40 anos sem Michel Foucault

Imagem: Helena Jankovičová Kováčová
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Por VINÍCIUS DUTRA*

O que ainda permanece admirável na forma de Foucault de refletir é sua perspicácia em contestar ideias intuitivamente aceitas pela tradição crítica de pensamento

A tradição nietzschiana foi aquela que teve a coragem de desfazer uma concepção de história a qual aglutinava uma comemoração vulgar de grandes nomes e monumentos. O que seria denunciar que este tipo de celebração por vezes presente em nossa relação com o passado era só mais uma forma insidiosa de nos fazer esquecer de nossa própria potência de vida, da possibilidade de reinventá-la.

No entanto, o que fazer mesmo quando o nome de quem nos deixou é de alguém que subverteu o vocabulário das ciências humanas a ponto de deixar um legado intelectual que guarda toda sua força ainda hoje, quarenta anos depois de sua morte? É o caso de Michel Foucault, que infelizmente veio a falecer no hospital parisiense da Salpêtrière em 25 de junho de 1984, quando estava prestes a começar a revisar o manuscrito de As confissões da carne.

Publicada postumamente em 2018 pela editora francesa Gallimard, esta obra estava destinada a ser o quarto e último volume de um longo programa de trabalho de Foucault: a árdua tarefa de escrever uma história da sexualidade no Ocidente. Um dos impulsos iniciais para tal empreitada pode ter surgido em um momento de crise existencial pelo qual passou o filósofo francês na metade da década de 1970.

É difícil não supor que a inquietação daqueles anos não tenha produzido marcas na reflexão crítica de Michel Foucault. O pensamento filosófico deste arqueólogo do saber não ficou nada incólume aos efeitos de certos acontecimentos históricos. Lembremos que a constelação de eventos na qual Foucault esteve inserido é assombrada por diversas situações. No final da década de 1960, a França assistia ao retorno do fantasma da Comuna de Paris pelos bloqueios produzidos por maio de 1968.

Michel Foucault estava naquela ocasião lecionando na Tunísia, o que inclusive lhe rendeu a oportunidade de acompanhar de perto o março de 1968 não europeu, com toda a sua efervescência estudantil contra a prisão e a tortura de manifestantes efetuadas pelo regime tunisiano. Ao retornar por alguns dias a Paris apenas no final de maio, imbuído desta chama da insubordinação, Michel Foucault teria dito o seguinte, de acordo com o seu biógrafo Didier Eribon, sobre a revolta dos estudantes na França: “Eles não fazem a revolução, eles são a revolução”. Por mais que tenha feito esse tipo de consideração, sabemos também o quanto a comparação que o filósofo francês fez entre os eventos de Tunis e Paris não foi tão favorável a maio de 1968. Michel Foucault acreditava que a coisa tinha sido muito mais drástica em solo tunisiano.

A mutação na sua maneira de pensar se intensificou ainda mais durante sua passagem pela Califórnia, agora já na década de 1970. Basta evocar como a cultura underground gay de São Francisco, ao menos segundo tese de James Miller, serviu de estopim para que ele pudesse imaginar outra forma de relação entre os corpos. Se já havia todo um campo de saber o qual procurava ao seu modo entregar uma interpretação do motivo pelo qual sentimos tal e tal prazer sexual, o que Michel Foucault tentava agora colocar em relevo era a intensidade mesma do prazer.

Essa atitude o levava a se importar menos com hermenêutica e mais com modulações semióticas. Diante disso, uma suposição podemos fazer avançar: a posição foucaultiana contribuía para que se criasse um distanciamento significativo em relação a algo que teve sua relevância para o pensamento crítico ao longo do século XX, a psicanálise. Pois esse jeito de colocar as coisas criava um questionamento do vocabulário psicanalítico que predominava sobretudo na França daqueles anos. Essa hegemonia surgia também com a ajuda do destaque de um projeto de peso empreendido por ninguém menos que Jacques Lacan, com o seu famoso “retorno a Freud”.

A provocação de Michel Foucault estava aglutinada no primeiro volume de História da sexualidade, com sua alta suspeita sobre o que chamou ironicamente de “hipótese repressiva”. Publicado em 1976 com o subtítulo A vontade de saber, este livro era um confronto implícito com a tradição freudo-marxista.

Grosso modo, o que tal pensamento de esquerda costumava fazer era partir do pressuposto segundo o qual éramos todos reprimidos, sendo preciso então uma libertação sexual. Não poderia ser muito diferente disso, afinal não havia sido Sigmund Freud um dos que teorizou sobre como a moral acabava por produzir uma tentativa de recalcar a sexualidade?

A psicanálise freudiana tinha notado muito bem como esse “silêncio” pudico que pairava sobre o sexual era causa de toda sorte de sintomas neuróticos. Essa ideia, a qual Foucault apelidava de “hipótese repressiva”, não deixava de circular entre os envolvidos com maio de 1968 (o que pode ser um bom indício para começar a compreender certa ambiguidade do filósofo francês em relação a este evento de suma importância para a subversão dos costumes no século XX).

O gesto radical de Michel Foucault foi levar a “hipótese repressiva” ao seu ponto de colapso. É claro que não se tratava de negligenciar toda uma cartilha não escrita de como se comportar em matéria de sexo, cartilha que sempre vem acompanhada de toda sirene da “polícia moral”.

Pelo contrário, o que Michel Foucault buscava fornecer era um quadro muito diferente do suposto silêncio absoluto diante da sexualidade. O que seu relato realiza é uma arqueologia que tenta nos mostrar como houve, sobretudo a partir do século XVII, não uma grande repressão a qual teria recalcado de vez o sexual, mas uma proliferação de discursos que contribuiu para uma intensa incitação a se falar de sexo. Com isso, Foucault poderia embaralhar a oposição consolidada entre poder e prazer para nos convidar a pensar a partir de um lugar em que o sexo é investido pelo poder e o poder é investido de prazer.

Esses múltiplos discursos a respeito da sexualidade perpassavam diferentes instituições de saber: eles não só estavam presentes na preocupação da psiquiatria com a tentativa de categorizar as ditas perversões sexuais (o trabalho de Krafft-Ebing é exemplar aqui) como também na produção literária a qual abordava sem pudor toda uma gama de experiências eróticas (a escrita do libertino Marquês de Sade é significativa nesse aspecto). Assinalar esses discursos desarranjava a concepção amplamente aceita de um poder repressivo o qual bloquearia o desejo de falar mesmo sobre sexo.

No entanto, o que talvez passou inicialmente despercebido a Michel Foucault foi que, para a psicanálise, a questão teria se transmutado: por que o sexual ainda causa toda uma série de impasses para os sujeitos mesmo quando a cultura, com seu “supersaber” sobre a sexualidade, não solicita mais que ele permaneça exatamente escondido?

É verdade que isso não deixou de ser identificado posteriormente pelo próprio Michel Foucault na conferência “Sexualidade e poder”, proferida em 1978 no Japão. De toda forma, o que ainda permanece admirável na sua forma de refletir é sua perspicácia em contestar ideias intuitivamente aceitas pela tradição crítica de pensamento. E é nesse sentido que, por mais que Foucault tenha sido alguém que suspeitou da “ontologia da falta” (a qual inclusive predomina na psicanálise), ele nos faz falta, pois quem diz essa palavra não evoca apenas o vocabulário do pecado, da culpa e do desejo. Evoca também o da saudade.

*Vinícius Dutra, psicanalista, é doutorando em filosofia na Universidade de São Paulo (USP).


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