Maria da Conceição Tavares (1930-2024)

Palestra em Amsterdã. Década de 1980. Arquivo pessoal. Foto: Jan Stegeman
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Homenagem à economista e professora recém-falecida

Mentora é a pessoa experiente e sábia, capaz de guiar, sem necessidade de dar diretamente conselhos a outra pessoa. É guia ou mestre: direciona, desenvolve, elabora ou escreve ideias em obras, e dá exemplo de postura política, mesmo sendo de modo remoto – além do seu tempo e do seu lugar.

Considero a professora Maria da Conceição Tavares (1930-2024) minha mentora intelectual. Foi a pessoa cuja prática influenciou os comportamentos de toda uma geração social-desenvolvimentista, isto é, defensora de políticas sociais ativas em complemento à política econômica para crescimento e distribuição de renda.

A periodização de sua obra pode ser desdobrada em três grandes fases. A fase cepalina vai de 1963, data de publicação do seu clássico Auge e Declínio do Processo de Substituição de Importações no Brasil, até 1972, quando foi publicado seu ensaio Além da Estagnação, escrito com José Serra. A fase de revisão teórica se inicia em 1973, quando a autora publicou o importante ensaio Distribuição de Renda, Acumulação e Padrões de Industrialização (precursor de sua tese de livre-docência e, depois, a de titular), até 1985. Neste ano, quando publicou seu ensaio A Retomada da Hegemonia Norte-Americana, iniciou a fase da economia política internacional, etapa final do seu pensamento escrito em obras.

Essa periodização é possível de ser também apresentada de maneira política e institucional. Na Era Desenvolvimentista (1950-1980), seu objetivo principal era entender a lógica do crescimento brasileiro concentrador de renda e riqueza. Na Era Neoliberal (1980-2002)), pesquisava os elementos causadores da ausência de crescimento com a estagflação. Na Era Social-Desenvolvimentista (2003-2014), apoiava o governo do Partido dos Trabalhadores com suas críticas construtivas.

Em termos institucionais, teve a fase da CEPAL, com foco no (sub)desenvolvimento econômico periférico, em particular, da economia brasileira. Depois de setembro de 1973 (golpe militar no Chile), veio a fase da UNICAMP, onde formou muitos discípulos por meio do diálogo crítico com pensadores da tradição da Economia Política, como Marx, Keynes e Kalecki. Na fase da UFRJ, mudou seu foco para a análise da (des)ordem econômica mundial, apresentando uma
“visão geopolítica para entender melhor a formação dos centros hegemônicos”.

Foram inúmeras as contribuições da obra da Professora. Em seus trabalhos da década de 1970 e 1980, rompeu com a visão cepalina de determinantes externos. Passou a se basear nos esquemas setoriais de análise, desenvolvidos por Kalecki, para compreender a dinâmica das economias capitalistas em desenvolvimento.

Em sua visão crítica à tese de estagnação, reconheceu o consumo conspícuo (de luxo) ter relevância como estímulo à acumulação de capital em mercado interno de países com distribuição desigual da renda – 
e não como um impedimento. Fez um deslocamento da análise: a ênfase do seu pensamento recaiu sobre os limites nas decisões de investimento sem autonomia financeira e tecnológica.

Desenvolveu a ideia de a distribuição de renda ser exógena ao processo de acumulação por ser determinada pelo quadro político-sindical. A economia brasileira crescia puxada pelo efeito acelerador do investimento e multiplicador da renda, concentrada por razões político-institucionais na expansão do consumo das classes de rendas mais altas.

Os fatores distributivos não foram impostos, endogenamente, pela forças de mercado, mas por forças políticas. O aumento do consumo de bens de maior valor agregado não reduziu o consumo dos trabalhadores, pelo contrário, o aumentou por meio do endividamento.

Destacou: salário não é só custo. A massa salarial representa demanda.

Há três ideias centrais do pensamento da Professora. Primeira, a falsa extrapolação da Microeconomia à Macroeconomia da oposição dos salários contra os lucros, porque estes dependem das decisões de gasto dos capitalistas. A acumulação não se limita por salários, mas sim por grau de endividamento, ritmo de vendas, excesso de capacidade ociosa e carência de inovação.

A segunda é a distribuição de renda ser determinada pelo movimento de acumulação, pelo padrão de concorrência intercapitalista e pelo poder de organização dos trabalhadores. As lutas de classes afetam a distribuição de renda, porém se subordinam à acumulação de capital ou ao desemprego.

A terceira se refere à instabilidade estrutural do capitalismo, inspirada em Kalecki, vista pela desproporção entre os três setores. O DI (setor produtor de bens de capital) tende a expandir sua capacidade produtiva acima da demanda dos outros setores DII (bens de consumo capitalista) e DIII (bens de consumo assalariado).

Os capitalistas fazem muitas coisas como classe, mas não definem, 
em comum, suas decisões de gasto.
Estas são descentralizadas, descoordenadas e desinformadas 
uma das outras.
Incerteza também é um dos determinantes do investimento.

