Por EMILIO CAFASSI*
A história ratificou mais uma vez a relação pendular entre as hegemonias parciais e transitórias de ambos os países e as suas influências mútuas
Na segunda-feira da semana passada, dia 20, marchamos em silêncio pela avenida principal de Montevidéu sem outra bandeira ou símbolo além da histórica margarida parcialmente desfolhada (logotipo atribuído a um ex-presa político) que identifica mães e parentes de desaparecidos durante o terrorismo de Estado. A flor frágil, mas ao mesmo tempo resistente, evoca a memória das consequências atrozes da última ditadura civil-militar, instaurada entre 1973 e 1985 no Uruguai.
Acompanhamos cada passo com um silêncio tão eloquente quanto solene, apenas interrompido pelo tremor emocional causado pelo nosso grito “presente” ressoando como um eco antes da leitura de cada nome dos desaparecidos nos alto-falantes das esquinas. Tal como o 24 de Março em Buenos Aires, estas marchas exigindo verdade e justiça adquirem uma magnitude inegável, proporcional ao nível de horror dos crimes denunciados e à impunidade que os cobre.
Apenas um punhado de palavras concatenadas entre si numa coreografia de perguntas permite que o bisturi inquisitivo seja inserido nas entranhas do horror: “quando, onde, como e por quê”. Porque “eles”, os genocidas e os seus encobrimentos, inquestionavelmente sabem.
A década de 1980 encontrou um paralelismo sólido e perturbador entre os dois países ribeirinhos na consagração da impunidade. Na Argentina, o governo Alfonsín impôs as leis do ponto final (nº 23.492) e da devida obediência (nº 23.521) que garantiram a extinção da ação penal e a não punibilidade dos crimes da ditadura em 1986 e 1987, respectivamente, congelando covardemente a necessária continuação do chocante julgamento e condenação da junta militar e da criação anterior da CONADEP e suas investigações.[i]
Por sua vez, no Uruguai, o primeiro governo Sanguinetti conseguiu a aprovação da lei de caducidade (nº 15.848) também em 1986. Os indultos decretados por Menem apenas consolidaram a devastação resultante. Uma grotesca e vergonhosa manta amnésica estendeu-se sobre ambas as margens, apesar do ato reflexo vital que posteriormente constituiu a iniciativa oriental da Comissão Nacional Pró-Referendo contra a “Ley de Caducidad de la Pretensión Punitiva del Estado”, também conhecida como “Comissão do Voto Verde”, naquele momento insuficiente para atingir o objetivo revogatório.
No início dos anos 1990, a derrota parecia avassaladora no sul do continente se adicionássemos também a constituição de Pinochet ao outro lado da cordilheira, deixando uma tapeçaria jurídica tecida com fios de sombras.
As convergências políticas e cronológicas brilham com um brilho verdadeiramente impressionante como se pode verificar no quadro ilustrativo que guarda detalhes textuais. As três normas, através das suas disposições específicas, surgem como guardiãs obscuras dos violadores dos direitos humanos durante o terrorismo de Estado, limitando a níveis extremos a possibilidade de julgá-los e condená-los. É como se viessem de uma única caneta coberta com pigmentos idênticos de podridão cívica. Proteção que se articula de diferentes formas dependendo do contexto político de recuperação das normas constitucionais de cada país, mas sempre sob a premissa de garantir a impunidade dos responsáveis.
