Pulsão de morte

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Por Helenice Rocha*

Diante das reações de um presidente que enfrenta a pandemia com seu gozo sádico, ainda há quem duvide do fato de que estamos sendo governados por um representante da morte

A capacidade de se entristecer

O genocida que ora nos governa e os políticos covardes da esquerda que não movem uma palha para apear esse psicopata do poder, responderão no campo da história, e cada um na sua justa medida, pelos milhares de mortos que veremos brevemente.

Sobre a ânsia de uma parte da população para que haja a flexibilização do isolamento e para que todos possam circular como antes, me lembrei de Camus: “viver é um hábito”. E se viver é mesmo um hábito, como ele nos diz, por acaso não se pode abdicar dele, abandoná-lo? Não seria isso que uma parte da população está fazendo? Retomando no tempo da covid-19 o lema de Millán-Astray “viva la muerte!”?

Ora, se os insensatos que lotaram avenidas contra as políticas a favor do isolamento, se estes tipos humanos estão optando pela morte, o que nós, que nos sabemos mortais, podemos fazer?

Estamos tristes. Eles estão excitados. Creio que lhes falta a capacidade para a tristeza. Diferentemente do diagnóstico de alguns colegas de que a esse povo falta informação e/ou inteligência, penso que falta a capacidade para se entristecer. Para quem está entendendo o que está acontecendo, o cenário é de tristeza. O mundo acabou. Pelo menos aquele mundo que conhecíamos até outro dia, acabou. A percepção subjetiva de que o mundo que virá será outro, começa lentamente a instalar um trabalho de luto em todos nós.

Mas quem pode viver o luto? Quem é capaz de se entristecer diante da perspectiva de que por mais que boas mudanças venham, as relações entre os sujeitos, entre os sujeitos e o trabalho, entre os sujeitos e o planeta, nunca mais serão as mesmas? Quem pode viver esse estado de coisas? Quem pode acatar essa certeza de que muitos morrerão, podendo ser nossos parentes, nossos amigos ou nós mesmos?

É preciso ser capaz de se entristecer diante de tudo isso. Não poder estar entre amigos, com os pais, com os filhos, num cenário de tantas incertezas e ainda assim sustentar dentro de si essas relações sem poder contar com a materialidade dos encontros, dos abraços e beijos.

Esse povo não é capaz de se entristecer. Esse comportamento maníaco de negação da morte e de triunfo sobre o desamparo e a tristeza, é tudo o que esse povo é capaz de produzir. Essa onipotência descarada, esse semblante maníaco, essa excitação mortífera que exibem é a expressão mais radical de suas incompetências diante do sentimento de tristeza que o momento exige.

Seguiremos tristes e tentando sobreviver. Somos o desamparo em carne viva.

Eles seguirão excitados e maníacos. São a silhueta da morte.

Protejamos a nós e aos nossos. Quis o destino que estivéssemos aqui nesse tempo e enfrentássemos essa tormenta. Aos que sobreviverem, fica a tarefa de ensinar para as próximas gerações que em tempos tristes, a tristeza é necessária e pode salvar vidas.

E daí?

Exatamente há 100 anos, Freud publicou aquele que talvez seria o texto mais denso e mais controverso de toda sua produção teórica. Com o título “além do princípio do prazer” o pai da psicanálise deu nome e consistência a uma força que diferentemente de Eros, ou pulsão de vida, visava o retorno ao inorgânico, ao zero, ao nirvana. A essa força ele chamou “pulsão de morte”.

Ao contrário da pulsão de vida que visa à ligação, a pulsão de morte visa ao desligamento, à ruptura, à disjunção. Também chamada de pulsão de destruição, essa força demoníaca que se encontra “além do princípio do prazer” possibilitou a Freud compreender certos fenômenos clínicos que estavam fora da lógica do prazer/desprazer e que eram determinados, em última instância, por esse impulso de destruição que poderia ter como alvo um objeto externo ou o próprio eu.

