Cinema na quarentena: Filho único

Imagem: Elyeser Szturm
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Por Roberto Noritomi*

Comentário sobre o filme clássico de Yasujiro Ozu

Yasujiro Ozu dirigiu Filho único em 1936. É seu primeiro filme sonoro. Narra uma história simples e nada incomum. No Japão dos anos 1920, num vilarejo produtor de seda, uma viúva fiandeira (Tsune), a duras penas, envia seu único filho (Ryosuke) para estudar em Tóquio e lá se tornar “um grande homem”. Passada mais de uma década, a mãe viaja até Tóquio e encontra o filho numa situação diversa do que esperava. Ryosuke não logrou qualquer sucesso profissional e material, como prometera para sua mãe.

Seguir a pista do enredo, contudo, é tomar a via equivocada. Não se enreda em um filme como Filho único. Em seu caso, e em outros de igual quilate, a obra é apreendida pelas imagens, mais do que pelo verbo, que aqui é escasso.

O filme, nesse sentido, apresenta-se como um território imagético de múltiplas e indeterminadas entradas. Cada uma delas franqueia caminhos de interpretação que podem, ou não, convergir com os demais. Porém, dificilmente não se alcançará um remate significativo. Portanto, diante desse horizonte de possibilidades, a opção de se empreender a abordagem por um fragmento do meio, e não do começo, é válida e pode trazer algumas chaves de reflexão. Trata-se de uma sequência medular, carregada de potência visual. Nela estão enfeixadas as várias linhas de força do filme.

A sequência se dá quando Tsune, já há alguns dias em Tóquio, caminha junto a Ryosuke por um descampado nas imediações da casa do filho, na periferia de Tóquio. Apesar de certa surpresa com o emprego de professor e a vida precária de Ryosuke, a mãe não havia conversado com o filho sobre essa situação. A visita transcorria sem sobressaltos.

Um plano geral abre a sequência e expõe uma fileira de imensas chaminés fumegantes despontando ao fundo do descampado. O mato, mais à esquerda, mal resiste à do vento. A câmera está na altura do chão, o que lhe confere uma angulação de baixo para cima. Pouco depois, pela direita, entram no campo lado a lado, perpendicularmente ao plano, Tsune e Ryosuke. Caminham de costas para a câmera, tendo as chaminés à frente. Estão silentes e as passadas são contidas. A trilha musical acompanha com serenidade.

O filho explica que aqueles são os incineradores de Tóquio. Eles dão mais alguns passos e, mantendo os olhos nas chaminés, como que a demonstrar deferência, flexionam devagar os joelhos para se agacharem. A fumaça volumosa e incessante se destaca ao fundo. Agachado em diagonal à mãe, com as chaminés ao fundo, o filho confessa a insatisfação por não ter correspondido às esperanças que ela nutria ao enviá-lo para Tóquio.

Ele está arrependido pelo fato de ter saído da região onde moravam. Sente-se um derrotado profissionalmente e o semblante da mãe, cabisbaixa, não esconde a decepção. Calam-se diante do canto das cotovias e erguem os olhos para as nuvens moventes no céu. Em seguida, um plano, relativamente longo, repete o enquadramento inicial das chaminés. A sequência se fecha com o plano geral de mãe e filho caminhando em direção ao horizonte. De costas, formam duas figuras escuras que se fundem no escurecer da tela.

Uma espécie de momento de inflexão se configura nessa sequência. Até então, se sabia das dificuldades financeiras de Ryosuke, mas nada estava muito claro, menos ainda para sua mãe. Assim, pelo revelado na conversa, e que vai se reforçar num diálogo posterior, logo se depreende que há um desacordo na ordem das coisas. Apesar do empenho e dos estudos em Tóquio, Ryosuke não conseguiu ir além de um cargo mal pago de professor e uma casa alugada fora do centro.

Ele reconhece que “fez sua maior aposta” e perdeu. É o que também parece ter ocorrido com o professor Okubo, que lhe dera aulas no interior e o estimulara a ir estudar em Tóquio. Okubo não só naufragou no seu objetivo de aprimoramento como deixou a profissão e acabou como cozinheiro de tonkatsu (costela de porco empanada) e pai de quatro filhos. Os indícios são fortes de que esforçar-se em Tóquio é inútil. A cidade insone e radiante é para poucos, trava os anseios de sucesso e expele o mal competidor.

No entanto, a decepção de Tsune talvez nem decorra tanto do estado material do filho.  O problema é a incompletude de uma trajetória pela qual se sente responsável, como mãe. Na perspectiva tradicional, de onde ela provém, a família ou a ancestralidade tece o fio da vida dos descendentes, como num movimento cíclico que se reproduz, inelutavelmente, de geração em geração. Não à toa, a roca e as fiandeiras demarcam o começo e o final do filme.

A própria Tsune foi uma fiandeira. Sua esperança era a de garantir a formação, o emprego de sucesso e o casamento do filho. E depois morrer em paz. Mas isso foi truncado. Ryosuke está mal empregado, casou-se e teve um filho à revelia da mãe e agora vive o ressentimento de sua desventura. O fio da vida do filho fugiu ao controle da mãe. Esta possivelmente seja a causa de sua maior dor para Tsune, pois seu mundo está se dissolvendo ante uma sociabilidade nova, que desgarra e descarta indivíduos. Ela mesma, na sua remota região, perdeu seu papel na fiação e, ao fim, será relegada ao trabalho de limpeza. Já não pode mais fiar.

