Por MICHAEL LÖWY*
Notas por ocasião do centenário da morte do escritor tcheco
1.
Franz Kafka era um espírito libertário. É claro que sua obra não pode ser reduzida a uma doutrina política, seja ela qual for. O escritor não produz discursos, mas cria indivíduos e situações, exprime em sua obra sentimentos, atitudes, uma Stimmung. O mundo simbólico da literatura é irredutível ao mundo discursivo das ideologias: a obra literária não é um sistema conceitual abstrato, como as doutrinas filosóficas ou políticas, mas a criação de um universo imaginário concreto de personagens e coisas.[i]
No entanto, isso não nos impede de explorar as passagens, as passarelas, as ligações subterrâneas entre seu espírito antiautoritário, sua sensibilidade libertária, suas simpatias pelo anarquismo, por um lado, e seus principais escritos, por outro. Estas passagens dão-nos um acesso privilegiado àquilo a que se poderia chamar a paisagem interna da obra de Franz Kafka.
Três testemunhos de tchecos contemporâneos documentam a simpatia do escritor de Praga pelos socialistas libertários tchecos e sua participação em algumas de suas atividades. No início dos anos 1930, na ocasião de suas pesquisas para o romance Stefan Rott (1931), Max Brod recolheu informações junto a um dos fundadores do movimento anarquista tcheco, Michal Kacha. Trata-se da participação de Kafka nas reuniões do Klub Mladych (Clube dos Jovens), uma organização libertária, antimilitarista e anticlerical, frequentada por vários escritores tchecos (S. Neumann, Mares, Hasek).
Incorporando estas informações – que lhe foi “confirmada por outra parte” – Max Brod observa em seu romance que Kafka “assistia frequentemente, em silêncio, às reuniões do círculo. Kacha achava-o simpático e chamava-o ‘Klidas’, que poderia ser traduzido como ‘o taciturno’ ou, mais precisamente, na gíria tcheca, como ‘o colosso do silêncio’”. Max Brod nunca pôs em dúvida a veracidade deste testemunho, que citaria novamente em sua biografia de Franz Kafka.[ii]
O segundo testemunho é o do escritor anarquista Michal Mares, que conheceu Franz Kafka na rua (eram vizinhos). Segundo Michal Mares – cujo documento foi publicado por Klaus Wagenbach em 1958 –, Kafka tinha ido, a seu convite, a uma manifestação contra a execução de Francisco Ferrer, o educador libertário espanhol, em outubro de 1909. Durante os anos 1910-12, ele teria assistido a conferências anarquistas sobre o amor livre, a Comuna de Paris, a paz e contra a execução do militante parisiense Liabeuf, organizadas pelo “Clube dos Jovens”, pela associação “Vilem Körber” (anticlerical e antimilitarista) e pelo Movimento Anarquista tcheco.
Em várias ocasiões, ele teria até mesmo pago cinco coroas de fiança para libertar seu amigo da prisão. Mares, tal como Kacha, insiste no silêncio de Kafka: “Tanto quanto sei, Franz Kafka não pertencia a nenhuma destas organizações anarquistas, mas tinha as fortes simpatias de um homem sensível e aberto aos problemas sociais. No entanto, apesar de seu interesse por estas reuniões (dada sua assiduidade), jamais interveio nas discussões”. Este interesse manifesta-se também em suas leituras – Discursos de um rebelde, de Kropotkin (presente do próprio Mares), bem como os escritos dos irmãos Reclus, Bakunin e Jean Grave – e em suas simpatias: “o destino do anarquista francês Ravachol ou a tragédia de Emma Goldmann, que editava Mother Earth, tocaram-no particularmente…”.[iii]
O terceiro documento é Conversas com Kafka, de Gustav Janouch, publicado pela primeira vez em 1951 e, consideravelmente aumentado, em 1968. Este relato, que se refere aos intercâmbios com o escritor de Praga durante os últimos anos de sua vida (a partir de 1920), sugere que Franz Kafka mantinha sua simpatia pelos libertários. Não apenas descreve os anarquistas tchecos como “muito amáveis e muito alegres”, “tão amáveis e tão simpáticos que somos obrigados a acreditar em tudo o que dizem”, mas as ideias políticas e sociais que exprime no curso dessas conversas continuam fortemente marcadas pela corrente libertária.