Comparação de leis de impunidade
Aspecto | Lei da Caducidade (15.848) | Lei do Ponto Final (23.492) | Lei da Devida Obediência (23.521) |
Data | 22/12/86 | 29/12/86 | 06/08/87 |
Governo | Sanguinetti | Alfonsín | Alfonsín |
Objetivo geral | Extinguir a pretensão punitiva do Estado pelos crimes cometidos durante a ditadura | Extinguir a ação penal por crimes relacionados com ações políticas violentas até 1983 | Estabelecer uma presunção de devida obediência para exonerar militares de responsabilidade criminal |
Extinção da Ação Penal | Artigo 1 | Artigo 1 | Artigo 1 |
Exclusões Específicas | Artigo 2.º: Exclui casos com acusação e crimes económicos | Artigo 5.º: Exclui os crimes de substituição do estado civil e de rapto de criança | Artigo 2º: Exclui crimes de violação, rapto de criança e substituição de estado civil |
Intervenção do Poder Executivo | Artigo 3º: O Poder Executivo informa sobre a inclusão de fatos | Não aplicável | Não aplicável |
Procedimentos Judiciais | Artigo 3.º: Suspender o processo até comunicação do Executivo | Artigos 2.º a 4.º: Procedimentos específicos e suspensão de prazos | Artigos 3-4: Aplicação ex officio e restrições a intimações |
Benefícios de aposentadoria e reconhecimento de honra | Artigos 5º a 9º: Ajusta os benefícios de aposentadoria e reconhece a honra dos dirigentes | Não aplicável | Não aplicável |
Somente neste século alguns tijolos do muro do silêncio começaram a rachar. O primeiro foi o Congresso argentino durante o governo Kirchner que, através de uma lei (nº 25.779) de 2003, anulou as leis anteriores de impunidade. Posteriormente, o próprio Supremo Tribunal de Justiça a ratificou ao defender a inconstitucionalidade das referidas leis em 2005. A partir desse momento, vários juízes passaram a declarar inconstitucionais os indultos referentes a crimes contra a humanidade e a reabrir os casos. Em 15 de junho de 2006, a Câmara de Cassação Penal, o mais alto tribunal penal da Argentina, considerou inconstitucionais os indultos concedidos por crimes contra a humanidade. Por último, o Tribunal confirmou as decisões dos tribunais de primeira instância, decidindo expressamente que os indultos não eram constitucionais e que as penas que anularam deveriam ser cumpridas.
A história ratificou mais uma vez a relação pendular entre as hegemonias parciais e transitórias de ambos os países e as suas influências mútuas. No Uruguai, mesmo com a inimputabilidade em vigor (até hoje), a evasão de denúncias protegidas pela lei da caducidade começou a esmaecer a partir do primeiro governo da Frente Ampla com Tabaré Vázquez, embora a proteção aos criminosos tenha sobrevivido. Certamente a derrota do voto rosa[ii] no segundo plebiscito para revogar a lei foi um duro golpe, que, no entanto, não apagou totalmente a chama da busca pela verdade.
Mais tarde ainda, o governo de Pepe Mujica decretou a revogação dos atos administrativos e mensagens do Poder Executivo que incluíam os casos sob a proteção da referida lei, que ao mesmo tempo sofreu retrocessos típicos da própria estrutura judicial, atrasando a possibilidades de elucidação que o artigo 4º permitiria. Na Argentina, a partir da nomeação de Eduardo Luis Duhalde (chamado de “Duhalde o bom”, para não confundi-lo com o presidente provisório homônimo que precedeu Kirchner após a fuga de De la Rúa) como chefe da Secretaria de Direitos Humanos foi um marco.
As suas funções e se alcance ampliaram-se ao promover julgamentos de criminosos contra a humanidade, conseguindo a condenação e prisão de pouco mais de mil perpetradores. Embora este número represente apenas uma fração do número total de criminosos no Estado terrorista, é um indicador significativo de uma tendência dignificante. No Uruguai, porém, a diretriz foi quebrada quando em 2013 sofreu-se novo revés com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça de declarar inconstitucional a lei interpretativa com a qual o parlamento pretendia mitigar os efeitos da caducidade aberrante.
O governo de Mauricio Macri retomou o caminho da inversão. Não tocou nas normas legais a este respeito, não libertou criminosos, nem questionou a louvável iniciativa de Cristina Kirchner de transferir a sede do Secretariado para as instalações sagradas do Espaço Memória e Direitos Humanos, na antiga ESMA, esse escuro e vasto centro clandestino de tortura e extermínio da ditadura. No entanto, desencadeou uma ofensiva discursiva contra a defesa dos direitos humanos, que os subsequentes modos mornos de Alberto Fernández não conseguiram reverter ou mesmo conter.
Ele iniciou o que hoje Javier Milei e os seus militantes chamam de “batalha cultural”, numa reinterpretação grotesca dos conceitos de cultura e hegemonia de Gramsci, que eles tiveram dificuldade em ler. Por outro lado, o triunfo de Lacalle Pou nada mais fez do que perpetuar o imutável estado de coisas que consagra a expiração celebrada por todo o herrerismo,[iii] com um tempero adicional na formação da sua aliança multipartidária, na qual a facção “Cabildo Abierto” constitui um fiel determinante do seu equilíbrio. Com efeito, na direção do estilo macrista, a narrativa inescrupulosa e virulenta contra as sentenças dos criminosos da ditadura do setor chefiado pelo militar Manini Ríos, reforça o abominável pólo da caducidade.
