmo vive em harmonia no conjunto de fábulas contado pelo alter ego de Letícia, o Artigas – que na verdade é o Theo.

Katunga (“cachorra negra, grande, forte, pelo curto, com cara de lagarto”), Negrito (Filho de Katunga, parecido com a mãe, tem “algo de lavrador roots, musculoso, sério e brilhante”), Manuela (sharpei amarelada, com três patas, nascida na China, que “chegou em Punta del Diablo em um container”) e Artigas vivem com “um casal de humanos argentinos, Fabi e Miguel” em Angelo Cabañas, “idealizadas e construídas pelas mãos e dos sonhos de ambos” – ele torneiro mecânico, socialista e marinheiro; ela, arquiteta, surfista e pintora. O casal odeia os bancos (p. 21).

O gato narrador se encanta com Fabi, que lhe dá comida e água, lhe saca as pulgas e ri quando ele sai correndo atrás das rãs. “Como é filha de um famoso cantor de tango, tudo o que ela fala parece música, ou melhor, tudo o que faz é melódico, e a nós nos encanta a vida com ela” (p. 21).

Para Artigas, é muito fácil viver com os humanos, pois eles “são previsíveis”. “Todos os dias fazem o mesmo, têm uma carência infinita em relação a nós…” (p. 22). E mais: “muito cedo entendi que podia fazer o que queria com aqueles que andam em duas patas; a eles lhes encanta surpreender-se com nossos instintos incontroláveis” (p. 27).

Katunga, conforme dito, é a mãe de Negrito. “Assim como ocorre com as mulheres, as gatas e as ratas, não se sabe quem é seu pai, é sempre assim: os filhos sempre ficam perto das tetas da mãe e o pai segue sua vida” (p. 29). Negrito é sério, imponente, “não foi corrompido por toda essa onda capitalista pet: não se banha com sabão, não usa coleira anti-pulgas, não se vacina. É um perro roots, como gostariam de ser os hippies e os anarquistas” (p. 29).

O narrador explica a origem da Playa de la Viuda, de ondas ferozes e dunas gigantes: Punta del Diablo era apenas uma aldeia de pescadores, com casas simples de madeira, quando um casal judeu construiu ali uma mansão de concreto na praia mais distante. O marido foi morto pelos nazistas e ela, “…depois que ficou viúva, foi a única residente de uma extensão de quatro quilômetros de costa (…) Ela morreu de um ataque cardíaco, ao lado de seus cães e gatos, velhinha, lendo a poeta Alejandra Pizarnik (1936-1972) e fumando Coronados. Nunca foi ao médico – não se deixava tocar” (p. 31).

A sharpei Manuela, de três patas, recebeu esse nome em homenagem ao presidente Pepe Mujica que, com sua esposa, a senadora Lucía Topolanski, “vive com uma cachorrinha de três patas que se chama Manuela e é famosa por aparecer nas conferências de imprensa que eles faziam em sua chácara” (p. 36). Ela engordou e aprendeu a ladrar em “argentino”. Tornou-se malcriada, mas nenhum cachorro ou gato podiam batê-la, porque “era o bebezinho da casa” de Fabi e Miguel (p. 37).

Paixão fulminante? É a de Artigas por Aretha, “gata negra de olhos amarelos”; vive com Roberto no Restaurante Panes y Peces. Passa o dia ouvindo jazz. Reclamava que se sentia a rainha da Inglaterra, pois “não podia sair só, não podia escolher com quem teria relações sexuais, não podia comer ratões. nada. Só fazia o que me permitia a monarquia – que, neste caso, é a neurose dos humanos…” (p. 47). Os humanos são terríveis; “nos castrar em todos os sentidos para que sejamos parecidos às suas pelúcias de infância; nos banham, nos enfeitam, nos cortam as unhas. Me operaram, não tenho testículos, o fizeram para tranquilizar-me, para sacar-me os instintos de gato que, parece, faz mal aos humanos” (p. 49). Para Artigas, Aretha é uma verdadeira rainha que, “…estirada no piso de madeira, cantava You make me feel like… olhando para o infinito” (p. 52). O mundo da gata lhe era estranho. Ele estava enamorado, embora ela lhe tratasse com indiferença. “Eu queria saltar, correr atrás dela – pelo visto a castração não havia funcionado” (p. 52-53).

Os cachorros se dirigiam à Playa de los Pescadores, de onde saem os barcos todas as madrugadas para trazer pescados frescos que logo vendem, para comer as sobras dos peixes que eram descartados. Lá encontraram Ernesto, um terranova preto e branco, que cuidava de um barco, “O velho e o mar”, e de Evita, uma cachorra dogo argentina, branca fosforescente e feroz, mãe de três filhotes. Também encontraram Belchior, imenso, “versão canina e gorda de Bob Marley” (p. 70), que lá chegou em 1978 com o cantor, a companheira uma Kombi e um piano.