Por exemplo, sua definição do capitalismo como “um sistema de relações de dependência” onde “tudo é hierarquizado, tudo está em ferros” é tipicamente anarquista, por sua insistência no caráter autoritário deste sistema – e não na exploração econômica como o marxismo. Mesmo sua atitude cética em relação ao movimento operário organizado parece inspirada na desconfiança libertária em relação aos partidos e às instituições políticas: por trás dos operários que desfilam “já se adiantam os secretários, os burocratas, os políticos profissionais, todos os sultões modernos que preparam o acesso ao poder… A revolução evapora-se, resta apenas a lama de uma nova burocracia. As correntes da humanidade torturada são feitas de papéis dos ministérios”.[iv]
A hipótese sugerida por estes documentos – o interesse de Franz Kafka pelas ideias libertárias – é confirmada por certas referências em seus escritos íntimos. Por exemplo, em seu diário, encontramos este imperativo categórico: “Não esquecer Kropotkin!”; e numa carta a Max Brod, em novembro de 1917, exprime seu entusiasmo por um projeto de revista (Páginas de combate contra a vontade de poder) proposto pelo anarquista freudiano Otto Gross.[v] Não esquecendo o espírito libertário que parece inspirar algumas de suas declarações, por exemplo, a observação cáustica que um dia fez a Max Brod, referindo-se a seu local de trabalho, o Serviço de Seguro Social (onde os trabalhadores acidentados vinham reclamar seus direitos): “Como estes homens são humildes… Vêm pedir-nos ajuda. Em vez de invadirem a casa e de a saquearem, vêm pedir-nos ajuda”.[vi]
É muito provável que estes diferentes relatos – especialmente os dois últimos – contenham imprecisões e exageros. O próprio Klaus Wagenbach reconhece (sobre Mares) que “alguns detalhes podem estar errados” ou, pelo menos, “exagerados”. Do mesmo modo, segundo Max Brod, Mares, tal como muitas outras testemunhas que conheceram Franz Kafka, “tende a exagerar”, especialmente no que diz respeito à extensão de sua amizade com o escritor. Quanto a Janouch, enquanto a primeira versão de suas recordações dá uma impressão de “autenticidade e credibilidade”, pois “contém os sinais distintivos do estilo com que Kafka falava”, a segunda parece bem menos confiável.[vii]
Mas uma coisa é constatar as contradições ou os exageros destes documentos, outra coisa é rejeitá-los de imediato, qualificando as informações sobre as ligações entre Franz Kafka e os anarquistas tchecos como “pura lenda”. É esta a atitude de alguns especialistas, entre os quais Eduard Goldstücker, Hartmut Binder, Ritchie Robertson e Ernst Pawel – o primeiro um crítico literário comunista tcheco e os demais autores de biografias de Franz Kafka cujo valor é inegável.
2.
Vamos limitar-nos aqui a examinar o ponto de vista de Ritchie Robertson, autor de um ensaio notável sobre a vida e a obra do escritor judeu de Praga. O que é completamente novo e interessante neste livro é a tentativa de propor uma interpretação alternativa das ideias políticas de Kafka, que, segundo ele, não seriam nem socialistas nem anarquistas, mas românticas. Este romantismo anticapitalista não seria, em seu entender, nem de esquerda nem de direita.[viii] Ora, se o anticapitalismo romântico é uma matriz comum a certas formas de pensamento conservadoras e revolucionárias – e, nesse sentido, ultrapassa de fato a divisão tradicional entre esquerda e direita –, não deixa de ser verdade que os próprios autores românticos se situam claramente num dos pólos desta visão de mundo: o romantismo reacionário ou o romantismo revolucionário.[ix]
De fato, o anarquismo, o socialismo libertário e o anarcossindicalismo são exemplos paradigmáticos do “anticapitalismo romântico de esquerda”. Por conseguinte, definir o pensamento de Franz Kafka como romântico – o que me parece inteiramente pertinente – não significa de modo algum que ele não seja “de esquerda”, concretamente um socialismo romântico de tendência libertária.