Neste clima rarefeito, os gestos hostis não demoram a surgir. Precisamente a emblemática ESMA, às vésperas da marcha de Montevidéu, recebeu encorajados pessoas nostálgicas da tortura, como os ex-suboficiais do exército da classe de 78. Esses indivíduos, cheios de sombria arrogância, aplaudiram essas ações e tiraram fotos com o avião dos voos da morte, agora expostos no museu da memória. Entretanto, o presidente Javier Milei, o seu vice Villarruel e o ministro Petri não param de insultar o movimento dos direitos humanos, de reivindicar a ditadura, ou de dirigir a política externa para o genocida Benjamin Netanyahu e os seus principais hierarcas, que hoje enfrentam um mandado de prisão para parte de um procurador do Corte Criminal Internacional.
Além disso, estão determinados a desmantelar o material probatório e acusatório dos julgamentos em curso. Para isso, desativam a fonte documental que acabou por ser os Equipos de Relevamiento y Análisis (ERyA) dos arquivos das Forças Armadas, privando a justiça dos insumos probatórios cruciais necessários para apoiar as acusações. Gestos e ações revelam uma tentativa deliberada de desmantelar os progressos alcançados na busca da verdade e da justiça, restabelecendo um manto sombrio de impunidade sobre os crimes do passado.
Enquanto marchávamos em silêncio, perguntei-me o que aconteceria àquela mesma manifestação do outro lado, com as ameaças repressivas permanentes formalizadas e executadas pelo protocolo de segurança do Ministro Bullrich, contidas ou auto-inibidas nas marchas massivas, mas ferozes face a mais expressões minoritárias ou nas desconcentrações. Além do protocolo, a lei omnibus de Javier Milei e o seu DNU complementam alguns aspectos, formando um dispositivo verdadeiramente ameaçador, porque sem garantias de liberdades cívicas básicas, como o direito de protestar, será cada vez mais difícil avançar sobre o princípio da igualdade perante a lei que viola a impunidade.
Marchamos entre as ervas daninhas sobreviventes das ditaduras, que erigiram a violação máxima das liberdades civis, entre outras aberrações social e economicamente devastadoras, através da dominação e apropriação dos corpos. Pelo confinamento, pela tortura, pela morte, pela apropriação de bebês e pela exploração sexual e humilhação das vítimas, especialmente das mulheres. Por outro lado, mediante o controle através do terror sórdido omnipresente, na circulação urbana de cidadãos “livres”.
O futuro está cheio de incertezas, embora concordemos que no nosso bom senso vive o apotegma segundo o qual a única luta que se perde é aquela que se abandona. Dessa forma, estaremos perdidos se não sairmos repetidas vezes às ruas, se a indignação deixar de nos revelar, se em alguma dobra de desânimo e percepção de desigualdade de forças, as marchas deixarem de nos convocar.
Elas nos encorajam a fazer do silêncio de cada passo um estrondo ensurdecedor.
*Emilio Cafassi é professor sênior de sociologia na Universidade de Buenos Aires.
Tradução: Artur Scavone.
Notas do tradutor
[i] CONADEP foi a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, uma comissão criada na Argentina em 1983, logo após o fim da ditadura militar que governou o país de 1976 a 1983. A CONADEP foi encarregada de investigar os casos de desaparecimento forçado de pessoas durante a ditadura, documentando e denunciando os abusos dos direitos humanos cometidos pelo regime militar. Seu relatório final, conhecido como “Nunca Más”, foi fundamental para a investigação e responsabilização dos crimes cometidos durante a ditadura na Argentina.
[ii] A denominação “voto rosa” refere-se à cor da cédula de votação no plebiscito que colocou em questão a revogação da Lei de Caducidade no Uruguai, realizado em 25 de outubro de 2009. Propunha-se a anulação dos artigos 1º a 4º da lei e a declaração da sua inexistência. O plebiscito ocorreu simultaneamente às eleições gerais daquele ano e a outro plebiscito que buscava viabilizar o voto dos uruguaios no exterior (voto branco). A iniciativa alcançou 47,36% de votos afirmativos, não tendo sido alcançada a maioria absoluta exigida constitucionalmente.
[iii] “Herrerismo” refere-se à corrente conservadora e originalmente antiliberal do Partido Nacional (ou Partido Branco) no Uruguai que se origina na liderança de Luis Alberto de Herrera, o primeiro vencedor das eleições desse partido em 1958. Ele percorreu o país em campanha, acompanhado de seu neto de 17 anos, Luis Alberto Lacalle. Em 1989 seu neto, Lacalle Herrera, venceu as eleições já imbuído do liberalismo ortodoxo, especialmente em questões econômicas e, em 2020, o seu bisneto, Lacalle Pou.
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