Por SERGIO COHN*
Discurso de abertura do projeto Memória da Poesia Brasileira, na Fundação Biblioteca Nacional, em 27 de maio de 2024
Sendo esse o primeiro evento do projeto Memória da Poesia Brasileira, é importante fazer uma rápida apresentação. Mas, antes de tudo, gostaria de agradecer ao presidente da Fundação Biblioteca Nacional, o poeta e acadêmico Marco Lucchesi, e a coordenadora-geral Verônica Lessa, por terem de forma tão entusiasta abraçado esse projeto que é da maior importância.
O projeto Memória da Poesia Brasileira, com curadoria de Sergio Cohn, é uma proposta institucional de criação de acervo de depoimentos públicos para a posteridade, registros audiovisuais de poetas recitando seus próprios textos e doação de manuscritos de importantes autores contemporâneos. Os depoimentos serão mensais e gratuitos, realizados no Auditório Machado de Assis da Biblioteca Nacional, e serão transmitidos ao vivo e também ficarão disponíveis nas páginas da Biblioteca Nacional.
Há a proposta também de se gerar produtos derivados, como podcasts, discos de poesia e livros. A intenção é de ser um projeto continuado, seguindo na agenda da Biblioteca Nacional e criando um panorama amplo da poesia brasileira contemporânea. O projeto permite também expandir o acervo da Biblioteca em outras mídias, como o áudio e o audiovisual. O que mostra a atenção da gestão atual do presidente da Fundação Biblioteca Nacional, o poeta e acadêmico Marco Lucchesi, em se discutir o que é um acervo quando as novas tecnologias criam outros suportes. Hoje, muito do que se publica sobre poesia não está no papel, e precisam ser criadas novas formas de acervo para se resguardar esse conteúdo para a memória futura.
É importante ressaltar o teor institucional do projeto. São raras, ou até praticamente nulas, as políticas culturais públicas para a poesia. Quando ocorrem, são especialmente em torno de editais de publicação de livros. Exatamente a área menos necessitada desta importante linguagem artística: atualmente, com os avanços tecnológicos que permitem a impressão de baixas tiragens ou por demanda, se multiplicam editoras que lançam uma quantidade imensa de novos títulos todos os anos.
No total, podemos estimar que várias centenas de novos títulos de poesia são publicados anualmente. Mas aí o próprio termo “publicar” entra em questão: não seria trazer a público? Quantos desses livros editados superam a casa de uma ou duas dezenas de leitores, dentro de um circulo ainda privado de família e amigos? Certamente muito poucos. É claro que mesmo assim é melhor do que deixar os originais guardados na gaveta. Mas, para efetivamente se publicar um livro, é preciso uma série de ações, que passam por edição, divulgação e circulação, que acabam não sendo realizadas. O próprio mercado não tem capacidade de abarcar essa quantidade imensa de novos títulos. Parafraseando Caetano Veloso, “quem lê tanta poesia?” Acaba sendo apenas uma cauda longa que pouco constitui um público leitor e uma troca consistente entre os poetas.
Aliás, é preciso colocar em debate o mercado editorial brasileiro, que está enfrentando uma imensa crise. Não apenas financeira, mas de relação interna entre os seus diversos agentes. Eu costumo dizer que o mercado editorial brasileiro virou uma ciranda do Drummond ao avesso: o autor odeia a editora que odeia a livraria que odeia o leitor que não está nem ligando para isso porque nem sabe direito o que é um livro. Qualquer política pública em nome da literatura precisa passar por uma revisão dessa situação.
Outro fator é que mesmo essas parcas políticas de incentivo para a poesia são realizadas através de editais e prêmios, instrumentos que, ao invés de incentivar o compartilhamento, a constituição de espaços comuns e iniciativas coletivas e abertas e o diálogo entre os fazedores de cultura, faz o inverso, estimulando a competição e a exclusão entre os pares. Além de serem instrumentos que não possibilitam a criação de políticas culturais de longo prazo, continuadas e consequentes, permanecendo na lógica dos eventos e de agendas do momento.
Existe ainda outra dimensão pouco percebida desses instrumentos, que é a utilização de grande parte das forças de trabalho dos fazedores de cultura para elaborar projetos que na maioria das vezes não são contemplados e realizados, permanecendo assim em documentos privados. Ou seja, muito trabalho por nada. É triste acompanhar artistas e produtores trabalhando incensantemente para elaborar dez, dozes projetos para editais por ano, muitas vezes nem mesmo dentro das suas próprias pesquisas, mas se adequando ao escopo do edital, para conseguir ser contemplado em apenas um ou dois, se tanto. Certamente, há formas mais interessantes, prazerosas e em nome do bem comum de se utilizar a capacidade de realização desses profissionais. Ainda é preciso uma análise aprofundada de como esses instrumentos tem sido nocivos para a cultura em sua base.