Como todos os românticos, sua crítica da civilização moderna é tingida de nostalgia do passado – representada, para ele, pela cultura iídiche das comunidades judaicas da Europa do Leste. Com uma intuição notável, André Breton escreveu: “ao marcar o minuto atual”, o pensamento de Franz Kafka “gira simbolicamente para trás com os ponteiros do relógio da sinagoga” de Praga.[x].
3.
O interesse do episódio anarquista na biografia de Franz Kafka (1909-1912) é que ele nos oferece uma das chaves de leitura mais esclarecedoras da obra – em particular dos escritos a partir de 1912. Digo uma das chaves, porque o encanto desta obra vem também de seu caráter eminentemente polissêmico, irredutível a qualquer interpretação unívoca. O ethos libertário exprime-se nas diferentes situações que estão no centro de seus principais textos literários, mas sobretudo na forma radicalmente crítica como é representada a face assombrosa e angustiante da não-liberdade: a autoridade. Como bem disse André Breton, “nenhuma obra milita tanto contra a admissão de um princípio soberano exterior àquele que pensa”.[xi]
Um antiautoritarismo de inspiração libertária atravessa toda a obra romanesca de Franz Kafka, num movimento de “despersonalização” e reificação crescente: da autoridade paterna e pessoal à autoridade administrativa e anônima[xii]. Outra uma vez, não se trata de uma doutrina política qualquer, mas de um estado de espírito e de uma sensibilidade crítica – cuja principal arma é a ironia e o humor, o humor negro que é, segundo André Breton, “uma revolta superior do espírito”.[xiii]
Esta atitude tem raízes íntimas e pessoais em sua relação com o pai. Para o escritor, a autoridade despótica do pater familias é o próprio arquétipo da tirania política. Em sua Carta ao Pai (1919), Kafka recorda: “Você assumiu para mim o caráter enigmático dos tiranos, cujo direito não se baseia na reflexão, mas na própria pessoa deles”. Confrontado com o tratamento brutal, injusto e arbitrário dos empregados por seu pai, Franz Kafka solidariza-se com as vítimas: “Isto tornava a loja insuportável para mim, muito me fazia lembrar da minha própria situação em relação a você… É por isso que pertenço necessariamente ao partido dos empregados…”.[xiv]
As principais características do autoritarismo nos escritos literários de Kafka são: (i) a arbitrariedade: as decisões são impostas de cima, sem qualquer justificação – moral, racional, humana –, e muitas vezes com exigências desmedidas e absurdas feitas à vítima; (ii) a injustiça: a culpa é considerada – erroneamente – como evidente por si mesma, sem necessidade de prova, e os castigos são totalmente desproporcionais em relação à “culpa” (inexistente ou trivial).
Em sua primeira grande obra, O Veredito (1912), Kafka dedica-se apenas à autoridade paterna; é também uma das poucas obras em que o herói (Georg Bendemann) parece submeter-se inteiramente e sem resistência ao veredito autoritário: a ordem do pai ao filho para se atirar ao rio! Comparando esta novela com O Processo, Milan Kundera observou: “A semelhança entre as duas acusações, culpabilizações e execuções traiu a continuidade que liga o ‘totalitarismo’ íntimo da família ao das grandes visões de Kafka”[xv]. Com a ressalva de que nos dois grandes romances (O Processo e O Castelo) trata-se de um poder “totalitário” perfeitamente anônimo e invisível.
