Por GRAÇA DRUCK & LUIZ FILGUEIRAS*
As forças de esquerda e democráticas precisam sair da passividade, como que esperando que Lula e o seu governo, bem como o STF resolvam os impasses políticos
1.
Esse pequeno texto é dirigido, principalmente, mas não apenas, aos professores, servidores e estudantes das Universidades e Institutos Federais que ainda estão em dúvida acerca da pertinência da greve na atual conjuntura política.
A questão legítima, que preocupa esses colegas é a seguinte: a greve pode fragilizar o governo Lula e, por consequência, favorecer a ação e os objetivos da extrema direita? E, como corolário, esse segmento social, que apoiou majoritariamente a candidatura de Lula da Silva e ajudou a eleger esse governo, não deveria entender que há uma correlação de forças políticas desfavorável e postergar suas reivindicações para outro momento? A seguir tentamos responder a essas duas questões argumentando porque a greve é importante nesse momento.
2.
Os professores e técnicos-administrativos das Universidades e Institutos Federais estão em greve reivindicando reajuste-atualização salarial e recomposição orçamentária, para essas Instituições pagarem suas despesas correntes (luz, água, telefone, limpeza, uma variedade de serviços terceirizados etc.), investirem em obras paradas e poderem funcionar adequadamente.
Apenas para relembrar: (i) O total de recursos orçamentários previsto pela Lei Orçamentária Anual (LOA) em 2024 (R$ 5,8 bilhões) para as Instituições Federais de Ensino Superior é inferior ao que foi destinado em 2014 (8 bilhões); portanto há dez anos! (ii) Os salários de seus profissionais estão defasados, considerando-se os últimos anos, em 40%, mas o governo definiu inicialmente zero de reajuste para 2024. Depois de oitos mesas de negociação em 2023 e três mesas neste ano, o governo manteve reajuste zero para 2024, 9% para 2025 e 3,5% em 2026, a depender do cumprimento das metas do “Arcabouço Fiscal”.
Essa greve, como é óbvio, dirige essas reivindicações ao poder público que, como reza a Constituição, deve manter e viabilizar financeiramente as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). Portanto, essas reivindicações são dirigidas ao Governo Lula, responsável, pelo menos até 2026, por dirigir e comandar o Estado brasileiro.
No entanto, a greve não é contra o Governo Lula; muito pelo contrário. As suas duas reivindicações fundamentais, reajuste salarial e recomposição orçamentária, constam do Programa de Governo apresentado, durante a campanha eleitoral de 2022, pelo então candidato Lula da Silva. Depois de quatro (ou seis) anos de desmonte do país, e especificamente, das Universidades Públicas, o governo Lula assumiu a responsabilidade de reconstrução nacional. Portanto, o movimento grevista está rigorosamente de acordo com os objetivos desse governo.
No Programa de Governo “Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil 2023-2026” está escrito: “O nosso objetivo é resgatar e fortalecer os princípios do projeto democrático de educação, que foi desmontado e aviltado. Para participar da sociedade do conhecimento, é fundamental o resgate de um projeto de educação que dialogue com o projeto de desenvolvimento nacional. Para isso, é preciso fortalecer a educação pública universal, democrática, gratuita, de qualidade, socialmente referenciada, laica e inclusiva, com valorização e reconhecimento público de seus profissionais” (p. 9).
Acontece, todavia, que esse governo vem sendo impedido de implantar o seu Programa, consagrado nas urnas, por forças político-sociais que podem ser identificadas de forma clara, quais sejam: o capital financeiro (“o mercado” ou o “pessoal da Faria Lima”); a direita neoliberal encastelada nos meios de comunicação e em diversas Instituições do Estado; o movimento neofascista com expressão parlamentar (Câmara e Senado); e mais especificamente o chamado “Centrão”, que busca “emparedar” sistematicamente o governo Lula – retirando-lhe parcelas importantes de poder na formulação e execução orçamentária, e na implantação de políticas econômicosociais, achacando e chantageando o Poder Executivo cotidianamente – por meio da exigência de liberação de “emendas parlamentares” como condição para votar matérias de interesse do governo.
Nas atuais circunstâncias, o dito “presidencialismo de coalização” tem, aos poucos, se transformado quase que em uma espécie de “parlamentarismo de coalização”, um “mostrengo” ilegítimo e ilegal, pois não está previsto e nem é acolhido de forma alguma pela Constituição brasileira. Na prática uma tentativa, já parcialmente bem-sucedida, de anular o mandato que Lula da Silva recebeu da maioria dos eleitores brasileiros. Portanto, uma espécie de “estelionato eleitoral” praticado pelas forças político-sociais derrotadas na eleição para Presidência da República de 2022.