Nos últimos dias, relendo o texto de 1920 para discuti-lo num grupo de estudos, foi inevitável lembrar que ao escrevê-lo, a morte se fazia presente em muitas dimensões na vida de Freud. Ele vivia intensamente o impacto da morte de sua querida filha Sophie e do fim da I Guerra Mundial, responsável pela morte de um sobrinho.

Passados dez anos, em 1930, no seu texto político “mal estar na cultura” Freud voltou a colocar a pulsão de morte no centro da discussão sobre a fragilidade da civilização. Nesse texto, falando sobre o trabalho da cultura como única possibilidade de fazer face à barbárie, ele nos advertiu de um perigo constante: o de que as pulsões de destruição “os grandes batalhões” estão sempre à espreita de brechas para se apresentarem das maneiras mais diversas.

Essa tensão permanente, esse conflito irredutível entre pulsões de vida e pulsões de morte é o que, paradoxalmente, mantém a civilização e também a ameaça. Esse estado de coisas nos condena a enfrentarmos o nosso desamparo original produzindo cultura, tentando reforçar o trabalho de Eros estabelecendo pontes através dos afetos de compaixão e de solidariedade. É isso e somente isso que mantém a civilização.

Nos dias que correm, estamos novamente diante da morte em grande escala.

E diante dos mortos, diante do traumatismo coletivo que um vírus foi capaz de instalar por aqui e, sobretudo, diante das reações de um presidente que enfrenta a pandemia com seu gozo sádico, ainda há quem duvide do fato de que estamos sendo governados por um representante da morte.

Ratos e baratas nas vaginas das mulheres é pouco para Bolsonaro.

Ele goza agora com corpos fedendo dentro de casa, com corpos empilhados, nus, dentro de caminhões frigoríficos, com mortos sendo enterrados sem caixões, em valas comuns, em sacos plásticos, sem identificação.

Pesado isso? Não para Bolsonaro e para os que ainda o defendem.

Chega de lustrar nosso narcisismo patológico que teima em não aceitar que nossos semelhantes (sim, são nossos semelhantes, gostemos disso ou não) são gentes da pior espécie. Fazem carreatas pregando a morte, buzinam em frente a hospitais, agridem profissionais da saúde, querem a volta ao trabalho e continuam defendendo Bolsonaro.

Nada melhor do que a morte, dura, cruel e escandalosa para nos dar um banho de realidade. Aceitemos. Essa gente não vale nada. Bolsonaro vai passar. Logo ou não tão logo, vai passar. Mas essa gente ruim estará por aqui e vai fazer de tudo, como já fez, para eleger outro fascista para continuar a matança que Bolsonaro começou.

Nossa tarefa será combater, diuturnamente, essa gentalha que cheira à morte, que fala em nome de um deus inventado por ela, à sua imagem e semelhança, que fala em nome de uma moral que faria Chico Picadinho corar de vergonha.

Essa escória que não tem vergonha de colocar funcionárias (mulheres) de joelhos nas calçadas para pedirem a volta ao trabalho (como fizeram hoje na Paraíba) essa escória que não tem vergonha de montar em seus carrões para pressionarem as diaristas a voltarem a lavar suas privadas, essa escória que não tem vergonha de ir para as igrejas para se submeterem aos pastores picaretas que por sua vez não têm vergonha de explorar a fé dos fiéis.

Essa gente é ruim. É isso. É a expressão mais pura da pulsão de morte.

Os nazistas não foram tirados de circulação com diálogo. Foram expostos, repudiados, desprezados, criminalizados. É isso que precisamos fazer com essa gente ordinária que está nos matando. Tem gente morta fedendo dentro de casa, congelada em caminhão frigorífico, enterrada em saco plástico, sem identificação.

Isso é pouco para Bolsonaro.

Isso é pouco para quem defende Bolsonaro.

É pouco para nós também?

É preciso lutar contra isso, enquanto estamos vivos e para continuarmos vivos.

*Helenice Oliveira Rocha é psicanalista, autora de O ideal:um estudo psicanalítico (Vetor).

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