América (1913-14) é uma obra intermediária neste aspecto: as personagens autoritárias são, por vezes, figuras paternais (o pai de Karl Rossmann e o tio Jakob), por vezes, altos administradores de hotéis (o chefe do pessoal e o chefe dos porteiros). Mas mesmo estes últimos conservam um aspecto de tirania pessoal, combinando a frieza burocrática com um despotismo individual mesquinho e brutal. O símbolo deste autoritarismo punitivo aparece logo na primeira página do livro: desmistificando a democracia americana, representada pela famosa Estátua da Liberdade à entrada do porto de Nova Iorque, Franz Kafka substitui a tocha que tem nas mãos por uma espada… Num mundo sem justiça nem liberdade, a força nua e o poder arbitrário parecem reinar absolutos. A solidariedade do herói está com as vítimas desta sociedade: por exemplo, o motorista do primeiro capítulo, exemplo do “sofrimento de um pobre submetido aos poderosos”, ou a mãe de Thèrèse, levada ao suicídio pela fome e pela miséria. Ele encontra amigos e aliados ao lado dos pobres: a própria Thérèse, os estudantes, os habitantes do bairro popular que se recusam a entregá-lo à polícia – pois, escreve Franz Kafka num comentário revelador, “os operários não estão do lado das autoridades”.[xvi]
Do ponto de vista que nos interessa aqui, a grande viragem na obra de Franz Kafka é o conto Na colônia penal, escrito pouco depois de América. Há poucos textos na literatura mundial que apresentem a autoridade com uma imagem tão injusta e assassina. Não se trata do poder de um indivíduo – os Comandantes (Antigo e Novo) desempenham apenas um papel secundário na história – mas o de um mecanismo impessoal.
A contexto da história é o colonialismo… francês. Os oficiais e comandantes da colônia são franceses, enquanto os humildes soldados, estivadores e vítimas a executar são “nativos” que “não compreendem uma palavra de francês”. Um soldado “nativo” foi condenado à morte por oficiais cuja doutrina jurídica resume em poucas palavras a quintessência do arbitrário: “a culpa nunca deve ser posta em dúvida!”. Sua execução deve ser realizada por uma máquina de tortura que escreve lentamente em seu corpo, com agulhas que o perfuram: “Honra os seus superiores”.
A personagem central da história não é o viajante, que observa os acontecimentos com silenciosa hostilidade, nem o prisioneiro, que não reage, nem o oficial que preside à execução, nem o comandante da colônia. É a própria Máquina.
Toda a história gira em torno deste aparelho (Apparat) sinistro, que parece cada vez mais, no decurso da explicação bem detalhada do oficial ao viajante, como um fim em si mesmo. O Aparelho não está lá para executar o homem, mas o homem está lá para o Aparelho, para fornecer-lhe um corpo onde possa escrever sua obra-prima estética, sua inscrição sangrenta ilustrada com “muitos floreios e embelezamentos”. O próprio oficial é apenas um servo da Máquina e acaba por se sacrificar a este Moloch insaciável.[xvii]
Em que “Máquina de poder” concreta, em que “Aparelho de autoridade” que sacrifica vidas humanas, pensava Kafka? Na Colônia Penal foi escrito em outubro de 1914, três meses após o início da Grande Guerra…
Em O Processo e O Castelo, encontramos a autoridade como um “aparelho” hierárquico, abstrato e impessoal: os burocratas, por mais brutais, mesquinhos ou sórdidos que sejam, são meras engrenagens deste mecanismo. Como Walter Benjamin observa com acuidade, Franz Kafka escreve do ponto de vista do “cidadão moderno que se sabe entregue a um aparelho burocrático impenetrável, cuja função é controlada por instâncias que permanecem obscuras mesmo para seus órgãos executivos, a fortiori para aqueles que ele manipula”.[xviii]
4.
A obra de Franz Kafka está, ao mesmo tempo, profundamente enraizada em seu ambiente de Praga – como observa André Breton, ela “abraça todos os encantos, todos os feitiços” de Praga[xix] – e perfeitamente universal. Ao contrário do que muitas vezes se afirma, seus dois grandes romances não são uma crítica ao velho Estado imperial austro-húngaro, mas ao aparelho de Estado naquilo que ele tem de mais moderno: seu caráter anônimo, impessoal, enquanto sistema burocrático alienado, “coisificado”, autônomo, transformado num fim em si mesmo.
