Por MICHEL GOULART DA SILVA*
Podemos ter críticas pontuais a certos aspectos da greve, mas em hipótese alguma pode-se questionar sua legitimidade ou relativizar sua importância
Neste momento, possivelmente o principal processo em curso na política brasileira passe pela greve nas universidades e institutos federais. Por um lado, esse processo mostra trabalhadores organizados e em luta, em âmbito nacional, reivindicando a recomposição de perdas salariais que se acumulam há muitos anos. Por outro, ao levantar essa demanda, esses trabalhadores explicitam o debate sobre o orçamento público e seus usos, questionando, em particular, a priorização do pagamento da dívida ou a garantia das emendas parlamentares para políticos de todas as cores políticas.
Contudo, para muitos analistas, o debate central em torno da greve não passa pela necessidade do crescimento dos investimentos da educação, pela submissão do governo ao capital financeiro ou pelo escoamento orçamentário para a garantia de currais eleitorais em ano eleitoral. Para muitos analistas, a grande questão que perpassa a greve é entender a razão pela qual uma categoria que, em sua maioria, ajudou a eleger Lula agora questiona o programa aplicado pelo governo. Para alguns, inclusive, sequer haveria legitimidade nessa greve, afinal teríamos dado a Lula o mandato e agora deveríamos aceitar qualquer coisa que viesse desse governo.
Esses argumentos já foram devidamente questionados por diferentes colegas com os mais diversos excelentes argumentos. Contudo, no geral, esses argumentos nada mais são do que variantes daquelas posições que não apoiam a greve. Concretamente, o que se tem é que os trabalhadores das instituições federais de ensino, de forma coletiva, optaram por paralisar seu trabalho de ensino, pesquisa, extensão e gestão. Podemos ter críticas pontuais a certos aspectos da greve, mas em hipótese alguma pode-se questionar sua legitimidade ou relativizar sua importância.
Embora para muitos as categorias em luta possam ser reduzidas a “eleitores de Lula”, esse é o aspecto menos relevante na constituição desse ser social. Em primeiro lugar, por óbvio, porque nem todos são eleitores do Lula. Em segundo lugar, porque o ato de votar é uma escolha pontual diante de circunstâncias específicas e momentâneas e obviamente não pode ser um estigma a ser carregado pelas pessoas durante quatro anos. Esse determinado fenômeno certamente tem suas implicações e impactos durante os quatro anos, mas, diante das circunstâncias concretas, é óbvio que cada ser social passa por novas impressões da realidade, reflexões e mudanças de perspectivas e não pode ser limitado ao que foi em um momento específico.
Nas eleições presidenciais, o cenário concreto em que estávamos passava pela escolha entre Bolsonaro, um pretenso fascista com um discurso demagógico que havia declarado guerra às universidades desde sua primeira campanha, e Lula, tentando inutilmente equilibrar melhorias pontuais para os trabalhadores com os interesses da burguesia e do capital financeiro. Essa era a escolha diante da qual estávamos e muitos de nós optaram pela segunda opção, ainda que sem ter esperanças no novo governo ou, pelo menos, diante da expectativa de que, nesse novo governo, não precisaríamos a todo o momento ter de nos defender – às vezes até fisicamente – dos ataques que permanentemente eram desferidos contra nós.
Portanto, o ser social que agora faz a greve se constitui, em grande medida, pela negação das atrocidades do bolsonarismo que vivenciamos ao longo de quatros anos – ou mesmo seis, se entendermos que o governo Temer foi uma espécie de precursor de Bolsonaro. Em certa medida, ao derrotar Bolsonaro nas urnas, queríamos o direito de continuar a existir e de poder trabalhar sem que nossas vidas estivessem em risco ou sem que o governo a todo o momento questionasse a legitimidade das nossas ações, as reduzindo a “doutrinarismo” ou qualquer outra aberração retórica que tenha saído da boca dos diferentes representantes do governo Bolsonaro.
Contudo, os anos de Temer e Bolsonaro não foram apenas de ataques retóricos, mas também de ações concretas contra a educação. E, assim, se forjou um segundo elemento que marca os trabalhadores que se encontram em greve, ou seja, a defesa das instituições de ensino em que trabalhadores. Entre bloqueios, contingenciamentos, cortes e outros tantos ataques, que remontam ao segundo mandato de Dilma e se aprofundaram com Temer e Bolsonaro, o cotidiano das instituições de ensino passou por garantir, mesmo que com o orçamento limitado, o básico para nossos estudantes.
Em meio a isso, sobrevivemos a uma pandemia, que nos obrigou a literalmente garantir as nossas vidas e a dos nossos estudantes. Desde 2015, vemos nossas instituições sofrerem um sufocamento orçamentário, enfrentando dificuldades de diferentes naturezas, forjando trabalhadores que as defendem como parte de sua própria vida. Não se trata aqui de corporativismo de categoria ou de uma arrogância institucional, mas de entender que nossa sobrevivência depende da existência dessas instituições, da colaboração com nossos colegas e do atendimento a nossos estudantes.
Contudo, a derrota da retórica demagógica que nos atacava permanente e a luta pela manutenção material de nossas instituições não será nada se não estivermos vivos. Portanto, entendemos que não é possível sobreviver com um salário que, no caso de algumas categorias, equivale a um terço daquilo que se recebia em 2010. O cenário de inflação e de aumento de despesas familiares, como em saúde e educação, mostra que os “supersalários” do funcionalismo público federal não passam de uma falácia completamente irreal. Em especial no caso dos servidores técnico-administrativos das universidades e institutos federais, o piso da categoria é inferior ao salário-mínimo. No caso dos docentes ou dos técnicos de nível superior, os valores absolutos até podem ser um pouco mais elevados, mas isso depende de muitos anos no cargo e a possuir o título de mestre ou de doutor.
Portanto, o que se tem hoje em movimento é um ser social que não pode ser limitado ao seu voto pontual nas últimas eleições presidenciais. Tratam-se, sim, de trabalhadores que lutaram pelo direito de existir, diante dos ataques bolsonaristas. Que defendem suas instituições, como resposta às perdas orçamentárias que sofremos ao longo dos últimos dez anos. E que batalham por ter condições de sobreviver e garantir a subsistência de suas famílias. Esses são os trabalhadores que neste momento enfrentam uma duríssima greve contra o governo e que não podem ser resumidos a meros eleitores de Lula, e que merecem o apoio incondicional de toda a classe trabalhadora.
*Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).
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