Independência dos poderes?

Imagem: Elyeser Szturm
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Por Julian Rodrigues*

A esquerda que ignora a natureza do Estado capitalista e deposita fé na neutralidade das instituições não está preparada para manter o poder.

Soa como uma espécie de consenso. Opinião politicamente correta: “a Polícia Federal deve ser autônoma e independente”. Governo correto é aquele que não interfere nas atividades policiais. Antes disso ainda: quem tem prerrogativa de indicar Ministros e gestores federais é o presidente da República. Judiciário não governa. Se essa moda pegar de vez, quando a esquerda voltar ao Governo Federal não iremos conseguir nomear nem ascensorista do Palácio do Planalto.

Registrando para começar: Gilmar Mendes é tucano de longa plumagem. Alexandre Moraes tucano de carteirinha também. A proibição da nomeação de Lula por Gilmar e do amigo do Carluxo por Moraes expressa a posição do PSDB no STF, nos dois casos. Queriam dar o golpe em 2016 e agora estão em oposição a Jair Bolsonaro. Não há nada de “jurídico” nas decisões de Mendes e Alexandre.

Infelizmente, Lula e Dilma foram os maiores propagandistas do conceito de “não interferência”. Da ideia de independência e neutralidade das instituições do Estado. E conduziram seus governos com base nessa premissa. Era o tal do “republicanismo”. Até que a Polícia Federal mostrou suas garras. Se organizou e conspirou, por dentro do governo federal, articulada com o braço golpista do Ministério Público, Judiciário e Rede Globo. Foram protagonistas do golpe de 2016, da humilhação pública/prisão de Lula e da eleição de Jair Messias Bolsonaro.

Esse debate é estratégico, central. Trata-se de algo básico: Estado, poder, democracia. Boa parte da esquerda ainda não parou para pensar sobre as bobagens que fizemos e sobre o tamanho do desafio (re)organizativo que temos pela frente.

Antes de abordar o tema das polícias, é preciso demarcar. Uma esquerda que ignora a natureza do Estado capitalista burguês (sobretudo na América Latina, sem tradição nenhuma de regimes liberais-democráticos) e deposita certa fé idealista na neutralidade das instituições, dificilmente estará preparada para disputar e manter o poder. Cairá mais cedo ou mais tarde.

A maioria do PT, Lula e Dilma abandonaram a perspectiva das reformas estruturais transformando táticas concessões à burguesia em virtudes, premissa e método de governo. Acharam, por exemplo, que era bonito dar a um bando de coxinhas – homens brancos de classe média alta, concurseiros do Ministério Público – a prerrogativa de indicar o Procurador Geral da República. Algo, que seria chic, cool, bem aceito pela mídia, atitude “democrática”. (Esqueceram que Fernando Henrique havia nomeado e reconduzido seu Procurador Geral – de confiança absoluta – por oito anos, sem lista tríplice nenhuma).

A Polícia Federal (nem vou entrar no mérito dos erros na condução da política dos nossos governos para as Forças Armadas) foi fortalecida, sem contrapartida de nenhum controle democrático. Sem democratização dos concursos, do acesso. Não contratamos pobres, pretos, mulheres. Enchemos a instituição de concurseiros jovens, brancos, privilegiados de classe média alta. 

Pior ainda. Promovemos a ideia de que uma polícia “técnica” está acima de tudo, do bem e do mal, podendo fazer o que quiser. E que o legal é deixar tudo correr solto. Como se as e os agentes e delegadas/os concursados da PF tivessem mais discernimento, competência, compromisso social e legitimidade do que o presidente ou a presidenta eleito.

Aqui caberia uma imensa digressão acerca tanto da estratégia reformista moderada do PT quanto da concepção de Estado que embasaram o tal “republicanismo”. Todavia, não é o momento para aprofundar nenhuma dessas duas questões fundamentais. Mas não dá para deixar de registrar.

O abandono de qualquer perspectiva marxista para compreender o caráter do Estado capitalista fez um estrago gigantesco. A ponto de um quadro formado na melhor tradição comunista, como Dilma, ser golpeada na cara dura porque deixou os caras armarem  um golpe por dentro do seu governo. E ainda se orgulha até hoje de “não ter interferido na PF”. Seu Ministro da Justiça era um liberal-democrata bobalhão, que vivia dando entrevista pra Veja, lembram?

As forças policiais devem ser independentes?

Pois bem. Polícias têm de ser autônomas? São órgãos técnicos, limpinhos e bonitinhos? Evitando prolegômenos e extrapolações históricas, filosóficas, estruturais (qual o papel  histórico das forças de segurança, do aparato repressivo no Estado burguês, como a esquerda socialista deve se organizar e se relacionar com esse tema), as perguntas são bem mais simples, afinal.