Uma passagem de O Castelo é particularmente esclarecedora deste ponto de vista: é aquela – uma pequena obra-prima de humor negro – em que o prefeito da aldeia descreve o aparelho oficial como uma máquina autônoma que parece funcionar “por si própria”: “Parece que o corpo administrativo já não consegue suportar a tensão, a irritação que ele vem sofrendo há anos por causa do mesmo caso, talvez insignificante em si mesmo, e que pronuncia o veredito por si próprio, sem a ajuda dos funcionários”.[xx] Esta intuição profunda do mecanismo burocrático como uma engrenagem cega, em que as relações entre os indivíduos se tornam uma coisa, um objeto independente, é um dos aspectos mais modernos, mais atuais e mais lúcidos da obra de Kafka.
A inspiração libertária está no cerne dos romances de Franz Kafka, que falam do Estado – seja sob a forma da “administração” ou da “justiça” – como um sistema impessoal de dominação que esmaga, sufoca ou mata os indivíduos. É um mundo angustiante, opaco e incompreensível, onde reina a não-liberdade. O Processo foi muitas vezes apresentado como uma obra profética: o autor, com sua imaginação visionária, teria previsto a justiça dos Estados totalitários, os processos nazistas ou stalinistas.
Bertold Brecht, ainda um companheiro de viagem da URSS, observou numa conversa com Walter Benjamin sobre Kafka em 1934 (antes mesmo dos julgamentos de Moscou): “Kafka só tem um problema, o da organização. O que o impressionava era a angústia diante do Estado-formigueiro, o modo como os homens alienam-se a si mesmos pelas formas de sua vida comum. E ele previu certas formas dessa alienação, como os métodos da GPU”.[xxi]
Sem questionar a pertinência desta homenagem à clarividência do escritor de Praga, convém, no entanto, lembrar que Kafka não descreve em seus romances Estados “de exceção”: uma das ideias mais importantes – cujo parentesco com o anarquismo é evidente – sugeridas por sua obra é o caráter alienado e opressivo do Estado “normal”, legal e constitucional. Logo nas primeiras linhas de O Processo, ele afirma claramente: “K. vivia bem num Estado de direito (Rechtstaat), a paz reinava por todo o lado, todas as leis estavam em vigor, então quem ousaria atacá-lo em sua casa?”[xxii]. Como seus amigos, os anarquistas de Praga, ele parece considerar toda forma de Estado, o Estado enquanto tal, como uma hierarquia autoritária e liberticida.
O Estado e sua justiça são também, por sua própria natureza, sistemas enganadores. Nada ilustra isto melhor do que o diálogo em O Processo entre K. e o abade sobre a interpretação da parábola do guardião da lei. Para o abade, “duvidar da dignidade do guardião seria duvidar da Lei” – o argumento clássico de todos os representantes da ordem. K. rejeita que, se se adota esta opinião, “é preciso acreditar em tudo o que o guardião diz”, o que lhe parece impossível:
“_ Não, diz o abade, não se é obrigado a acreditar que tudo o que ele diz é verdade, basta que o considere necessário.
“Triste opinião, diz K…, ela elevaria a mentira ao nível de regra do mundo”[xxiii].
Como Hannah Arendt observou corretamente em seu ensaio sobre Franz Kafka, o discurso do abade revela “a teologia secreta e a crença interior dos burocratas como uma crença na necessidade por si mesma, sendo os burocratas, em última análise, funcionários da necessidade”.[xxiv]
Finalmente, o Estado e os juízes administram menos a justiça do que a caça às vítimas. Numa imagem comparável à da substituição da tocha da liberdade por uma espada em América, vemos em O Processo um quadro do pintor Titorelli que deveria representar a deusa da Justiça transformar-se, quando a obra está bem iluminada, numa celebração da deusa da Caça. A hierarquia burocrática e jurídica constitui uma imensa organização que, segundo Joseph K, a vítima do Processo, “não só utiliza guardas venais, inspetores e juízes de instrução estúpidos… mas mantém ainda toda uma alta magistratura com seu indispensável séquito de valetes, escribas, gendarmes e outros auxiliares, talvez até carrascos, eu não me esquivo à palavra”[xxv]. Em outras palavras: a autoridade do Estado mata. Joseph K. conhece os carrascos no último capítulo do livro, quando dois funcionários públicos o matam “como um cão”.