O sistema não tende à estagnação, mas oscila sim em movimentos cíclicos de expansão e contração. Conceição também faz uma leitura schumpeteriana do capitalismo ao destacar o impulso da dinâmica ser dado pela inovação. A ênfase nos aspectos endógenos inspira-se tanto em Kalecki como em Schumpeter.

Os principais temas de pesquisa de Conceição Tavares foram a respeito da relação centro-periferia, revelada no balanço do comércio exterior, com repúdio à visão de automatismos do mercado contra o subdesenvolvimento. Destacou o estilo distinto de desenvolvimento em economia periférica e do papel das empresas transnacionais na dinâmica da economia mundial.

Em pesquisa do ciclo e crise, verificou o movimento limitado pelo grau de industrialização. Nela, os estrangulamentos externos tornam-se menos relevantes diante da ênfase na dinâmica endógena da acumulação de capital, nos determinantes relativos à concorrência (microdinâmica) e nas categorias de uso dos bens (macrodinâmica) ao longo do ciclo.

Outra linha de pesquisa original foi quanto ao problema do financiamento das empresas não-financeiras. Mostrou a influência das mudanças da estrutura produtiva sobre os problemas de financiamento, em especial ao consumo, bem como limites impostos pela inflação ao autofinanciamento. A evolução do crédito e dos ativos financeiros se daria em ciclos, dependentes dos mecanismos de criação de liquidez real e liquidez financeira.

Quanto à geoeconomia e geopolítica internacional, destacou o fato dos Estados Unidos, com perda do seu vigor na liderança tecnológica e déficit comercial, terem se tornado um país devedor do resto do mundo. Porém, sendo o país emissor da moeda mundial e tendo domínio bélico, além de gerar o maior PIB mundial, conseguiu a imposição de seus interesses ao resto do mundo com hegemonia não apenas bélica e econômica, mas também política e ideológica.

No seu clássico livro Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro (1973), há quatro ensaios. No Auge e Declínio do Processo de Substituição de Importações, destaca ele não visar a autarquia, sendo apenas um processo de ampliação e diversificação da capacidade produtiva. No Notas sobre o Problema do Financiamento em uma Economia em Desenvolvimento, revela com a espiral salários-preços o sistema de preços relativos impedia o autofinanciamento.

No Além da Estagnação, critica à tese da estagnação secular por mercado interno diminuto pela concentração, defendida por Celso Furtado, e alerta contra o dinamismo perverso socialmente imposto pela repressão política inclusive aos sindicatos. No ensaio Natureza e Contradições do Desenvolvimento Financeiro Recente distingue a separação entre capital industrial / produtivo e capital financeiro prejudicar alavancagem financeira para ampliar escala e rentabilidade.

Em O Sistema Financeiro Brasileiro e o Ciclo de Expansão Recente (1983), diferencia entre dinheiro de pobre e dinheiro de rico; dinheiro de curso forçado e dinheiro financeiro; mercado bancário de crédito ou endividamento e mercado de capitais para enriquecimento; órbita financeira (valorização fictícia do capital-dinheiro) e órbita monetária (realização dos ganhos da esfera produtiva). Todas essas distinções levam à disjuntiva entre abundância e escassez.

Em Uma Reflexão sobre a Natureza da Inflação Contemporânea (1984), mostra a superação do modelo de “preços normais” pela repactuação de contratos em regime de alta inflação. Neste há sucessivas reavaliações de valores de mercado dos estoques, provocando uma aceleração inflacionária em lugar da inércia destacada por outros economistas no debate público da época.

Contrapõe o modelo de fix-prices (preços rígidos) ao modelo de flex-prices (preços flexíveis ou competitivos). A flexibilidade de preços se dá em função da margem desejada de lucro. Dada a margem de segurança para prevenção contra a esperada remarcação de preços pelos fornecedores, a precificação incorpora uma margem incerta ou superestimada de cálculo.

Havia também a “financeirização” de preços a prazo ao considerar o custo de oportunidade da taxa de juro. Esta, ao invés de frear, acelerava a inflação!

Enfim, são inesquecíveis os ensinamentos da Professora, minha mentora: (i) para ser bom analista do todo sistêmico é necessário ler todos os especialistas em partes componentes do sistema complexo emergente; (ii) para se tornar um bom economista não se pode ser apenas economista; (iii) a melhor formação intelectual e profissional é a pluralista e transdisciplinar; (iv) para ser heterodoxo não se pode ser dogmático nem sectário – e tem de saber tudo da ortodoxia para enfrentar o debate público; (v) de economista inculto o mundo não precisa mais; (vi) “nunca diga nada sobre economia brasileira sem evidência empírica”!

Seu amor ao conhecimento, isto é, sua filosofia nos ilustrou. “Quem não sabe se deixar ultrapassar por um discípulo não é uma mestra. A mestra não é uma repetidora da verdade, pois o relevante é, sobretudo, o caminho para a verdade. O maior ensino da mestra não está no dito, mas sim no praticado. Mestra não é quem sempre ensina, mas sim quem é capaz de aprender com os discípulos.”

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/3r9xVNh]


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