Mas não podemos culpar apenas o Estado por essa ausência de políticas públicas para a poesia. Em 2010, durante o último ano do segundo mandato do Presidente Lula, fui chamado para uma conversa no Ministério da Cultura. Ali, me convidaram para pensar um projeto em torno da poesia brasileira. O motivo: eles não queriam finalizar o governo sem ter nada realizado nessa área, pois em oito anos de gestão nenhum projeto de fôlego foi apresentado pela sociedade civil tendo como objeto a poesia. Ou seja, os poetas não se preocuparam em nenhum momento em pensar propostas amplas em torno da própria linguagem artística que trabalham e nem em dialogar com o Estado em nome de fortalecimento dessa linguagem.
Isso não pode ser normalizado. E é algo recente. Até a década de 1980, os poetas tiveram participação ativa na cultura e na sociedade. É só pensar em nomes como Mário de Andrade, Vinicius de Moraes, Ferreira Gullar e Waly Salomão para se perceber o quanto foram centrais não apenas para a poesia, mas também para outras linguagens artísticas e até mesmo para a política. Temos um exemplo muito claro aqui ao lado: o maravilhoso poeta Chacal. Sem ele, muito do que melhor se fez em torno da cultura carioca dos últimos 50 anos não teria existido. Essa cidade teria perdido muito da alegria e criatividade que ainda lhe resta.
Eu aprendi com o designer André Stolarski, que infelizmente faleceu muito cedo, que uma política cultural para ser efetiva precisa de quatro pontos: mapeamento, apresentação, reflexão e estímulo à criação. A memória é parte efetiva de todos esses pontos. Sem a criação de uma memória da poesia contemporânea, não podemos criar uma política futura ou mesmo um público leitor. Se o mapeamento e o registro dessa produção é um trabalho mais dretamente de memória, a apresentação é o acesso e a formação de um público leitor, a reflexão permite a qualificação não só desse público como da própria produção poética e o estímulo à criação permite a renovação e atualização da linguagem e de seus temas.
Mas, de todos esses eixos, como dito acima, somente o último tem sido minimamente contemplado pelas políticas culturais das últimas décadas. E não só na poesia. Mas na poesia o caso talvez seja ainda mais gritante, até mesmo pela ausência de recursos.
Pois bem, esse projeto de Memória da Poesia Brasileira é um primeiro passo na busca de reverter esse cenário. É um projeto continuado, criado em diálogo entre instituição pública e sociedade civil. Mas é preciso mais desdobramentos, e eu proponho que se crie um grupo de trabalho, em diálogo com o Ministério da Cultura e se possível com secretarias municipais e estaduais de cultura, para se pensar ações efetivas em torno da poesia. É uma iniciativa urgente.
Por fim, ultimamente há a tentativa de se reconquistar alguns símbolos sequestrados pela extrema direita, como a bandeira e a camisa da seleção de futebol. Confesso que esses símbolos, pela sua natureza bélica e patriarcal, pouco me interessam. Mas outro sim: a palavra “liberdade”. A extrema direita sequestrou essa palavra. É impressionante como “libertário”, por exemplo, virou uma forma exatamente de atacar as instituições e as iniciativas públicas e comuns. Temos que reconquistá-la, porque sabemos que sem uma cultura ampla e diversificada, sem uma educação não-normativa, sem direitos e oportunidades iguais, essa palavra “liberdade” pode se tornar apenas um grito vazio.
Temos que reinventar a relação da sociedade com as instituições, de forma mais aberta e participativa, para podermos fortalecer a ambas as partes. Esse também é um objetivo desse projeto. E para isso é preciso um esforço continuado, porque o combate ao fascismo e a constituição da cidadania não se restringe ao voto, mas numa ação cotidiana de criação e alegria. Oswald de Andrade falava sobre a “consciência participante” da Antropofagia. É essa a dimensão que a poesia precisa também retomar, em nome daquilo que o grande crítico de arte Mário Pedrosa chamou de “alegria de criar, alegria de viver”.
*Sergio Cohn é poeta e editor da Azougue. Atualmente, é curador da revista Poesia Sempre da Fundação Biblioteca Nacional.
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