O “cão” constitui uma categoria ética – ou até mesmo metafísica – na obra de Franz Kafka: descreve qualquer pessoa que se submete servilmente às autoridades, sejam elas quem forem. O comerciante Block ajoelhado aos pés do advogado é um exemplo típico: “Já não era um cliente, era o cão do advogado. Se este lhe tivesse ordenado que rastejasse para debaixo da cama e ladrasse como se estivesse numa casinha de cachorro, teria feito com prazer”. A vergonha que deve sobreviver a Joseph K. (última palavra de O Processo) é a de ter morrido “como um cão”, submetendo-se sem resistência aos seus carrascos. É também o caso do prisioneiro de Na Colônia Penal, que nem sequer tenta fugir e se comporta com uma submissão “canina” (hündisch)[xxvi].
O jovem Karl Rossmann, em América, é um exemplo de alguém que tenta – mas, nem sempre consegue – resistir às “autoridades”. Para ele, só “aqueles que se deixam tratar como cães” se tornam cães. A recusa de se submeter e de rastejar como um cão parece, assim, ser o primeiro passo para se caminhar ereto, para a liberdade. Mas os romances de Franz Kafka não têm “heróis positivos”, nem utopias do futuro: trata-se, portanto, de mostrar, com ironia e lucidez, a facies hippocratica de nosso tempo.
5.
Não é por acaso que a palavra “kafkiano” entrou na linguagem comum: refere-se a um aspecto da realidade social que a sociologia ou a ciência política tendem a ignorar, mas que a sensibilidade libertária de Franz Kafka conseguiu maravilhosamente captar: o caráter opressivo e absurdo do pesadelo burocrático, a opacidade, a impenetrabilidade e a incompreensibilidade das regras da hierarquia estatal, tal como são vividas a partir de baixo e do exterior – ao contrário da ciência social, que geralmente se limitou a examinar a máquina burocrática a partir do “interior” ou em relação aos “superiores” (o Estado, as autoridades, as instituições): seu caráter “funcional” ou “disfuncional”, “racional” ou “pré-racional”.
A ciência social ainda não desenvolveu um conceito para este “efeito de opressão” do sistema burocrático reificado, que é, sem dúvida, um dos fenômenos mais característicos das sociedades modernas, vivido cotidianamente por milhões de homens e mulheres. Enquanto aguardamos, esta dimensão essencial da realidade social continuará sendo designada em referência à obra de Kafka…[xxvii]
*Michae Löwy é diretor de pesquisa em sociologia no Centre nationale de la recherche scientifique (CNRS). Autor, entre outros livros, de Franz Kafka sonhador insubmisso (Editora Cem Cabeças) [https://amzn.to/3VkOlO1]
Tradução: Fernando Lima das Neves.
Notas
[i] Ver L. Goldmann, “Materialisme dialectique et histoire de la littérature”, Recherches Dialectiques, Paris, Gallimard, 1959, pp. 45-64. [https://amzn.to/3KFtFLN]
[ii] M. Brod, Franz Kafka, pp. 135-136. [https://amzn.to/4c0qj1M]
[iii] M. Mares, “Comment j’ai connu Franz Kafka”, publicado em anexo em K. Wagenbach, Franz Kafka. Années de jeunesse (1883-1912), Paris, Mercure de France, 1967, pp. 253-249.
[iv] G. Janouch, Kafka m’a dit, Paris, Calmann-Lévy, 1952, pp. 70, 71, 135, 107, 108, 141.
[v] F. Kafka, Diaries e Briefe, Fischer Verlag, 1975, p. 196. Sobre Kafka e Otto Gross, ver G. Baioni, Kafka. Letteratura ed Ebraismo, Torino, Einaudi, 1979, pp. 203-205.
[vi] M. Brod, Franz Kafka, Paris, Gallimard, 1945, pp. 132-133.