Logo se percebe que esse encontro em Tóquio, mais precisamente naquele ermo diante dos incineradores, se revela como o momento de confrontação de dois fracassos; o do filho, que se resignou ao destino que a cidade lhe reservou, e o da mãe, que não pode zelar pelo destino do filho. Romperam-se as amarras. Verifica-se, portanto, uma terrível cisão. E aquela, no fundo, é uma viagem de despedida (um dado que ressoará em filmes futuros de Ozu); mãe e filho ainda não o sabem, mas estão se separando.

A sequência citada é importante, porque constrói a encenação da separação, e da morte (certamente Tsune não reencontrará o filho). No modo como se aproximam e se sentam diante dos incineradores, mãe e filho posicionam-se como se reverenciassem uma pira sagrada, ou melhor, um crematório (muito comum no Japão) e ali prestassem as derradeiras cerimônias. É um tempo que se consome e se exaure naquelas chamas ocultas, de forma inelutável.

O momento não é propriamente de tragédia, mas de resignação frente a um processo que é muito maior e inapreensível. Ryosuke sintetiza isso ao recorrer à expressão cotidiana: “shouganai” (“não há o que fazer”, numa tradução imprecisa). Força alguma está ali para ampará-los. Diante daquele drama familiar, o mundo segue alheio. O vento curva os arbustos, faz dispersar a fumaça, carrega as nuvens na absoluta impassibilidade.

Cada evento, natural ou não, adquire relevância e tangibilidade particulares nos planos “isolados” que pontuam o filme. É o que se observa nas imagens das roupas tremulando nos varais; da torneira gotejando no caminho para a casa do professor Okubo; do kimono suspenso pelo cabide; do alvorecer no canto vazio da sala enquanto ouve-se, em off, o choro da esposa etc. Não são inserções externas a sustentar comentários metafóricos. São as próprias coisas no escopo diegético que se destacam e ganham concretude, demonstrando sua existência independente da consciência humana.

Desse modo, mais do que elementos descritivos ou simbólicos, esses planos se fixam com tal adesão que parecem buscar extrair o máximo de materialidade e reverberação do mundo, em cada detalhe de sua constituição histórico-social. E o tempo se faz passar através das coisas. A câmera recorta e imprime duração aos mais diferentes fenômenos, por mínimos que sejam.

Não há uma hierarquização narrativa rigorosa e tudo acaba recebendo especial atenção, principalmente aquilo que há de mais simples e rotineiro. Daí a opção pelas cenas cotidianas, com gestos e falas contidas, em detrimento de engenhosos périplos e desfechos catárticos. Do saboreio de um lâmen em casa à explicação de um teorema geométrico na sala de aula, passando por uma sonolenta sessão de cinema, tudo merece presença e extensão, não importando o quanto dure. A vida transborda a narrativa e aquele encontro dramático entre mãe e filho se perde no soprar contínuo do vento.

Frente a esse fluxo irresistível e insubmisso da realidade, a câmera de Ozu reconhece sua limitação e não se propõe a apreender e controlar os fatos dentro de um percurso de sentido fechado. Seu posicionamento é de um distanciamento muito preciso, matemático, em relação às emoções e à condução dos personagens. A decupagem é reduzida e os planos alongados. É uma câmera contemplativa, que evita se identificar com os personagens. Por isso, sua relação com um ponto de vista específico, interno à cena, é ambígua e desconcertante.

Na chegada da mãe a Tóquio, a câmera é instalada no estribo do táxi e faz o percurso mostrando parte do para-choque e o cimo dos prédios; em uma cena singular, durante a aula noturna, ao enquadrar a janela e o letreiro do lado de fora, a câmera parece ocupar o ponto de vista de Ryosuke, mas isso se revela um engano quando a luz da sala se apaga, professor e alunos partem, e o letreiro permanece piscando no quadro. Em outras situações, a câmera filma à distância, por detrás de objetos ou divisórias, como a testemunhar algo que não lhe diz respeito. Predominam a discrição e a serenidade na lentes de Ozu.

Filho único, a rigor, é uma obra mínima. Ozu não precisou de muito para realizar um de seus maiores feitos. Das relações familiares às crispações da modernização social e econômica do Japão, passando pela condição da mulher, os elementos estéticos e temáticos que definem a produção do diretor estão todos aqui. Mas, antes de tudo, o que sobressai é o seu olhar paciente, que exige espectadores dispostos a encarar o desalento imanente aos diminutos detalhes da experiência cotidiana. Como acontece com os grandes cineastas, seus filmes exigem ser vistos com os olhos.

*Roberto Noritomi é doutor em sociologia da cultura pela USP.

Rererência

Filho único (Hitori Musuko)

Japão, 1936, 87 minutos

Direção: Yasujiro Ozu

Elenco: Chishu Riu; Mitsuko Yoshikawa; Masao Hoyama.

Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=3ciGEjeZTcU

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