Desse modo, a greve das Universidades e Institutos Federais é contra todos esses sujeitos que vêm tutelando o Governo Lula, impedindo-o de colocar em prática o seu Programa, constrangendo-o por meio de uma política monetária restritiva (com elevadas taxas de juros), executada pelo Banco Central independente do Governo, mas não do “mercado”, e por uma política fiscal subordinada ao “Arcabouço Fiscal” que garante sem restrição, mais uma vez, a remuneração parasitária do capital financeiro. Na verdade, desde a criação do “Teto de Gastos” no Governo Temer, formalizou-se uma situação de “ajuste fiscal” permanente. Em suma, o Fundo Público está formalmente sequestrado por uma parcela reduzidíssima dos muitos ricos, brasileiros ou não.
Essa situação evidencia a existência, de fato, de uma correlação de forças desfavorável às correntes político-sociais de esquerda e democráticas – colocando o governo Lula em uma posição defensiva e desconfortável. Mas também é a evidência de que a resposta que o governo, e seus apoiadores mais próximos, têm dado a essa conjuntura adversa, isto é, restringindo-se apenas a uma prática de negociação no âmbito exclusivamente institucional, está inviabilizando o alcance dos seus objetivos econômicosociais mais importantes – anunciados e defendidos no processo eleitoral de 2022.
3.
Mas, uma correlação de forças, qualquer que seja ela, não pode ser tratada como uma fotografia, algo estático e imutável; ela tem que ser entendida como um filme, um processo em movimento, cujos desdobramentos não estão previamente definidos. Isso significa dizer que a alteração ou manutenção de uma determinada correlação de forças dependerá fundamentalmente da luta política travada no presente, em cada momento.
Portanto, assumindo-se que existe, de fato, uma correlação de forças desfavorável às forças de esquerda e democráticas no presente, a pergunta crucial é a seguinte: se há o reconhecimento de que apenas negociar institucionalmente não tem conseguido alterar essa correlação, o que essas forças e o governo Lula podem fazer para mudar a situação? Constatar que a correlação de forças é momentaneamente desfavorável e atuar apenas no âmbito da negociação institucional é agir, no final das contas, com uma perspectiva apenas de redução de danos, que apenas sanciona e legitima a atual correlação de forças desfavorável.
Nessas circunstâncias, esse comportamento político equivocado abriu espaço para uma movimentação no interior do governo, mais especificamente no Ministério da Fazenda, no sentido de desconstitucionalizar os pisos orçamentários (percentuais mínimos obrigatórios) da saúde e da educação, conquista histórica do povo brasileiro. A razão disso é que esses pisos entram em rota de colisão com o “Arcabouço Fiscal”, o instrumento fundamental que viabiliza os interesses do capital financeiro. Isso é absolutamente inaceitável, mormente considerando-se a enorme desigualdade social que caracteriza o país.
As forças de esquerda e democráticas, que têm uma longa tradição e experiência de mobilização popular, precisam sair da atual passividade, como que esperando que Lula, e o seu governo, bem como o STF resolvam os impasses políticos. Por sua vez, Lula e o seu governo não podem ignorar o apoio popular que possuem, não podem recear mobilizar e estimular esse apoio.
Nesse contexto, não dá para aceitar como natural, ou que tenha sido um mero problema técnico-prático de convocação, que a manifestação realizada em São Paulo no dia 1º de maio, dia do trabalhador, tenha tido uma presença de apenas duas mil pessoas. E isto em um ato organizado e convocado unitariamente por todas as Centrais Sindicais e com a presença do maior líder político popular da história do país. Explicações apoiadas na identificação de mudanças estruturais no mundo do trabalho não são suficientes; esse é um processo que vem se desenvolvendo desde os anos 1990.
Na realidade, a explicação para a existência de uma conjuntura de desmobilização deve ser buscada na prática e ação política das forças de esquerda e democráticas. Tem algo de errado acontecendo, e não é a greve das Universidades e Institutos Federais. Se essas forças não reconhecerem isso, o “monstro” do outro lado parecerá maior do que de fato ele é e a possibilidade de uma vitória eleitoral da extrema direita em 2026 ficará cada vez mais crível.
Em suma, a greve dos professores e funcionários das Universidades Federais não enfraquece e nem fragiliza o Governo Lula, mas caminha na contramão da passividade, indicando o caminho da luta, que o movimento sindical e todos os movimentos sociais devem seguir, para fortalecer e recolocar o Governo Lula na rota da reconstrução do Estado e da distribuição de renda para a qual foi eleito.
Reiterando, só se muda uma correlação de forças desfavorável se houver ações nesse sentido. O momento positivo de aprovação da PEC da Transição apoiou-se ainda na mobilização derivada do processo eleitoral, mas que aos poucos foi-se desfazendo; é preciso retomá-la, exigindo uma nova postura tanto do Governo Lula como também de todas as correntes políticas de esquerda e democráticas.
*Graça Druck é professora titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
*Luiz Filgueiras é professor titular da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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