[vii] Ver K.Wagenbach, Franz Kafka. Années de jeunesse… (1958) p. 213 e Franz Kafka in Selbstzeugnissen (1964), p. 70; Max Brod, Streitbares Leben 1884-1968, München-Berlin-Wien, F. A. Herbig, 1969, p. 170, e Über Franz Kafka, Frankfurt am Main, Fischer Bücherei, p. 190.
[viii] R. Robertson, Kafka. Judaïsm, Politics, and Literature, Oxford, Clarendon Press, 1985, pp. 140-141: “Se conduzirmos uma pesquisa sobre as inclinações políticas de Kafka, é, de fato, um erro pensarmos em termos da antítese usual entre esquerda e direita. O contexto mais apropriado seria a ideologia que Michael Löwy definiu como ‘anticapitalismo romântico’ (…) O anticapitalismo romântico (para adotar o termo de Löwy, embora ‘anti-industrialismo’ fosse mais preciso) tem diferentes versões (…), mas como ideologia geral ele transcende a oposição entre esquerda e direita”. Robertson refere-se aqui à minha primeira tentativa de explicar o “romantismo anticapitalista”, num livro sobre Lukács, mas há um óbvio mal-entendido em sua interpretação da minha hipótese.
[ix] Procurei analisar o romantismo em meu livro Pour une sociologie des intellectuels révolutionnaires. L’évolution politique de Lukács 1909-1929, Paris, PUF, 1976 (citado por R. Robertson a partir da tradução inglesa, publicada em Londres em 1979), e, mais recentemente, com meu amigo Robert Sayre, em Revolte et melancolie. Le romantisme à contre-courant de la modernité, Paris, Payot, 1992.
[x] A. Breton, apresentação de Kafka em seu Anthologie de l’humour noir, Paris, Le Sagittaire, 1950, p. 263. [https://amzn.to/3XmYNXP]
[xi] A. Breton, Anthologie de l’humour noir, p.264.
[xii] Para uma análise mais detalhada do anarquismo e do romantismo na obra de Kafka, remeto vocês a meu livro Rédemption et Utopie. Le judaïsme libertaire en Europe centrale, Paris, PUF, 1988, ch. 5. [https://amzn.to/3yX62vv]
[xiii] A. Breton, “Paratonerre”, introdução a Anthologie de l’humour noir, p. 11.
[xiv] F. Kafka, “Lettre au Père”, 1919, em Préparatifs de noce à la campagne, Paris, Gallimard, 1957, pp. 165, 179. [https://amzn.to/4cnHmuJ]
[xv] M. Kundera, “Quelque part là-derrière”, Le Debat, n° 8, junho 1981, p. 58.
[xvi] F. Kafka, Amerika, Francfort, Fischer Verlag, 1956, p. 15, 161.
[xvii] Kafka, “In der Strafkolonie”, Erzählung und kleine Prosa, New York, Schocken Books, 1946, pp. 181-113.
[xviii] W. Benjamin, “Lettre à G. Scholem”, 1938, Correspondance, Paris, Aubier, 1980, II, p. 248.
[xix] A. Breton, Anthologie de l’humour noir, p. 263.
[xx] F. Kafka, Le Château, Paris, Gallimard, 1972, p. 562.
[xxi] Ver W. Benjamin, Essais sur Brecht, Paris, Maspero, 1969, p. 132.
[xxii] Kafka, Der Prozess, Francfort, Fischer Verlag, 1979, p.9.
[xxiii] F. Kafka, Le Procès, Paris, Gallimard, 1985, p.316.
[xxiv] H. Arendt, Sechs Essays, Heidelberg, Lambert Schneider, 1948, p. 133.
[xxv] Le Procès, p.98.
[xxvi] F. Kafka, Le Procès, pp. 283, 309, 325 e In der “Strafkolonie”, p. 181.
[xxvii] As questões abordadas neste artigo são discutidas em maior profundidade em meu ensaio Franz Kafka, rêveur insoumis, Paris, Ed. Stock, 2005.
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