Todas e todos odeiam ir ao veterinário, embora os humanos procurem sempre cuidar-lhes bem. Para Artigas, se Marx estivesse vivo, “chamaria o mundo pet de o “ópio do povo” moderno, pois gera milhões de dólares à indústria pet e faz com que as pessoas sintam mais empatia por um cachorro que vive na rua do que por uma pessoa na mesma situação” (p. 85).

Bogo é humano, escreve o dia todo e frequenta a livraria El diablo lector com Milonga, uma galga “taciturna como o seu dono” (p. 92). Já a professora da escola tem mais de 30 gatos, cria galinhas, porcos e não gosta de cachorros, enquanto Dona Diosa, que não é amiga da professora, convive bem com os animais, cuida das pessoas doentes, dos velhos, limpa suas casas.

Artigas protesta, escrevendo que “é comum dizer que os gatos são traiçoeiros e ladrões, que os gatos negros são perigosos; os humanos estão sempre comparando-nos: os cachorros são fiéis, os gatos são egoístas… é impossível para quem anda em duas patas compreender que há outras formas de viver diferentes das suas” (p. 96).

Esse Artigas é danado, poderia ser um deputado, senador ou ao menos vereador em Punta del Diablo, uma vez que luta aguerridamente pela sua categoria, isto é, pelos gatos. Argumenta: “somos under na sociedade” (p. 106). Fala que governadores e políticos posam com seus cachorros: Barack Obama passeia com Bo, cachorro português; Vladimir Putin tinha seu pastor búlgaro Buffy; Emmanuel Macron seu labrador Nemo; Evo Morales tinha Ringo; Hugo Chávez aparecia com Simón, tendo comprado “vinte e três cachorros da raça mucuchíes para evitar sua extinção, isso porque essa raça acompanhou Bolívar em suas campanhas”. E Lula adotou uma vira-lata “que viveu na porta da prisão em que esteve detido (…) seu nome é Resistência” (p. 106). Entretanto, contra-argumenta: se a maioria dos cachorros famosos são de políticos, os gatos se encontram como animais de estimação dos poetas, bêbados, filósofos, das pessoas pensantes…” (p. 107).

O narrador se encontra e se espanta com Pepe e Grécia, pastores alemães enormes que trabalham na chefatura da polícia: “A mim me intriga como é que podem ser cachorros e ter trabalho, horários e essas coisas de humanos, são ensinados a obedecer para viver em paz; parece que antes de serem educados eram terríveis, mordiam as pessoas sem pena, ladravam o tempo todo e nem os donos podiam se aproximar” (p. 111).

Concluindo, a narrativa “Joaquín y José” aborda questões delicadas. Letícia (ou Artigas ? ou Theo ?) diverge da história oficial uruguaia ao mencionar que José Gervasio Artigas (1764-1850), político, militar e herói nacional de seu país não tinha gatos, apenas cachorros e o “Negro Ansina”, seu escravo. Trata-se de Joaquín Lenzina, escravizado por uruguaios ricos. Dizem que “antes de ser tratado como coisa, ele trabalhava como aguateiro e poeta. Parece que tentou fugir do país (…), foi capturado e novamente escravizado até que José Artigas o comprou – como comprava vacas – e lhe concedeu a liberdade de servi-lo até a sua morte (…) A memória racista o transformou em negro bom e fiel que esteve com José até a sua morte, como um cão, um cão de Artigas” (p. 117).

E avança, em território com gelo fino: “…há rumores de que Joaquín (Lenzina) foi o grande amor de José (Artigas), uma paixão proibida, como eram todas as relações de amor entre etnias distintas e mesmo gênero. “Eles viveram juntos (…) até a morte de João em terras paraguaias, e Joaquín, o poeta brilhante, foi assassinado e enterrado como um qualquer, sem raça nem sobrenome, um cão de Artigas” (p. 118-119).

Em suma, essa é a narrativa do gato Artigas – Theo, “como uma despedida de sua vida em Punta del Diablo” em 2019. Ele entrou por uma porta e saiu pela outra. Quem quiser que conte outra.

*Afrânio Catani é professor titular sênior aposentado da Faculdade de Educação da USP. Atualmente é professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ, campus de Duque de Caxias.

Referência


Letícia Núñez Almeida. Perros del Diablo. Sant’Ana do Livramento: Tan Ed., 2023, 144 págs. (ilustrações em aquarelas de Florencia Valle).

Bibliografia


Miguel Torga. Bichos. Coimbra: Edição do Autor, 19a. ed., 136 págs. [ed. original: 1940]

Paul Auster. Timbuktu. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, 144 págs.


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