Prefeitos são ou não os chefes legítimos das Guardas Civis Municipais? Governadores/as são comandantes naturais das Polícias Militares (e Civis)? Presidentes/as tem ou não um mandato popular que os permitem mandar na Polícia Federal? Polícia sem chefe, sem controle, sem orientação vira máfia. Corporação descontrolada, regida por seus próprios interesses. Fujamos disso.

No caso da PF: uma turma de homens brancos de classe média alta, com salarião. Todos qualificados, cheios de autonomia, empoderados, corporativos até a medula e, antes de tudo, armados. Por que a esquerda defenderia que deveriam se autogerir ao invés de seguir as diretrizes dos e das presidentes/as eleitos pelo povo?

As polícias, como um todo, são das poucas instituições brasileiras que não passaram por nenhuma  reforma após o fim do regime militar. As Polícias Militares continuaram, pós-Constituição de 1988, como forças auxiliares do Exército. São legados da ditadura, tributários de um modelo de segurança pública baseado na repressão e na guerra contras pobres, pretos, jovens. Dos quase 60 mil homicídios anuais no Brasil, cerca de 10% são assassinatos sumários cometidos por policiais.

Os governadores – de todos partidos e em todos estados – são reféns das PMs, desde sempre. Tem pouco mando efetivo, negociam o tempo todo com a cúpula dos oficiais. Reproduzem o senso comum e o discurso conservador. Em São Paulo, por exemplo, há cerca de 100 mil policiais militares, com muito equipamento e estrutura (o Exército nacional tem apenas três vezes o número de soldados da PM paulista). Que governante civil poderia controlar, de fato, essa imensa tropa?

As esquerdas e o PT, em particular, nunca priorizaram os temas da segurança pública, da reorganização das polícias, do sistema carcerário, dos direitos humanos, da epidemia de homicídios. Do fim da guerra às drogas. Erro que teremos que corrigir. Reformar e reorganizar as polícias? Nem pensar. Nossos governadores ou reproduziram o senso comum ou reforçaram políticas explicitamente de direita. Lula e Dilma pouco avançaram nesse tema. Aliás, durante os governos petistas explodiu o encarceramento.

Mas, voltemos. Polícias são coisas lindinhas, limpinhas, técnicas e, acima do bem e do mal? Como se dá essa relação entre governantes e polícias – e Ministério público – mundo afora?

Na “democracia” norte-americana, que tantos admiram (à direita e à esquerda), o Presidente nomeia e controla tanto o “procurador geral”, como os chefes do FBI, CIA, e etc. E se eles não obedecem suas diretrizes, é considerado totalmente legítimo que o chefe de estado e de governo ( o presidente) os substitua. Para não falar que lá as nomeações à Suprema Corte são de juristas totalmente identificados com o partido do presidente que os indica. Não tem essa do presidente se orgulhar de não conhecer e de não pactuar nada com o cara que está nomeando para o órgão máximo do judiciário (como Lula incompreensivelmente até hoje faz, mesmo depois de 580 dias preso).

Resumindo: quem estimulou essa ideia de “independência” e “autonomia” da Polícia Federal e da Procuradoria Geral da República foram Lula e Dilma. Um misto de ingenuidade, concessão às elites e sei lá o quê. FHC, por exemplo, não tinha nem dado “autonomia” à Polícia Federal, muito menos nomeado Procurador Geral mais votado em lista tríplice da corporação.

Para lembrar as indicações ao STF. FHC indicou, por exemplo, Gilmar Mendes, um quadro qualificado e orgânico do PSDB. Lula e Dilma erraram em quases todas as indicações abrindo mão de nomear quadros políticos reconhecidos, capazes e confiáveis do PT e da esquerda. Só acertaram na indicação do Lewandowski, olha que foram 13 as indicações nos nossos dois governos!

Estratégia e programa

Um balanço crítico e aprofundado da experiência petista no governo federal é pressuposto para a reorganização da esquerda, reconstrução do programa democrático-popular e, principalmente, da reelaboração da tática e da estratégia para a reconquista do governo federal (alavanca do processo de realização das reformas estruturais e da transição socialista).

Tema nuclear: rompimento com certa concepção idealista de Estado, que parte do pressuposto que as instituições são técnicas e neutras. Afastarmo-nos da ideia de que as classes dominantes, as elites brasileiras têm qualquer compromisso democrático. Preparar nossas tropas para uma guerra política, não para conciliação e salamaleques.

Então, para voltar ao mote deste artigo: uma ideia chave. Polícias não têm que ter nem autonomia nem independência. Quem manda nos policiais e nos milicos é o/a chefe/a de governo eleito pelo povo!!

Sem reformar estruturalmente o Estado, mobilizar e organizar o povo, não é possível  construir e sustentar um governo democrático-popular. 

*Julian Rodrigues é jornalista, militante do PT e ativista LTBTI e de Direitos Humanos.

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